17 abril 2023

A Crise de Coimbra em 1969 pelo desenho


Esta fotografia documenta o momento que desencadeou a Crise Académica de 1969, em Coimbra. Em 17 de abril de 1969, durante a cerimónia oficial de inauguração do edifício das Matemáticas da Universidade, o presidente da direção da Associação Académica de Coimbra, Alberto Martins, pediu ao presidente da República, Américo Tomás, para falar em nome dos estudantes. O presidente respondeu-lhe: «Bem, mas primeiro fala o sr. ministro das Obras Públicas». Assim que o ministro terminou o seu discurso, Américo Tomás e a sua comitiva abandonaram inesperadamente a sala, perante o protesto dos estudantes presentes na cerimónia. Nessa mesma noite, Alberto Martins foi preso e a repressão abateu-se sobre a Academia de Coimbra. Se dúvidas houvesse a respeito da pretensa liberalização do Regime (a proclamada «Primavera Marcelista»), elas dissiparam-se nesse dia (Foto: José Veloso)

Na sequência dos acontecimentos de 17 de abril de 1969, a cidade de Coimbra foi ocupada por militares da GNR (Desenho de Carlos Santarém Andrade)

O ministro da Educação Nacional, José Hermano Saraiva, fez uma alocução ao país pela televisão, tentando justificar a repressão sobre os estudantes de Coimbra com uma alegada falta de respeito ao «mais alto magistrado da Nação»

Em bicos de pés, do alto do seu poleiro televisivo, o Senhor Ministro recitava a velha história: «Neste momento sabe-se que já convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação». E pomposo, saboreando antecipadamente o efeito que sobre a Academia e o País as suas palavras iriam ter, promete firmemente uma certeza: «A de que a ordem vai ser restabelecida na Universidade de Coimbra».

Sabe-se a resposta dos estudantes. Mas essa comunicação ao País origina uma inovação nas lutas estudantis, que meteria a ridículo o Senhor Ministro e o seu discurso. De facto, talvez ainda recebesse os parabéns pela sua firmeza, um cartaz, depois reproduzido em desenho, colocava em erecta coluna, balançando preso por uma linha precária, prestes a ser cortada, a figura legendada «Hermano I, o Firme».

Que o discurso agradou a alguns, é um facto. Também está documentado: um carneiro, sentado num tacho, sentencia: «Eu cá gostei do discurso». Um outro desenho dava cabal razão ao Senhor Ministro. Com efeito, com a legenda «Neste momento sabe-se que já convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação», ali estavam bem retratados: um polícia de choque e um cão.

Partia-se assim para um tipo de luta que, através do ridículo, pela apreensão directa («uma imagem vale mais que mil palavras») viria a ser um instrumento denunciador de uma situação anormal. O desenho testemunha a brutal repressão, os inquéritos, as coacções de todo o tipo, que procuram obrigar os estudantes a traírem-se a si próprios, indo a exames, a autêntica ocupação militar de Coimbra por quantas polícias existiam.

A sua larguíssima difusão, não só em Coimbra mas por todo o país, leva a cada canto uma imagem fiel do sistema repressivo então vivido, granjeando, ao mesmo tempo, a simpatia da população pela luta estudantil e desmascarando a tal primavera anunciada, que à vista de todos, na repressão e no aparato policial, mostrava bem a sua verdadeira face.

Mas, se por um lado a imagem servia de denúncia de uma situação, era também um meio de angariação de fundos para a luta. Claro que, como sempre os donos do poder tinham dito, repetiam agora que o dinheiro vinha de longínquas paragens, porventura trazido pelos tais «conhecidos agitadores».

Os diversos comunicados, de que eram feitas repetidas tiragens, obviamente custavam dinheiro e, a partir do momento em que dezenas de estudantes começaram a ser presos, diariamente, através da Secção Social, cada um recebia a prova da solidariedade dos seus colegas: um saco onde, mais do que as sandes, os bolos, os sumos ou o tabaco, sentiam a presença da Academia, que todos os dias lhe ia dizer, dessa forma, que a luta era de todos, que a Academia estava unida contra a repressão que sobre eles se abatia.

Ligado aos desenhos, ocorre-me um episódio do qual, apesar do natural retraimento por nele estar envolvido, aqui queria dar testemunho. Aquando da inauguração do Edifício das Matemáticas, em 17 de Abril, não estavam ainda pintados os frescos hoje existentes no átrio.

Em Junho ou Julho, Almada Negreiros — e isso mostra a importância que a luta estudantil assumira — não deixou de ir à Associação Académica perguntar se os estudantes não viam inconveniente em que ele então os pintasse. Na altura, foram-lhe oferecidos alguns dos muitos desenhos que documentavam a crise. Alguém disse que eu era o autor de uns tantos, tendo Almada dito, dirigindo-se a mim:

— «Então somos colegas!»

— «Ah sim? — respondi sorrindo — também anda em Direito?»

A boa disposição geral levou-me a vencer uma natural timidez, ousando pedir-lhe que me fizesse um desenho. E é assim que, das muitas recordações da Crise de 1969, tenho numa parede, com dedicatória e tudo, um auto-retrato, com roupagens de Arlequim, do «meu colega» Almada Negreiros.




Carlos Santarém Andrade (1941–2023). Texto do catálogo da exposição "Coimbra 69", que teve lugar na Biblioteca-Museu República e Resistência, em Lisboa, em 1999



(Desenhos de Carlos Santarém Andrade)

A Matemática desde os Caldeus e Egípcios até aos nossos dias, fresco de Almada Negreiros (1893–1970) na parede do lado esquerdo de quem entra no átrio do edifício das Matemáticas, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal (Foto: Paulo Gonçalves)

A Matemática portuguesa ao serviço da Epopeia Nacional, fresco de Almada Negreiros (1893–1970) na parede do lado direito de quem entra no átrio do edifício das Matemáticas, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal (Foto: Paulo Gonçalves)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Um momento histórico de grande relevância na luta estudantil em Coimbra.


Um abraço, Fernando!

17 abril, 2023 12:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Uma das frases proferidas com cara de mau por José Hermano Saraiva na televisão foi: «Neste momento sabe-se que já convergiram para Coimbra conhecidos elementos de agitação». Aposto que ele se referia, entre outros, a Zeca Afonso, que veio a cantar no jardim da Associação Académica de Coimbra perante muitas centenas de estudantes. O jardim era fechado, isto é, estava rodeado por todos os lados por instalações da Associação, e a censura não entrava ali.

Só agora é que eu soube que eram entregues sandes, bolos, sumos ou tabaco destinados aos estudantes que estavam presos. Não tenho dúvidas nenhumas de que isso foi feito, mas eu também cheguei a estar preso (apesar de não ter sequer atingido a maioridade) e nunca recebi absolutamente nada. Ou os bolos e os sumos eram recusados, ou alguém ficou indevidamente com eles.

17 abril, 2023 19:14  

Enviar um comentário