Um poema da Guerra Colonial
Aquartelamento de Calambata, no antigo distrito (atual província) do Zaire, Angola, onde estava instalada uma companhia do Exército Português (Foto: José Bregieiro, 1972)
CALAMBATA
à memória dos nove
(como) a manhã africana inventa a anhara deserta
onde os passos descem do sopro das armas.
A voz cheia da bazuca numa vibração oblíqua.
O coice súbito do morteiro. O silvo em ogiva na face
cinzenta do medo. O cheiro imaginário da maresia.
O medo, o medo.
E como a súbita emboscada acontece
entre o Lungadge e a Magina, exactamente
às nove horas em ponto da manhã africana.
Um auto de corpo de delito se lavra sobre
a anhara então deserta. São nove homens,
têm a minha idade. Diz-se que deslizam pássaros
autopsiados na véspera da memória.
O cacimbo, esta face de areia suspensa. Fitam-me
nove pares de olhos mortos. Como se do chão uma
lâmina se abrisse por entre crateras para as
minhas mãos, crescendo rápida, fugaz.
Via-se a anhara ondular. Uma bandeira nos imaginados
mamoeiros ou na lança dos bambus. E na franja das
mulembas a presença erecta das cubatas: caçambuleiros
velhos de cachimbo apontado ao norte, dengosas
velhas mulheres, os bois tristes como os olhos dos
monangambas, o grito dos monandengues a anunciar
grandes distantes chuvas de morte sobre o mundo.
O imbondeiro: uma árvore de braços abertos sobre a manhã, a terra num sobressalto mudo e cego debaixo da guerra, como se toda uma eterna madrugada acordasse veloz para nos fechar e suturar os olhos, a língua, a boca, os gestos sem cor.
Tensos os braços na espera. Passam da manhã para a tarde. O socorro não vem, a terra num sobressalto a flutuar dentro da guerra. A madrugada acordada na hora veloz da sutura sobre a boca. E eis que a manhã desperta nas metralhadoras.
O ventre, os ouvidos, o peito tomado de assalto.
O combate é um ser vivo, um réptil a corroer os membros,
a face a vida destes nove rapazes da minha idade.
E então, Calambata, palavra escrita a nove letras.
A manhã de nove horas africanas,
o corpo de nove rapazes da minha idade.
João de Melo
NOTAS
1 — Os nove rapazes a que João de Melo se refere neste seu poema foram nove jovens militares portugueses, mortos numa emboscada ocorrida numa picada a cerca de 30 quilómetros da fronteira norte de Angola, no ano 1973. Pertencentes a uma companhia instalada em Calambata, os nove militares dirigiam-se a Maquela do Zombo para, na volta, trazerem reabastecimentos em combustível destinados à sua companhia.
2 — Existe um escritor português chamado João de Melo e existe um escritor angolano chamado João Melo, mas sem "de". São dois escritores distintos.
GLOSSÁRIO
anhara — planície coberta de capim
cacimbo — névoa
mulembas — árvores muito frondosas semelhantes aos sicómoros
cubatas — palhotas
caçambuleiros — trôpegos? (de caçambular = fintar, driblar)
monangambas — trabalhadores forçados
monandengues — garotos
imbondeiro — baobá, Adansonia digitata
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