13 junho 2023

Poema do Alegre Desespero


Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre
que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)

com muitos faraós,
todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,

e o Estrabão, o Artaxerxes,
e o Xenofonte, e o Heráclito,
e o desfiladeiro das Termópilas,
e a mulher do Péricles,
e a retirada dos dez mil,

e os reis de barbas encaracoladas
que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Epiro,
e conquistavam o Epiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,

e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.

Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?


António Gedeão (1906–1997)


Estátua funerária de madeira de ébano policroma, Egito, Médio Império, XI dinastia (c. 2000 a. C.). Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Comentários: 3

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Trago Gedeão
na minha memória
e no coração
por razões
que não terão explicação
Só o lendo...

Abraço

14 junho, 2023 17:07  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Também trago Gedeão no coração, mas sei muito bem porquê. Trago-o porque escreveu genialmente.

Um abraço!

16 junho, 2023 15:13  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Eu não esqueço a admiração que senti quando li Gedeão pela primeira vez, ainda antes do 25 de Abril. Foram tempos de descoberta, aqueles, em que travei conhecimento com Gedeão, Sophia, Manuel Alegre e o (agora injustamente esquecido) poeta luso-caboverdiano (ou vice-versa) Daniel Filipe, com a sua "Invenção do Amor". Ah, já me esquecia do José Gomes Ferreira, mas o primeiro livro dele que tive oportunidade de ler não foi de poesia, foi "O Mundo dos Outros".

20 junho, 2023 18:46  

Enviar um comentário