Carta do soldado Renato
Um exemplar de aerograma militar, o suporte em papel em que os soldados portugueses enviados para a guerra colonial escreviam a sua correspondência (Foto: Museu do Papel)
À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata, sabes?, é uma trégua fuzilada, um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite. Escrevo-te, amor, por não saber nem o dia nem a hora. Com o medo de estar apenas vivendo à beira do medo. Que escrevo. Colunas partem à Magina, recebem de volta a notícia dos ataques aos quartéis do Norte, o M'Pozo, a Mama Rosa, a Madimba, o Luvo, e a gente pensa que há-de ser um dia também a destruição de Calambata, amor. Amor, diz-se já que Calambata é apenas o som da nossa respiração: ama-se a vida devagarinho, como nos repugna o cheiro a bálsamo dos mortos que partem a qualquer hora do dia. Palavras dispersas pingam da infusa do silêncio. Palavras. As palmeiras, por exemplo. Os imbondeiros, as mulembas. Perderam a memória dos séculos. Um dia, amor, as armas serão somente objectos de museu: os campos hão-de lavrar-se com charruas, nas oficinas trabalharão bigornas, puas, enxós, o esmeril das mãos que nos combateram, e a piaçaba dos cabelos encher-se-á da poeira das madeiras, nas serrações. Era bom, amor, que se ouvissem os guindastes nos cais, os alcatruzes das noras, o uivo do vento nas grandes searas do Sul. Bom que o mar erguesse a voz um pouco acima do sal até à alegria das lágrimas. Amor, é provável que não existam brancos inimigos nas picadas de Nambuangongo. Os brancos não podem, amor, continuar, aqui nas serras da Calambata, a alimentar a morte das minas, dos morteiros e dos canhões. Será chegado o tempo, de se cobrirem as crateras das granadas, de despoletar os trilhos, de pintar os furos das balas no corpo das árvores da Binda. Por isso te escrevo, amor, antes da minha morte. Nunca pisei uma lavra de milho ou mandioca, sabes? Escrevo. Não chicoteio o suor do negro da tonga. Não troco meu sapato velho, minha cerzida camisa, meu garrafão de aguardente, pelo corpo da menina no alembamento. Escrevo, amor: reconstruí vós as sanzalas de quantos se foram embora, para que possam ainda regressar, viver. Pergunta-lhes por mim, amor. O que fazia. O que inventava por vezes. O que escrevi eu aqui. Que branco caçambuleiro esse, que diferente estava me chamar ainda? Que branco esse, polícia lhe tinha raiva, lhe estava sempre xingar a voz da denúncia, quase mesmo ia caindo na prisão do esquecimento? Que branco, amor? Minha pele tem o ardor das anchovas da ração de combate, da pasta de fígado (os perseguidos guerrilheiros sul-africanos, lembras-te, amor?). Mas tudo isso eu fui trocando pelo desejo e pelo gosto da moamba de galinha e pelo ácido do abacaxi com pancadinha discreta na curva do ombro, como a dizer: coragem!
É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre.
João de Melo, escritor português, in Autópsia de Um Mar de Ruínas
(Respigado de "Navegar é Preciso")
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