Poema do Alegre Desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre
que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós,
todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerxes,
e o Xenofonte, e o Heráclito,
e o desfiladeiro das Termópilas,
e a mulher do Péricles,
e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas
que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro,
e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio
e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
António Gedeão (1906–1997)
Comentários: 3
Trago Gedeão
na minha memória
e no coração
por razões
que não terão explicação
Só o lendo...
Abraço
Também trago Gedeão no coração, mas sei muito bem porquê. Trago-o porque escreveu genialmente.
Um abraço!
Eu não esqueço a admiração que senti quando li Gedeão pela primeira vez, ainda antes do 25 de Abril. Foram tempos de descoberta, aqueles, em que travei conhecimento com Gedeão, Sophia, Manuel Alegre e o (agora injustamente esquecido) poeta luso-caboverdiano (ou vice-versa) Daniel Filipe, com a sua "Invenção do Amor". Ah, já me esquecia do José Gomes Ferreira, mas o primeiro livro dele que tive oportunidade de ler não foi de poesia, foi "O Mundo dos Outros".
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