27 fevereiro 2025

Tortura

Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida verdade, o Sentimento!
— E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!…

Sonhar um verso de alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
— E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento…

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!

Florbela Espanca (1894–1930)


(Foto de autor desconhecido)

25 fevereiro 2025

Liberdade



Freedom, um curtíssimo filme de desenhos animados do cartunista italiano Bruno Bozzetto

23 fevereiro 2025

A romãzeira do macaco


Uma romãzeira carregada de romãs (Foto: Mauro de Castro)

Era uma vez um macaco que estava em cima de uma oliveira a comer uma romã; sucedeu que caiu um grão da romã para a terra em que estava a oliveira e passado pouco tempo nasceu uma romãzeira. Quando o macaco viu a romãzeira nascida, foi-se ter com o dono da oliveira e disse-lhe:

— Arranca a tua oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o homem:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com a justiça e disse-lhe:

— Justiça, prende o homem
para que arranque a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde a justiça:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o rei e disse-lhe:

— Rei, tira a vara à justiça
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o rei:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com a rainha e disse-lhe:

— Rainha, põe-te de mal com o rei
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde a rainha:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o rato e disse-lhe:

— Rato, rói as fraldas à rainha
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o rato:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o gato e disse-lhe:

— Ó gato come o rato
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o gato:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o cão e disse-lhe:

— Ó cão morde o gato
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o cão:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o pau e disse-lhe:

— Pau, bate no cão
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o pau:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o lume e disse-lhe:

— Lume, queima o pau
para ele bater no cão,
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o lume:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com a água e disse-lhe:

— Ó água, apaga o lume
para ele queimar o pau,
para ele bater no cão,
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde a água:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o boi e disse-lhe:

— Ó boi, bebe a água
para ela apagar o lume,
para ele queimar o pau,
para ele bater no cão,
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o boi:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com o carniceiro e disse-lhe:

— Carniceiro, mata o boi
para ele beber a água,
para ela apagar o lume,
para ele queimar o pau,
para ele bater no cão,
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

Responde o carniceiro:

— Não estou para isso.

Foi-se o macaco ter com a morte e disse-lhe:

— Ó morte, leva o carniceiro
para ele matar o boi,
para ele beber a água,
para ela apagar o lume,
para ele queimar o pau,
para ele bater no cão,
para o cão morder o gato,
para ele comer o rato,
para ele roer as fraldas à rainha,
para ela se pôr de mal com o rei,
para ele tirar a vara à justiça,
para ela prender o homem,
para ele arrancar a oliveira,
para crescer a minha romãzeira.

A morte ia para levar o carniceiro e ele disse-lhe:

— Não me leves
que eu mato o boi.

Disse o boi:

— Não me mates
que eu bebo a água.

Disse a água:

— Não me bebas
que eu apago o lume.

Disse o lume:

— Não me apagues
que eu queimo o pau.

Disse o pau:

— Não me queimes
que eu bato no cão.

Disse o cão:

— Não me batas
que eu mordo o gato.

Disse o gato:

— Não me mordas
que eu como o rato.

Disse o rato:

— Não me comas
que eu roo as fraldas à rainha.

Disse a rainha:

— Não me roas as fraldas
que eu ponho-me de mal com o rei.

Disse o rei:

— Não te ponhas de mal comigo
que eu tiro a vara à justiça.

Disse a justiça:

— Não me tires a vara
que prendo o homem.

Disse o homem:

— Não me prendas
que eu arranco a oliveira.

E o homem arrancou a oliveira e o macaco ficou com a sua romãzeira.



Conto popular recolhido em Coimbra por Adolfo Coelho (1847–1919)

21 fevereiro 2025

Nom sei como me salv'a mia senhor

Nom sei como me salv'a mia senhor
se me Deus ant'os seus olhos levar,
ca, par Deus, nom hei como m'assalvar
que me nom julgue por seu traedor,
              pois tamanho temp'há que guareci
              sem seu mandad'oir e a nom vi.

E sei eu mui bem no meu coraçom
o que mia senhor fremosa fará
depois que ant'ela for: julgar-m'-á
por seu traedor com mui gram razom,
              pois tamanho temp'há que guareci
              sem seu mandad'oir e a nom vi.

E pois tamanho foi o erro meu,
que lhe fiz torto tam descomunal,
se mi a sa gram mesura nom val,
julgar-m'-á por en por traedor seu,
              pois tamanho temp'há que guareci
              sem seu mandad'oir e a nom vi.

[E] se o juizo passar assi,
ai eu cativ'! e que será de mim?

D. Dinis (1261–1325), trovador e rei de Portugal


GLOSSÁRIO
me salv'a mia senhor — me desculpar à minha senhora
ca — porque
m'assalvar — me desculpar
guareci — vivi
mandad'oir — notícias ouvir
mesura — generosidade
se o juizo passar assi — se o [seu] entendimento for assim

NOTA EXPLICATIVA
O trovador está há tanto tempo sem dar notícias à sua amada, que reconhece que esta terá razão se julgar que ele a traiu.



Cantiga de amor Nom sei como me salv'a mia senhor, de D. Dinis (1261–1325), pelo barítono e maestro inglês Paul Hillier. D. Dinis escreveu não só o poema, mas também a música, cuja reconstituição foi feita por Manuel Pedro Ferreira. Salvo numa introdução inicial, nesta gravação a cantiga não tem qualquer acompanhamento instrumental, mas é de supor que D. Dinis a cantasse fazendo-se acompanhar por um alaúde, uma sanfona, uma harpa ou outro instrumento de cordas

19 fevereiro 2025

Música para quatro saxofones


Divertimento para Quarteto de Saxofones, do compositor e maestro português Marcos Romão dos Reis Júnior (1917–2000), por membros do Ensemble de Sopros da Associação das Filarmónicas do Concelho de Leiria

15 fevereiro 2025

A inteligência artificial também erra


(Ilustração de autor desconhecido)

Errare humanum est é uma conhecida locução latina que significa "errar é humano". Todos os seres humanos cometem erros: uns graves, outro desprezáveis e até alguns que poderão ser fatais. E as máquinas, também se enganam? Se sim, porquê e como?

Uma máquina que seja completamente estúpida não se engana, porque se limita a fazer sempre da mesma maneira aquilo para que foi feita, uma e outra vez, ad æternum. Já quanto à chamada inteligência artificial (IA), o caso muda completamente de figura. Já existem muitos e diversos sistemas de inteligência artificial, que têm características diferenciadas consoante o fim a que se destinam, mas o mais popular de todos é, sem dúvida nenhuma, o chamado LLM (Large Language Model, ou seja, Grande Modelo de Linguagem), que é uma forma de inteligência artificial generativa de que o ChatGPT e o DeepSeek são neste momento os exemplos mais conhecidos, com milhões e milhões de utilizadores espalhados pelo mundo.

Ao contrário das máquinas estúpidas, a IA generativa pode enganar-se e pode assim enganar os seus utilizadores humanos de forma completamente convincente, mesmo que estes estejam atentos e prevenidos. Como poderemos nós saber se o ChatGPT ou outro sistema semelhante nos está a enganar ou a dizer a verdade? O que diferencia os erros das máquinas dos erros dos humanos?

Quando o chatbot (podemos chamar-lhe interlocutor) de uma IA generativa com o qual estamos a interagir, nos debita lixo sem pés nem cabeça, não temos dúvidas de que a IA teve uma "alucinação" e mandamo-la dar uma volta ao bilhar grande. Mesmo quando o chatbot nos apresenta frases gramaticalmente corretas, mas que são manifestamente disparatadas, tal como aconselhar-nos a comer pedras, também a mandamos bugiar. Estas e outras afirmações ridículas feitas pelo ChatGPT e afins já aconteceram e irão continuar a acontecer, espera-se que com uma frequência cada vez menor. O problema surge quando os erros da IA generativa são de tal maneira subtis que acabamos por acreditar neles, tal como por vezes acreditamos em algumas das fake news que agora pululam por aí, por mais prevenidos que estejamos, porque parecem fazer sentido e fingem ser credíveis.

O que é que distingue os erros cometidos pelas máquinas dos erros cometidos pelos humanos? Há diferenças? Há. Os humanos enganam-se muitas vezes nas contas, por exemplo. Eu engano-me quase sempre, aliás. A quantidade de erros que cometemos quando fazemos contas varia consoante o estado de fadiga em que nos encontrarmos. Quanto mais fatigados estivermos, mais nos enganamos. A IA generativa, pelo contrário, não se fatiga, não precisa de fazer uma pausa para tomar café ou desentorpecer as pernas. Os seus erros são sistemáticos e ocorrem com uma frequência mais ou menos constante ao longo do tempo. As suas respostas erradas aparecem de uma forma aleatória e até podem resultar numa mistura de afirmações corretas com afirmações erradas, tornando-se difícil distinguir umas das outras.

Muitos erros humanos podem resultar da ignorância ou, pelo menos, de um conhecimento deficiente relativamente a um dado assunto. Já a inteligência artificial generativa, como os LLM, não tem dúvidas. Ela faz uma afirmação completamente idiota com a mesma aparente convicção de quem tem a certeza absoluta do que diz. A IA generativa limita-se a consultar a sua incomensurável base de dados, recolhe uns dados, recolhe outros, compara-os, aceita uns (geralmente os que lhe aparecem mais vezes), rejeita outros, interliga os que aceitou, procura analogias, corta aqui, acrescenta acolá, elabora um texto (ou cria uma imagem, ou o que for), verifica se está correto do ponto de vista gramatical (ou outro) e apresenta-nos o resultado.

A IA generativa não tem conhecimentos; tem dados. Não tem bom senso; tem raciocínio lógico. Não tem intuição; tem dedução. Não sabe sequer se sabe ou se não sabe; o que ela "sabe", é o que está registado nos seus monstruosos centros de dados, que são continuamente alimentados pelos seus rastreadores (web crawlers) que permanentemente pesquisam e recolhem tudo o que encontram na web, incluindo o conteúdo deste despretensioso blog. Se nos seus centros de dados a IA generativa encontrar um texto irónico ou sarcástico, leva‑o a sério, porque também não sabe o que é a ironia. É possível que alguns dos disparates com que ela nos brinda possam vir de textos humorísticos, como um qualquer texto que proponha que se comam pedras ao pequeno‑almoço para emagrecer… A IA poderá então concluir que comer pedras faz bem à saúde, porque o texto lho diz, e pimba!, diz uma asneira completamente absurda. Não se pode confiar cegamente na IA generativa. Ainda por cima, quanto mais elaborados e complexos forem os raciocínios que ela for chamada a desenvolver, maior será a probabilidade de errar em algum ponto.

A IA generativa é passível de correção e de melhoramentos ao longo do tempo. Não é estática. Não é por acaso que ela se chama generativa. O ChatGPT está cada vez melhor e o mesmo se passa com os outros LLM, que se corrigem a si próprios em função das respostas e reações que vão recebendo dos seus utilizadores humanos. A chamada aprendizagem-máquina (machine learning) existe mesmo e funciona mesmo. As melhores formas de lidar com os erros da IA e de corrigi-los, antes de eles chegarem ao utilizador final, são atualmente objeto de intensa investigação por parte dos engenheiros e cientistas envolvidos no seu desenvolvimento. Do trabalho destes só poderemos esperar avanços cada vez maiores, tanto para o bem como para o mal, porque a tecnologia, em si, é neutra; boa ou má será a utilização que se fizer dela.

09 fevereiro 2025

Ella Fitzgerald in a mellow tone


In a Mellow Tone, um tema de Duke Ellington, na voz de Ella Fitzgerald, saxofone tenor de Ben Webster, piano de Oscar Peterson, contrabaixo de Ray Brown, guitarra de Herb Ellis e bateria de Alvin Stoller. Apenas áudio. Gravado em 1957

07 fevereiro 2025

O auriga de Motya


Auriga de Motya, c. 470 A.C., estátua de mármore de escultor grego anónimo. Museu Giuseppe Whitaker, Mozia, Marsala, Itália
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Auriga é o nome que se dava na Antiguidade a um condutor de carros de combate ou de corrida puxados por cavalos. Auriga de Motya é o nome de uma escultura grega, que se considera ser uma das estátuas mais representativas da Antiguidade Clássica. Calcula-se que tenha sido feita no ano 470 A.C., aproximadamente, por um escultor grego cujo nome não se conhece.

Esta estátua foi descoberta em 1979, quando se faziam escavações no que resta da antiga cidade de Motya (Mozia em italiano), situada numa ilha que agora se chama São Pantaleão e fica junto ao extremo ocidental da Sicília, Itália. A estátua foi encontrada sem braços, sem pés, com a cabeça separada do corpo e o rosto danificado. Foi possível colocar a cabeça no seu lugar, mas as partes que faltam não foram encontradas.

A estátua Auriga de Motya mostra-nos um auriga representado numa atitude que parece ser de triunfo e de orgulho, como se tivesse acabado de vencer uma corrida de carros nuns quaisquer jogos pan-helénicos, fossem eles olímpicos ou outros. São visíveis dois dedos e vestígios dos outros dedos da mão esquerda, o que sugere claramente que o auriga devia ter essa mão pousada na anca do mesmo lado. Quanto ao braço direito, só podemos tentar adivinhar que ele estaria erguido, eventualmente para que o auriga se pudesse coroar como vencedor de uma corrida. Existem pequenos buracos no cimo da cabeça que parecem indicar que eles teriam servido para fixar um qualquer adereço metálico, que podia ser uma coroa de folhas de oliveira, mas também podia ser um elmo.

Nesta escultura, o auriga apresenta-se vestido com uma diáfana e comprida túnica e, por cima da túnica, tem uma faixa atravessada sobre o peito, com dois pequenos buracos à frente, provavelmente para a fixação de outro adereço metálico. Na vida real, esta faixa era feita de couro e servia para proteger o corpo do auriga do atrito provocado pelas rédeas dos cavalos. Numa batalha, um auriga precisava de utilizar as suas mãos para disparar setas contra o inimigo e, por isso, não podia usá-las ao mesmo tempo para segurar as rédeas dos cavalos. As rédeas eram passadas em volta do tronco do auriga, que as controlava com movimentos do corpo, ao mesmo tempo que as suas mãos manuseavam o arco e as flechas.

Foi dito acima que esta notável escultura foi encontrada no local de uma antiga cidade chamada Motya, junto à Sicília, que como se sabe não fica na Grécia. Poderíamos então pensar que Motya seria uma colónia grega, mas não é verdade. Motya era uma colónia, sim, mas púnica, isto é, de Cartago. Ora Cartago foi uma cidade fundada no norte de África pelos fenícios e não pelos gregos. A cultura cartaginesa era por isso semita e não grega. Então, como foi que uma estátua grega foi parar a uma colónia púnica? Não se sabe. Há várias teorias, a mais plausível das quais talvez seja a de que a estátua do Auriga de Motya tenha sido fruto de um saque ocorrido no decurso de uma das várias guerras que opuseram Cartago à Grécia, mas ninguém tem a certeza.

04 fevereiro 2025

Galope de Kabalevsky


Galope, n.º 2 da suite Os Comediantes, op. 26, do compositor russo Dimitri Kabalevsky (1904–1987), numa gravação histórica com a Orquestra de Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy

02 fevereiro 2025

O Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga


Estes são os grupos tumulares do lado da Epístola (lado direito de quem está virado para a capela-mor) do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga. À esquerda está o túmulo de Duarte de Lemos, com a sua estátua orante, e à direita o de sua esposa, D. Joana de Melo. Na igreja matriz de Góis existe um túmulo semelhante ao de Duarte de Lemos, que é o túmulo de Luis da Silveira e que poderá ser do mesmo autor (Foto de Manuelvbotelho)
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Estes são os grupos tumulares do lado do Evangelho (lado esquerdo de quem está virado para a capela-mor) do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga, com os túmulos dos dois primeiros senhores de Trofa, Gomes Martins de Lemos e seu filho João Gomes de Lemos, juntamente com as respetivas mulheres (Foto de Manuelvbotelho)
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Pormenor da estátua orante de Duarte de Lemos, no seu túmulo do Panteão dos Lemos, em Trofa do Vouga (Foto: Jgqa56)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Os Lemos foram uma orgulhosa família de senhores de uma povoação situada no concelho de Águeda, chamada Trofa, nome ao qual se acrescenta frequentemente o nome Vouga (Trofa do Vouga), para evitar confusões com uma outra Trofa, que hoje é cidade do distrito do Porto. A família Lemos tinha as suas raízes na Galiza, como o nome claramente sugere, e laços de parentesco com outras personalidades de primeiro plano da nobreza castelhana, o que explica a sua empáfia.

A personalidade que mais se destacou no seio desta família foi Duarte de Lemos (c.1480–1558), que foi o 3.º senhor de Trofa. Duarte de Lemos partiu para a Índia em 1505 com D. Francisco de Almeida, regressou logo a seguir ao Reino e partiu de novo em 1508. Após uma sucessão de acontecimentos que não vêm ao caso, Duarte de Lemos acabou por ser nomeado pelo rei D. Manuel capitão-mor do Mar da Etiópia, Arábia e Pérsia, enquanto Afonso de Albuquerque o foi da Índia.

Duarte de Lemos achou que tinha poucos homens e escassos meios para a vastíssima costa que tinha ficado à sua responsabilidade. Resolveu pedir mais homens e mais naus a Afonso de Albuquerque, que recusou o seu pedido. Duarte de Lemos foi mesmo pessoalmente à Índia (provavelmente a Cochim, onde Albuquerque estaria), mas nem assim obteve uma resposta favorável. Mais: não só Afonso de Albuquerque recusou satisfazer o pedido de Duarte de Lemos, como quis que este o auxiliasse a conquistar Goa. Deve ter havido uma discussão acalorada entre ambos e Duarte de Lemos regressou à sua base (em Socotorá, uma ilha no Oceano Índico em frente à entrada para o Mar Vermelho) sem conseguir o que pretendia. Entretanto, e mesmo sem o apoio de Duarte de Lemos, Afonso de Albuquerque conseguiu conquistar Goa, ainda que com terríveis dificuldades.

O desentendimento entre Duarte de Lemos e Afonso de Albuquerque chegou ao conhecimento do rei D. Manuel, que tomou partido por Albuquerque. D. Manuel retirou a Duarte de Lemos os seus cargos de responsabilidade, ordenou o seu regresso ao Reino e atribuiu esses cargos a Afonso de Albuquerque, que ficou com jurisdição sobre todo o Oceano Índico.

Afonso de Albuquerque não ficou a descansar, saboreando a sua vitória. Conquistou Goa, como já se disse, e também conquistou Calecute, Ormuz, Malaca, Diu, e só não conquistou Adém, à entrada do Mar Vermelho, porque as coisas lhe correram mal, tendo sido ferido no assalto a esta cidade e ficado com um braço inutilizado. Tudo isto ele fez aos 60 anos de idade, mais ou menos, o que no séc. XVI já devia ser uma idade muito considerável! As ambições de Afonso de Albuquerque eram de tal maneira faraónicas, no verdadeiro sentido do termo, que ele chegou a pensar desviar o curso do rio Nilo, para assim fazer vergar o sultão do Cairo, seu principal inimigo!

Duarte de Lemos, por sua vez, regressou a Trofa, certamente zangado com Afonso de Albuquerque e com o rei, mas riquíssimo. Não foi em vão que ele andou pelos mares do Oriente. Duarte de Lemos encomendou um requintado panteão, onde ele pudesse ser sepultado juntamente com os parentes que o tinham antecedido como senhores de Trofa. É o agora chamado Panteão dos Lemos, uma maravilha da arte renascentista, que está na capela-mor da igreja matriz de Trofa do Vouga.

Desconhecem-se os nomes dos autores do Panteão dos Lemos. Apenas se podem fazer conjeturas, falando-se em nomes como João de Ruão, Nicolau de Chanterenne e Hodart, este como possível autor da estátua orante de Duarte de Lemos. Todos estes artistas foram notáveis escultores e arquitetos franceses, que muito vieram enriquecer a arte em Portugal, mas neste caso não se sabe ao certo quem foi que fez o quê.

Para acabar a história, refira-se que, após a conclusão do panteão, Duarte de Lemos partiu para o Brasil e estabeleceu-se numa ilha, que é a ilha onde está agora a cidade de Vitória, capital do estado do Espírito Santo. Duarte de Lemos acabou por morrer no Brasil e foi trasladado para o seu panteão em Trofa do Vouga, onde está sepultado.