21 abril 2019

Domingo de Páscoa

É domingo de Páscoa.
Aqui em Cangamba,
não há flores,
nem sorrisos brancos,
nem aleluias,
nem cristos enfeitados.

Aqui as flores,
são os olhos grandes das crianças
negras,
e os sorrisos magros
dos seus lábios grossos.

Aqui chamam jardim aos Kimbos,
onde as flores nascem nuas,
crescem sem cultivo
e têm um perfume de catinga.

É Cangamba num domingo de
Páscoa.
Em que nada difere dos outros
domingos, nem dos restantes
364 dias do ano.

Há um clima de sonho,
uma beleza Luchaze, e uma alma
Quioca.

É domingo de Páscoa.
Os habitantes de Cangamba,
não se apercebem de que existe um
outro mundo e que está em festa.
Não, todo o seu mundo está aqui.
O seu mundo são as lavras,
a pesca e o batuque.

Não sei porquê,
mas gosto desta gente,
acolho com simpatia
a saudação "moio" do seu dialecto.
Não entendo a sua linguagem,
mas contemplo a verdade,
verdade de trapos sujos,
de olhos magoados,
mentiras disfarçadas,
miséria ignorante.

Não acredito que dão
conta daquilo que são,
não atingem coisa diferente
daquilo que os seus olhos vêem,
os seus ouvidos percebem.

Mas, acredito nos rebentos
destes troncos velhos
e na esperança de melhores tempos.

Cangamba, Moxico, Angola, ano de 1972

Sá Pacheco, ex-militar português


GLOSSÁRIO

Kimbos - aldeias

Luchaze - referente aos Luchazes, a etnia maioritária em Cangamba; o próprio município que tem a sua sede em Cangamba chama-se Luchazes

Quioca - referente aos Quiocos ou Cokwe (pronuncia-se Tchókwe), uma etnia também presente em Cangamba, bem como em quase todo o Leste de Angola

Moio - o mesmo que moyo, saudação em idioma quioco ou cokwe quando dirigida a uma só pessoa



Pessoas de Cangamba, Angola (Foto de autor desconhecido)

Comentários: 1

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Ressuscitemo-nos
uns aos outros
de outra forma
continuaremos mortos

boas aleluias

21 abril, 2019 16:03  

Enviar um comentário