28 dezembro 2024

Lenda da campainha de bronze


Em primeiro plano, o castelo de Monsanto, com a singela capela de Santa Maria do Castelo no seu interior; em segundo plano, "aninhada" à sombra do castelo, a vila de Monsanto, concelho de Idanha-a-Nova (Foto: Duarte Fernandes Pinto)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Há muito tempo já, governava o castelo de Monsanto um homem duro, resoluto, positivo nas suas acções, mas um tanto descrente das coisas divinas. Como o seu povo tinha por hábito e devoção fazer arder na noite de Natal um pesado madeiro em honra do Menino Jesus, precisamente à porta da capela de Santa Maria do Castelo, ele entendeu que essa devoção era imprópria de um povo equilibrado, pois forçava-o ao sacrifício de transportar pela encosta acima o madeiro que lhes parecia mais digno de tão régio Menino. E resolveu pôr cobro a tão piedoso acto. Ora o povo adora as suas tradições, e tentar apagá-las é para ele mais negra sina que a própria fome. Assim, toda a povoação ficou em louco alvoroço quando a nova começou a correr.

O Tio João da Quinta, um dos homens mais sensatos do lugar, entrou desenfreado em casa, gritando para a mulher.

— Não querem lá ver esta! Isto não pode ser! É um pecado!

A Tia Lucrécia abriu os olhos num espanto, ao ver o seu homem em tal desespero. E indagou:

— Homem, que te aconteceu?

Ele encarou-a como se fosse ralhar-lhe. E continuou gritando:

— Aconteceu a mim…. a ti… e a todos os moradores deste lugar! Mas não está certo! Não está certo! Vai haver castigo, lá isso vai!

Cada vez mais surpreendida, Tia Lucrécia voltou a perguntar, já muito inquieta:

— Mas o que foi, homem?

Ele deu um murro sobre a pobre mesa, que gemeu.

— Ora o que havia de ser! O senhor Governador deu ordem para que o madeiro não seguisse esta tarde para a porta da capela!

— Então para onde é que ele há-de ir?

Parou o Tio João de gesticular. Pôs-se mesmo em frente da mulher, a ler-lhe no rosto o efeito das palavras que ia proferir.

— Ora aí está! O madeiro vai ser todo partidinho em achas, para ser queimado na lareira do castelo!

Tia Lucrécia recuou, abrindo a boca num espanto.

— Pode lá ser!

— Pois é como te digo.

A mulher repetiu como para si mesma, ainda de olhos esbugalhados:

— Na lareira do Governador! Essa nem ao diabo lembrava!…

E persignando-se, aflita:

— Cruzes… figas, Canhoto!

O homem teve um risinho sem vontade, e exclamou:

— Pois digas o que disseres… essa ideia teve-a o senhor Governador!

E suspirando fundo, acrescentou:

— Grande perigo está sobre a sua cabeça! Não quereria estar na pele dele, não! Desfeitear assim o Menino Jesus… E logo nesta noite!

Tia Lucrécia olhava agora uma imagem do Menino Jesus colocada sobre uma cómoda tosca. Depois desviou o olhar, pensativa, e indagou:

— E o povo? Que diz o povo?

Tio João abanou a cabeça. Voltou a encolerizar-se.

— Que diz o povo? Que dizes tu? Que digo eu?… Estamos todos revoltados! Mas ele é o Senhor Governador! É ele quem manda! Que pode o povo contra ele?

Voltou a suspirar fundo.

— E um madeiro tão bom! Custou tanto a arranjá-lo… Parece impossível! O madeiro do Menino Jesus!

Tia Lucrécia concluiu, num eco:

— Que grande pecado!

Voltou a animar-se, o Tio João.

— Olha, pragas não lhe faltam! O povo está pior do que uma bicha. Grande castigo vai cair sobre o castelo!

E encolhendo os ombros:

— Ora! Ele que se havenha! Por mim tenho cá uma ideia…

Voltou a curiosidade a reflectir-se na expressão da mulher.

— E que ideia tiveste, homem?

Ele entusiasmou-se:

— Que ideia tive?… Só te digo que o Menino Jesus não pode ficar sem o seu madeiro.

— E que podes fazer tu?

— Ir buscar outro madeiro!

— E levam-no lá acima, sem ordem do senhor Governador?

Tio João pareceu hesitar.

— Bem… os outros têm medo! Mas eu…

— Tu… o quê?

— Eu… penso que poderei levá-lo lá acima sozinho!

Tia Lucrécia gritou, aflita:

— Estás doido, homem? Com uma invernia destas… E sozinho na montanha?…

Ele tentou sorrir.

— Ora! Ainda sou forte e novo demais para precisar de ajudas!

— Mas sozinho?… Ninguém é capaz de te vir ajudar?

— Olha: para falar a verdade… eu é que não quero companhias…

Continuava perplexa, a Tia Lucrécia.

— Não queres companhias! Mas tu não estás bom, homem! Não queres, porquê?

— Porque, se a coisa se espalhar, ele proíbe que eu queime o madeiro. E então… é que teria de desobedecer-lhe, compreendes? Ele só disse que queria o madeiro que era para levarmos para a porta da capela. Mais nada!

Ela meneou a cabeça.

— Cuidado, homem! Se a moura te aparece…

— Qual moura?

— A moura que está encantada na gruta. Ninguém pode subir a montanha sozinho, em vésperas de Natal!

Ele encolheu os ombros.

— Ora adeus!… Histórias dos nossos avós…

Empertigou-se a mulher.

— O quê, não acreditas?

— Eu, não. Só vendo.

Voltou a benzer-se, a Tia Lucrécia.

— Oh, Virgem Santa! Que te livres disso, porque esta moura dizem que é das más! Tem pactos com o Demónio!

Ele tentou gracejar.

— Pois olha: se assim é, foi a moura que impediu que levassem o madeiro lá acima, e fez com que o Governador tivesse esta triste ideia. Pois vou contrariá-la!

Tia Lucrécia quase chorava.

— Oh, homem, vê lá o que fazes!

— Deus é grande!

E estendendo a mão:

— Dá-me daí a minha manta e o machado.

Ela foi buscar a manta. Vinha mais pálida que a sua blusa branca.

— Estou toda a tremer!… Toma lá a manta. O machado está aí ao pé de ti.

Ele pôs a manta ao ombro e pegou no machado. Olhou a mulher bem de frente.

— Quando esta gente souber que fui queimar o madeiro sozinho, vai abrir a boca de pasmo!

— Se te parece!…

— Mas não dês já com a língua nos dentes! Deixa que eu volte.

— Está descansado. Mas não demores muito… Tenho tanto medo!

O homem saiu. Ao abrir a porta, uma lufada de vento frio bateu-lhe no rosto. Caía neve. Puxou para si a gola do casacão, embrulhou-se na manta, e começou a subir a montanha. O vento zunia pela encosta escarpada, como uivos de feras ou gritos de almas penadas…

Uivava o vento como lobo esfaimado. O frio punha rugas fundas no rosto do Tio João. Agora, ele ia subindo devagar. Cortara o lenho e levava-o sozinho, para a velha capela de Santa Maria do Castelo. Arfava de cansaço. E ainda tinha de subir um bom bocado.

O vento uivou com mais força. Ele parou um instante, a descansar. De súbito, pareceu-lhe ouvir um grito. Levantou a cabeça. Espevitou os sentidos. Que seria? O vento?... Outro grito soou, cortado por lamentos. Eram gritos de mulher. Donde vinham? Talvez da gruta. Pousou o madeiro no chão e correu para lá. De súbito, estacou. Que via? Um tesouro! E ali, em plena serra! Jamais alguém o descobrira! Que enorme riqueza! Tanto ouro junto! E seria mesmo ouro?... Aproximou-se mais. O vento parecia ter acalmado. A neve cessara de cair. Era ouro mesmo. Moedas e moedas sem conta! E campainhas… tantas campainhas de ouro! Que maravilha!

Uma voz de mulher chamou-o de mansinho:

— João, não tenhas medo. Tudo isto te pertence!

Estremeceu. Parecia ouvir, num alerta, a voz de Lucrécia perguntando ansiosa:

— E se a moura te aparece?…

Respirou fundo. Ele não estava a sonhar e não acreditava em mouras encantadas! E se o tesouro fosse, de facto, mourisco? Teria de praticar grandes feitos para o possuir. Pelo menos era assim que ouvira dizer à mãe e à avó, quando lhe contavam histórias de mouras encantadas. Feitos? Que poderia ele fazer? Não, era melhor não ser ambicioso. Riquezas que não lhe pertenciam, para que as queria? Subira o monte para levar o madeiro ao Menino Jesus. Pois iria até ao fim da tarefa qu se havia proposto fazer. Como recordação dessa visão admirável e estranha, levaria apenas uma campainha.

Estendeu o braço. Tocou com os dedos, ao de leve, no ouro. Silêncio absoluto à sua volta. Fez pressão nos dedos. Retirou o braço, com a campainha na mão. Voltou as costas ao tesouro. Ia partir. Mas a voz estranha da mulher que há pouco lhe falara chamando-o pelo seu nome, de novo se fez ouvir.

— Que fazes? Vais fugir? Agora não! Tocaste no meu ouro e, portanto, pertences-me!

O Tio João da Quinta olhou para o lado donde vinha a voz. Uma linda mulher envolta num manto branco olhava-o com certa dureza. O coração bateu-lhe mais apressado. Não era medroso, mas aquela aparição não lhe dizia nada de bom. Perguntou:

— Quem és tu, que sabes o meu nome?

Ela respondeu:

— Sou uma pobre moura há muito aqui encantada. Tu me procuraste no dia e hora aprazados pelo meu destino. Agora é preciso que me salves, ou ficarás aqui comigo para sempre!

— E que preciso fazer?

— Leva este ouro e constrói aqui um novo castelo. Mas antes disso tens de destruir a capela lá de cima!

João revoltou-se.

— Destruir a capela? Para quê?

— Porque ninguém mais reinará neste monte senão eu… e tu!

João olhou o tesouro. Olhou a mulher que lhe falava. Sentiu medo. Um medo como nunca tinha sentido. Gritou:

— Tu não és moura… És o Demónio, com disfarce de mulher! Vai-te! Não te quero!

Ela falou uma vez mais:

— É escusada a tua revolta. Já me pertences!

Olhando a capelinha lá no alto, João persignou-se, dizendo:

— Valha-me Nossa Senhora do Castelo!

Um novo grito de mulher cortou o espaço. A sua voz fez renascer o vento. Mas sobre essa voz uma outra se fez ouvir:

— Em bronze se transforme a campainha em que tocaste!

Um ruído semelhante ao trovão ecoou no espaço. O vento voltou a uivar. A neve a cair. O frio gelava. Mas a mulher moura e o tesouro haviam desaparecido. Ele olhou então para a campainha que tirara, e ficou boquiaberto: a campainha, que fora de ouro, estava transformada em bronze!

O homem caiu de joelhos. Orou frases de gratidão sincera à Virgem do Castelo.

— Senhora! Obrigado por me teres salvo! Vou levar-te já o madeiro que trago para o Deus Menino, e dar-te-ei ainda esta campainha de ouro que transformaste em bronze. Ficará para uso da tua capela, como sinal de gratidão de um pobre mortal!

A neve continuava a cair e o vento a uivar. Tio João levantou-se. Pegou no madeiro que havia deixado cair no chão. Colocou-o sobre os ombros e reencetou a caminhada. Mais satisfeito. Mais tranquilo. Mais feliz!



Gentil Marques, Lendas de Portugal

Comentários: 1

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Mais uma bela lenda que não resisti a ler até ao fim.

Não sei se o próximo ano será melhor do que o que se está a findar e costumo ficar contente pelo facto de os dias já estarem a crescer e, não tarda, começarem as primeiras e tímidas manifestações da Primavera...

Um bom recomeço de dias mais longos e luminosos, Fernando!

28 dezembro, 2024 14:25  

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