21 novembro 2025

Dois frescos de Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo que não existem


A Batalha de Anghiari, parte central de um cartão desaparecido, para um fresco inacabado e a seguir destruído de Leonardo da Vinci (1452–1519), copiada por Pieter Paul Rubens (1577–1640). Museu do Louvre, Paris, França
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A Batalha de Cascina, parte central de um cartão desaparecido de Miguel Ângelo (1475–1564), para um fresco que não chegou a realizar-se, copiada pelo seu discípulo Bastiano da Sangallo (1481–1551). Holkham Hall, Holkham, Norfolk, Inglaterra
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Em 1503, um político chamado Piero Soderini, que presidia à República de Florença, encomendou a Leonardo da Vinci e a Miguel Ângelo dois frescos, que deveriam ser pintados em paredes opostas de um salão do Palazzo Vecchio da cidade de Florença, salão este que atualmente se chama Salone del Cinquecento. Estes frescos deveriam celebrar duas batalhas, nas quais as tropas florentinas alcançaram notáveis vitórias. Leonardo da Vinci deveria pintar a batalha de Anghiari, em que as tropas de Florença venceram as de Milão, e Miguel Ângelo deveria pintar a batalha de Cascina, em que as tropas florentinas venceram as de Pisa. Aqueles eram tempos em que as cidades-estado italianas viviam em quase permanente confrontação, o que não impedia que nelas se registasse um extraordinário desenvolvimento das artes e das ciências, que ficou para a História com o nome de Renascimento.

A abordagem que Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo fizeram ao tema das batalhas não podia ser mais contrastante. Enquanto Leonardo decidiu pintar uma batalha feroz e tumultuosa, carregada de uma violência extrema, Miguel Ângelo concebeu uma cena que seria quase bucólica, se não fosse o sobressalto retratado, em que os florentinos tomavam banho no rio Arno quando foram surpreendidos pela chegada das tropas inimigas.

Deveria ter sido muito interessante ver o contraste entre os dois frescos, frente a frente numa sala, se eles tivessem visto a luz do dia. Mas isso não aconteceu, porque nem Leonardo da Vinci nem Miguel Ângelo completaram a sua tarefa. Deixaram, porém, ilustrações do que pretendiam realizar, ilustrações estas que foram copiadas por admiradores seus. É graças a tais cópias que hoje podemos fazer uma ideia do que os dois génios renascentistas tencionavam pintar.

Sem entrar em pormenores sobre as razões que levaram Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo a abandonar os seus trabalhos, diga-se que, na década de 1560, o pintor Giorgio Vasari foi por sua vez encarregado da pintura e decoração do referido Salone del Cinquecento, tarefa que ele executou até ao fim e cujo resultado se pode admirar nos dias de hoje; todo o salão (paredes e teto) está agora coberto por magníficos frescos de Vasari.


Frescos de Giorgio Vasari (1511–1574), que foram pintados nas paredes do Salone del Cinquecento do Palazzo Vecchio de Florença, em substituição dos malogrados frescos de Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci (Composição de imagens de Ron Reznik)

14 novembro 2025

Sons

A guitarra
é som antepassado

Partiram-se as cordas
esticadas pela vida.

Chorei fado.

Que importa hoje
se o recuso:

o ngoma é o som adivinhado

José Luandino Vieira


ngoma — nome que é dado ao tambor africano em muitas línguas bantus

Tocadores de ngoma do Angola Ngoma Dance Ensemble

12 novembro 2025

Maiden Voyage


Maiden Voyage, um tema de jazz de Herbie Hancock, por Freddie Hubbard no trompete, George Coleman no saxofone tenor, Herbie Hancock no piano, Ron Carter no contrabaixo e Tony Williams na bateria. Gravado em 1965

09 novembro 2025

Se eu podesse desamar

Se eu podesse desamar
a quem me sempre desamou
e podess'algum mal buscar
a quem me sempre mal buscou!
Assi me vingaria eu,
          se eu pudesse coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Mais sol nom poss'eu enganar
meu coraçom que m'enganou,
per quanto mi fez desejar
a quem me nunca desejou.
E por esto nom dórmio eu,
          porque nom poss'eu coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Mais rog'a Deus que desampar
a quem m'assi desamparou,
ou que podess'eu destorvar
a quem me sempre destorvou.
E logo dormiria eu,
          se eu podesse coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Vel que ousass'en preguntar
a quem me nunca preguntou,
por que me fez em si cuidar,
pois ela nunca em mi cuidou;
e por esto lazeiro eu:
          porque nom posso coita dar
          a quem me sempre coita deu.

Pero da Ponte (séc. XIII), segrel galego


GLOSSÁRIO
coita — dor, mágoa, sofrimento
sol nom — nem mesmo
vel — pelo menos
ousass'en preguntar — ousasse perguntar sobre isso
lazeiro — em sofrimento



Se eu pudesse desamar, por Pedro Barroso (1950-2020); música de Pedro Barroso para uma cantiga de amor de Pero da Ponte

06 novembro 2025

Te Deum de Pedro Macedo Camacho


Te Deum, do compositor madeirense Pedro Macedo Camacho (nascido em 1976), pela Orquestra Clássica da Madeira e o Coro de Câmara da Madeira dirigidos por Francisco Loreto

04 novembro 2025

Apolo e Dafne


Apolo e Dafne, escultura de mármore em tamanho natural, executada entre 1622 e 1625 pelo escultor napolitano Gian Lorenzo Bernini (1598–1680). Galeria Borghese, Roma, Itália
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Apolo e Dafne é o nome de uma notável escultura barroca de Bernini, que representa uma cena da mitologia greco‑romana, que o poeta romano Ovídio contou no seu livro "Metamorfoses".

O deus do Amor, Cupido, desentendeu-se com o deus Apolo (também chamado Febo pelos romanos), por causa da soberba deste. Querendo castigar Apolo, Cupido atingiu-o com uma seta de ponta dourada e, em consequência, Apolo ficou loucamente apaixonado pela bela ninfa Dafne. Porém, Cupido atirou também em Dafne, mas desta vez atingiu-a com uma seta com ponta de chumbo, o que a levou a rejeitar todo o amor, viesse de quem viesse.

Ardendo de paixão, Apolo perseguiu Dafne, que fugia dele, mas Apolo foi mais rápido e conseguiu alcançá-la. Dafne implorou então ao seu pai, que era o rio Peneu, que a salvasse dos ímpetos de Apolo. Peneu anuiu e logo Dafne se metamorfoseou num loureiro. Apolo abraçou-a, mas já só sentiu o coração de Dafne bater dentro do tronco de uma árvore.

Em homenagem à sua perdida ninfa, Apolo colocou na cabeça uma coroa feita com ramos do loureiro em que ela se tinha transformado e instituiu o uso de uma coroa semelhante para glorificar as personagens ilustres: uma coroa de louros.

Nesta escultura de Bernini, das mãos de Dafne já começam a nascer ramos e folhas de louro, os seus pés vão-se convertendo em raízes e o seu corpo começa a ser revestido por uma casca de árvore.

Os versos de Ovídio que narram este episódio mitológico são os seguintes:

Dafne peneia foi primeiro amor de Febo,
nascido não do azar, mas da ira de Cupido.
Délio, soberbo após ter vencido a serpente,
vira-o dobrar o arco com a corda tensa:
“Moço lascivo, por que portas armas fortes?”
– disse – “isto convém aos meus ombros, pois posso,
certeiro, ferir feras, como um inimigo,
e com muitas flechadas matei Píton hórrida,
cujo ventre pestífero um monte ocupava.
Contenta-te em, com teu facho, excitar não sei
que amores, nem queiras tomar os meus louvores.”
Diz o filho de Vénus: “O teu arco, Febo,
tudo atinge, e a ti eu; como os animais valem
menos que um deus, tua glória é menor que a minha”.
Disse e, fendendo o ar com as céleres asas,
pousou na umbrosa fortaleza do Parnaso
e da aljava tirou dois dardos de diverso
efeito; um afugenta, o outro atrai amor.
Este é dourado e brilha na ponta afiada;
aquele, obtuso, sob o cano contém chumbo.
Com este alveja a ninfa peneia, com outro
atravessa a medula e os ossos de Apolo.
Este ama súbito; do amante aquela foge,
se alegrando em caçar feras nas profundezas
das selvas; ela, émula da casta Febe;
uma fita envolvia os cabelos revoltos.
Muitos a cortejavam; ela os repelia,
buscando os bosques ínvios, livre de marido,
indiferente a Himeneu, a Amor, e a núpcias.
Seu pai sempre dizia: “A mim deves, ó filha,
genro; a mim deves netos, filha”, repetia.
Ela, odiando, qual crime, as tochas do esposo,
inunda o belo rosto de casto rubor,
e prende os tenros braços ao colo do pai:
“Como Diana, pai caríssimo, permite-me
fruir de virgindade perpétua”, pediu.
Ele, então, assentiu; mas o que queres ser
à beleza repugna e teu corpo repele.
Febo ama e ao ver Dafne deseja unir-se
a ela; e o seu próprio oráculo o ilude.
Tal como a leve palha que arde sem a espiga,
ou a sebe queimada por tocha que acaso
alguém aproximou ou lá deixou de dia,
assim se inflama o deus, assim em todo o peito
ardendo-se e nutrindo um estéril amor.
Vendo os cabelos dela revoltos, nos ombros,
diz: “que tal penteá-los?” Vê os olhos dela
brilhantes como astros, e os lábios que ver
não é bastante; louva-lhe os dedos, as mãos,
os braços e antebraços nus pela metade;
melhor julgando o que se oculta. Mais ligeira
que a brisa, ela foge daquele que a chama:
“Ó filha de Peneu, pára, não sou hostil;
ninfa, pára. Assim, ovelha foge ao lobo,
corça ao leão, à águia trepidantes pombas,
cada qual ao rival; por amor te persigo.
Ai de mim, se caíres e espinhos ferirem-te
as pernas e eu te cause imerecidas dores.
Áspero é por onde vais; mais devagar
corre, não fujas, devagar eu mesmo irei.
Pergunte a quem te apraz; eu não habito em montes,
não sou pastor, não sou um rude guardador
de rebanhos e reses. Não sabes de quem
foges, por isso, insana, foges. Sou senhor
de Delfos e de Claros, de Tenedo e Pátara.
Júpiter é meu pai; o futuro, o passado
e o presente desvelo. Ajusto o verso às cordas.
Certeira é minha flecha, mas uma mais certa
encheu meu peito ainda vago de feridas.
Medicina inventei, chamam-me salutar
em todo o orbe e tenho poder sobre as ervas.
Ai de mim, o amor não se cura com as ervas,
e estas artes a todos úteis não me valem”.
Mais diria, se a filha de Peneu, fugindo,
não lhe cortasse a fala, em louca correria,
assim mesmo admirou-a; um vento contrário
expunha-lhe a nudez, agitando-lhe as vestes,
e a brisa para trás impele os seus cabelos;
mais bela é fugindo. Mas o jovem deus
renuncia à ternura e, tomado de amor,
segue as pegadas dela, com passos ligeiros.
Qual galgo que uma lebre em campo aberto avista,
com patas quer prendê-la e ela se safar;
ele, a ponto de alçá-la, espera tê-la em breve,
e com focinho alerta a fareja de perto;
ela temendo-se apresada, escapa aos dentes
dele e àquela boca que se lhe escancara;
tal a esperança impele o deus, e o medo a virgem.
Mas o perseguidor, com as asas do Amor,
é mais esperto e não se cansa e acossa as costas
da fugitiva e assopra-lhe o cabelo e a nuca.
Ela, esgotada pelo esforço, empalidece,
com o labor da fuga e implora a Peneu:
“Se os rios tem poder divino, pai, socorre-me!
[Ó Terra, traga ou fere o que me traz feridas,]
muda minha aparência, aprazível demais!”
Mal finda a prece, invade-lhe um torpor os membros,
seus seios tenros são por fina casca envoltos,
dos cachos crescem folhas e ramos dos braços;
pés tão velozes fixam-se em lentas raízes,
em seu rosto coberto, um brilho apenas resta.
Entanto, Febo segue amando; e pondo a destra
no tronco, sente o peito tremer sob a casca
e, os ramos abraçando, qual membros, recobre-o
de beijos; mas o tronco se esquiva aos seus beijos.
Diz-lhe o deus: “Já que não podes ser minha esposa,
serás a minha árvore; sempre a terei
nos cabelos, na cítara e aljava, ó loureiro;
entre os chefes do Lácio ouvirás os alegres
cantos e as triunfais pompas no Capitólio.
Serás fiel guardiã do palácio de Augusto,
e às portas estarás protegendo o carvalho;
como jamais corto os meus cachos juvenis,
com perpétua folhagem, serás sempre honrada”.
Peã calou-se; e, inclinando a copa,
feito fronte, o loureiro, com seus ramos, anuiu.

Ovídio (43 A.C ‑ 17 D.C.), Metamorfoses, Livro I. Tradução do latim para português de Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho