25 julho 2023

Habeas Pinho


Numa madrugada do ano de 1955, na cidade de Campina Grande, no estado da Paraíba, Brasil, um boémio que fazia uma serenata foi detido pela polícia, por perturbação do sossego público. Foi libertado no dia seguinte sob fiança, mas o seu violão manteve-se apreendido. Foi feito o inquérito correspondente, que seguiu para a Justiça, devidamente acompanhado pelo violão como instrumento do "crime". Com vista a reaver o seu violão, o boémio recorreu ao advogado Ronaldo Cunha Lima, que além de advogado era poeta. Este dirigiu ao juiz da comarca, Artur Moura, a seguinte petição:

Senhor Juiz.
Artur Moura
Meritíssimo Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca,

O instrumento do "crime"que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revólver ou pistola,
É simplesmente, Doutor, um violão.

Um violão, Doutor, que em verdade
Não feriu nem matou um cidadão
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
E nem existe sentimento de afinidade.

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam mágoas que povoam a vida
E sufocam as suas próprias dores.

O violão é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório.
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.

Ele, Doutor, que é suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta, jamais, em um arquivo
Sem gemer sua prima e seu bordão

Mande soltá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno acoite
De suas cordas finas e sonoras.

Liberte o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
Derramando nas praças suas dores?

Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua)
Não sufoque o cantar que vem da rua,
Que vem da noite para saudar o dia.

É o apelo que aqui lhe dirigimos.
Na certeza do seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, enfim, deferimento.

O juiz Artur Moura elaborou então o seguinte despacho:

Para que eu não carregue
Remorso no coração
Determino que se entregue
Ao seu dono o violão.


O próprio advogado e poeta Ronaldo Cunha Lima contou este episódio perante as câmaras da televisão

Comentários: 2

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Caso eu mandasse, num futuro
Ordenava e mandava publicar
Que todo o juiz ou tribuno
Fizessem justiça... a cantar

(teu post está bem giro, meu amigo)

25 julho, 2023 22:02  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Uma das características dos textos jurídicos que mais me incomodam é a aridez burocrática da sua linguagem. Admito que tenha que ser assim, por razões de universalidade e objetividade (real ou fingida), mas não consigo deixar de sentir uma repulsa por ela, que é mais forte do que eu. Por isso, estou completamente de acordo contigo, caro Rogério. Até a criminalidade diminuiria se a Justiça fosse a cantar...

29 julho, 2023 18:53  

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