08 julho 2017

Máscara Pwo


Máscara Pwo, de um artista anónimo do povo Quioco ou Cokwe, séc. XIX, Angola (Foto:The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos da América)

Conhecida como Pwo (mulher) num passado em que o modelo feminino perfeito era a mulher madura, experiente e sabedora, mas adaptando-se com o tempo aos novos padrões e valores sociais, esta máscara é actualmente designada por Mwana Pwo (jovem mulher ou rapariga). Continua, no entanto, a representar o ancestral feminino que regressa à terra com o poder de validar ou criticar as instituições da sociedade tradicional cokwe.

Efectivamente, entre os Tucokwe, à semelhança do que acontece na grande maioria dos povos de origem bantu, as máscaras constituem objecto de evocação e realização de acções dos antepassados entre os homens, estando o seu surgimento associado a motivações de ordem sócio-religiosa, mais concretamente, ao culto dos ancestrais.

Para este grupo etno-linguístico, há muito fixado na zona nordeste de Angola (mas também nos territórios da Zâmbia e da R. D. Congo), a máscara não se reduz, portanto, a um simples instrumento material e mascarar-se não significa uma mera operação de modificação ou disfarce. O termo mukixi (pl. akixi) com que se designa o mascarado é simultaneamente utilizado para referir o espírito do antepassado representado por cada máscara.

Mas Mwana Pwo é uma máscara viva; integrada na comunidade, faz-se presente em ocasiões especiais para guiar, educar e proteger os seus membros.

Associada às cerimónias rituais de iniciação masculina ou mukanda, onde desempenha um papel preponderante, a única máscara feminina da grande hierarquia das máscaras cokwe, é um dos intermediários entre os jovens iniciados ou tundanji (sing. kandanji) e as suas mães, das quais são separados por longos períodos. Na aldeia, Mwana Pwo apresenta-se dançando no terreiro, para o entretenimento de toda a comunidade que celebra esta passagem.

Depositários da memória colectiva, aqueles mascarados que vivem da profissão de bailarinos, realizam exibições itinerantes pelas povoações vizinhas, ajudando a contar a história do seu povo. Fazendo parte do grupo das máscaras de dança — Akixi a kuhangana —, durante a sua "actuação" Mwana Pwo dá vida às noções espirituais que significa.

O seu rosto, sabiamente talhado por um mestre, dentro dos padrões estéticos da escultura cokwe, é sempre a revisitação de um rosto de mulher por ele eleito dada a beleza dos seus traços. Nesse rosto, o escultor inscreve, em complexas representações, simbolismos e significados ligados à fecundidade, ao género e ao cosmos — no nariz o traço kangongo, sob os olhos as lágrimas ou masoxi, nas faces as marcas circulares lumba, no queixo as tatuagens mipila e na testa o motivo cruciforme que a distingue, ou cingelyengelye.

Dançando de forma peculiar onde devem imperar a contenção e a elegância, executa pequenos movimentos, enfatizados na zona da cintura pelo uso do "cinto" característico da dança ciyandamuyia wa ciyanda. A Mwana Pwo cabe perpetuar as qualidades femininas consideradas pelos Tucokwe; a fertilidade, a beleza, a força da juventude e a delicadeza nas atitudes.

A sua dança — afastada dos modelos convencionais do espectáculo teatral onde a coreografia é pré-estabelecida e as performances são ensaiadas — constitui uma forma de expressão e comunicação em renovação permanente que conjuga elementos infraestruturais da vida social do grupo.

Por oposição, os passos são rigorosamente aprendidos e definidos para esta máscara. Um código privado inclui tudo o que se produz no domínio da improvisação o que, correspondendo a momentos de criatividade pessoal do bailarino, torna esta gestualidade inacessível ou difícil de interpretar por indivíduos de outros grupos culturais. Mas as mulheres cokwe sabem bem que leitura fazer de cada uma das alternativas de interpretação daquele gestual.

As técnicas e os segredos inerentes às danças de mascarados estão contidos numa das áreas de conhecimento reveladas na mukanda pelo que, este saber é absolutamente vedado às mulheres, aspecto que nos poderia remeter para a problemática da organização de género nesta sociedade.

Assim se explica que dentro da máscara — cujo uso é interdito ao sexo feminino — um homem iniciado de estatuto secreto e identidade desconhecida, lhe dê a "alma" e a forma humana que a torna inteligível para o mundo terrestre.

Este desempenho masculino é, no entanto, aceite pelas mulheres cokwe que o reconhecem como uma homenagem ao seu papel primordial dentro da sociedade. Contudo, a actuação desses Akixi não as deve desapontar, o que pressupõe a obrigatoriedade de uma representação do modelo feminino correspondente às suas expectativas. Deste modo, é frequente verem-se estes bailarinos profissionais dançar junto das mulheres para com elas aprenderem os movimentos exactos embora, numa relação recíproca, essa máscara deva ser para as próprias mulheres o exemplo das regras e formas de comportamento social a seguir. Ao contrário do que acontece relativamente à quase totalidade dos mascarados, que as afugentam, as mulheres podem, portanto, aproximar-se e interagir com o Mukixi wa Mwana Pwo.

Apesar dos grandes desequilíbrios provocados na sociedade cokwe, pelo contexto de guerra vivido em Angola, os mascarados continuam a fazer-se presentes agora, em tempos de paz, para partilhar a sabedoria ancestral com as novas gerações.

Continuando a formar parte integral da visão que os Tucokwe têm do mundo, Mwana Pwo integra, na sua forma e na sua essência, o grupo dos Akixi que contribuem para a perpetuação das diligências sociais e culturais de transmissão de um conhecimento colectivo e para a negociação das grandes preocupações e aspirações humanas.

Validada apenas quando alguém a usa — pois só o binómio máscara-bailarino é portador dessas forças "sobrehumanas" —, Mwana Pwo pode ser apreciada numa perspectiva de riqueza e complexidade artísticas, mas sem nunca as dissociar da sua capacidade para articular novas ideias, normas e valores, ou seja, de intervir (modificar) na vida moral e espiritual dos indivíduos, enriquecendo, com o seu significado simbólico, o o curso da sua existência quotidiana.

Através dela se celebra a esposa, a irmã, a mãe.
Através dela se declara a autoridade da mulher na sociedade cokwe, talvez ainda numa remota homenagem à rainha Lweji.


Maio de 2004

Ana Clara Guerra Marques, coreógrafa angolana; fundadora e diretora artística da Companhia de Dança Contemporânea de Angola, in Mwana Pwo ou a representação feminina na hierarquia das máscaras Cokwe

NOTA — Na palavra Cokwe e suas derivadas, a letra c pronuncia-se aproximadamente tch: Tchokwe.

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