29 abril 2025

Branca-Flor


(Foto de autor desconhecido)


Era de uma vez um rei que era muito jogador e tinha por costume jogar com o seu criado particular. Um dia em que já tinha perdido muito ao jogo, jogou a própria coroa e o criado ganhou-a. Vendo-se o criado de posse da coroa não cabia em si de contente, mas pouco tempo lhe durou o contentamento, pois quando ele menos o esperava, vieram duas pombas e roubaram-lhe a coroa, levando-a nos bicos.

Contou o criado isto ao rei e este disse-lhe: — «Se tu fores capaz de me restituires a coroa dar-te-ei a minha filha em casamento.»

Chamava-se a filha do rei Branca-flor e tanto ela como a rainha sua mãe eram feiticeiras. A mãe podia fazer quanto quisesse desde a madrugada até á meia noite e Branca-flor podia usar dos seus poderes de noite e de dia.

Quando Branca-flor soube da perda da coroa, transformou-se numa pomba e fugiu do palácio, com tenção de voltar só quando seu pai a tivesse de novo em seu poder.

Partiu o criado do rei em busca das pombinhas que tinham levado a coroa e como passasse muito tempo sem as encontrar foi ter ao reino da chuva para ver se ali lhe davam notícias delas. Chegado lá, encontrou uma velhinha que lhe disse ser mãe da chuva, e como ele lhe dissesse o que pretendia, mandou-o entrar para casa e esperar que viesse a filha. Passados poucos momentos chegava ela e disse logo: — «Senhora mãe, aqui entrou gente pois cheira-me a sangue humano.» Respondeu-lhe a mãe: — «Não te enganas, minha filha; está aqui um criado do rei que deseja que lhe digas se viste duas pombinhas que levavam uma coroa real nos bicos.» Respondeu a chuva: — «Não as vi, mas talvez o meu compadre vento as visse, pois esse quase sempre entra em toda a parte.»

Foi o criado ter ao reino dos ventos; esperou que o rei dos ventos entrasse em casa e logo sentiu o grande barulho que ele fazia. Da mesma forma que a chuva, assim ele respondeu, acrescentando mais: — «A mim tapam-me todos os buracos e janelas, por isso nada sei dessas pombas, mas o sol com certeza há de saber, pois as aves gostam todas muito do sol.»

Partiu o criado para o reino do sol e nestas viagens iam-se passando anos, pois ele tinha de atravessar ares e nuvens para ver se encontrava o que desejava. Chegado ao reino do sol logo este lhe apareceu e lhe disse: — «As pombas que procuras estão no reino dos pássaros; agora estão elas fazendo os seus ninhos dentro da coroa que te roubaram; monta no meu cavalo e parte para lá; espera que as pombas saiam, tira a coroa e logo o rei dos pássaros te oferecerá as suas asas para te conduzir ao palácio do rei teu amo.»

Montou o criado no cavalo do sol e tudo se passou como ele tinha dito. Chegado ao palácio do rei com a coroa, disse-lhe o rei: — «Não te posso já dar a minha filha, porque ela anda encantada numa pomba, mas se tu quiseres casar com ela hás de primeiro fazer o que te vou ordenar. Vês aquele campo que está em frente deste palácio?» — «Vejo, real senhor.» — «Pois bem; ordeno-te que de hoje até amanhã o vás semear de trigo, e que o faças crescer, que o ceifes, lhe tires a farinha, cozas o pão e mo apresentes aqui pronto.»

Foi-se o criado muito triste por lhe parecer impossível fazer tantas cousas; eis que de repente lhe apareceu Branca-flor e lhe disse: — «Sei de tudo que meu pai te ordenou; não te dê cuidado que tudo se há de arranjar.» De repente achou-se o campo semeado de trigo, daí a pouco tempo foi ceifado por Branca-flor e pelo criado; depois prepararam o trigo para ser moído, amassaram o pão e cozeram-no. Branca-flor ordenou ao criado que levasse os tabuleiros de pão a seu pai e fosse sempre apregoando: — «Quem quer pão quente, quem quer pão quente!»

Maravilhou-se o rei quando viu tudo prnto e perguntou ao criado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.» — «Pois bem; já que tiveste tanto poder, não te darei minha filha sem que tu me tragas para perto do meu palácio aquelas grandes pedreiras que se avistam acolá ao longe.»

Foi-se o criado muito triste e logo lhe apareceu Branca-flor e lhe disse: — «Nada te dê cuidado, mas que meu pai nunca saiba que sou eu que te valho.»

Pela manhã quando o rei acordou achou o palácio rodeado das pedreiras; então perguntou ao criado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.» Disse-lhe então o rei: — «Ainda te não dou minha filha sem que primeiro tragas o mar para a frente do meu palácio.»

Apareceu Branca-flor ao criado e disse-lhe: — «Toma este vidro que contém sangue que eu agora mesmo tirei deste braço; irás derramando gotas dele em volta do palácio e logo verás o mar rodeá-lo; tem porém, muita cautela não deites nenhuma gota de sangue em ti, porque ser-te-á isso muito perigoso.»

Andou o criado durante a noite deitando o sangue em volta do palácio e ao mesmo tempo via que o mar crescia, e quando ia a amanhecer, já o palácio formava uma ilha e Branca-flor mandava prender os navios às janelas do palácio.

O criado quando andava deitando o sangue esqueceu-se da recomendação de Branca-flor e chegou o sangue a um dedo e logo este lhe caiu.

De madrugada, quando o rei acordou, viu feito tudo que tinha ordenado ao criado e então a rainha disse-lhe: — «Não é possivel que deixasse de andar por aqui Branca-flor. Veio o criado e respondeu: — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.»

Vendo o rei que nada já podia ordenar que não fosse feito, disse ao criado: — «Casarás com minha filha logo que ela volte ao palácio.»

Nesse mesmo instante Branca-flor a voltar. Então o rei perguntou-lhe se era da vontade dela casar com o seu criado particular, e ela respondeu que sim. Casaram mesmo nesse dia e Branca-flor perdeu o encanto, mas não o poder de feiticeira.

Quando os noivos foram à noite para se deitar, reparou Branca-flor que sobre o seu leito estava suspensa por um cabelo uma espada desembainhada, então disse ela ao seu marido: — «Vês esta espada? — «Vejo.» — É a prova de que meu pai nos quer matar; é preciso fugir, mas não o podemos fazer antes da meia noite e nem depois, porque até à meia noite pode minha mãe usar do seu poder de feiticeira e saberia para onde íamos, e ao dar da meia noite, virá meu pai matar-nos. Não devemos, pois, ao dar meia noite ter já fugido, mas devemos partir então. Vai aparelhar os cavalos que andam tanto como o pensamento e ninguém nos poderá alcançar; se fôssemos nos que andam tanto como o vento, era mau, porque não andam tanto como os outros.»

Enganou-se o criado e aparelhou os cavalos que andavam tanto como o vento e Branca-flor sem reparar nisso, partiu mais ele à hora que estava destinada.

Quando o rei foi ao quarto deles para os matar, viu que tinha sido logrado e então a rainha disse-lhe: — «Antes da madrugada não partas, porque estou sem o meu poder; mas logo que amanheça, manda aparelhar os cavalos que andam como o pensamento e eu farei com que tu alcances os fugitivos.»

Partiu o rei de madrugada e logo avistou os noivos muito ao longe e Branca-Flor também avistou seu pai e então disse a seu marido: — «Meu pai segue-nos, já o avisto ao longe; mas não te dê cuidado; os cavalos se transformem em terra, os arreios numa horta, eu numa alface muito repolhuda e tu serás o hortelão; meu pai há de perguntar-te: viram por aqui Branca-Flor? e tu responderás: se quer alface é a 20 réis cada uma.»

No mesmo instante tudo se transformou como Branca-Flor tinha ordenado. Chegou o rei e perguntou ao hortelão por Branca-Flor e ele deu a resposta que ela lhe tinha ensinado. Renovou o rei a pergunta e o hortelão dando sempre a mesma resposta.

Caminhou o rei para diante sempre em busca dos fugitivos e estes, quando viram que ele já ia longe, transformaram-se outra vez no que eram e partiram, sempre correndo. Quando iam já muito longe tornaram a avistar o rei e então disse Branca-Flor: — «Lá vejo outra vez o meu pai, mas não te dê cuidado isso; que os cavalos se transformem numa ermida; os arreios em altar, eu numa santa e tu serás o sacristão, que estarás à porta a tocar à missa.»

Logo tudo se transformou e o sacristão foi para a porta da ermida tocar à missa. Chegou o rei e perguntou: — «Viste por aqui Branca-Flor?» — «Se quer ouvir missa, estou a tocar a ela.» — «Não pergunto por missa, mas sim por Branca-Flor e por seu marido, que deviam ter passado por aqui a cavalo.» O sacristão respondia sempre o mesmo.

Entrou o rei na ermida; viu a santa e pareceu-lhe que ela se assemelhava a Branca-Flor, mas como nada mais soubesse partiu novamente em busca dela.

A ermida, o altar, a santa e o sacristão tornaram outra vez ao que eram e partiram correndo sempre com receio de serem encontrados. Mas o rei, que não descansava, avistou-os novamente e ela então disse ao marido: — «Que os cavalos se façam num mar, os arreios num barco, tu no barqueiro e eu serei uma tainha, que andarei saltando em volta do barco.»

Chegou o rei e perguntou ao barqueiro: — «Viste por aqui Branca-Flor? — «Se quer embarcar agora, é maré.» E a tainha sempre saltando, ora no bordo do barco, ora na água.

Vendo o rei que nada tinha conseguido do que buscava, voltou para o palácio a contar tudo à rainha e esta disse-lhe: — «Olha, a horta que tu viste eram os cavalos e os arreios; o hortelão o teu genro e a alface Branca-Flor. A ermida, que viste, eram outra vez os cavalos, a santa Branca-Flor e o sacristão o marido dela. O barco, o barqueiro e a tainha eram tambem eles; mas eu vou já lá, pois agora estou com todos os meus poderes, que são maiores do que os da nossa filha e veremos como isto há de ser.»

Foi a rainha à borda do mar e encontrou ainda tudo como o rei lhe tinha dito e então disse: — «Volte tudo ao que era e já que não posso mais sobre minha filha ordeno-lhe que se esqueça inteiramente de que é casada e que seu marido se esqueça também dela e que nunca mais se tornem a lembrar do que passaram.»

No mesmo instante tudo se cumpriu: esqueceram-se inteiramente um do outro. Branca-Flor voltou para a casa de seu pai e o marido foi correr terras. Passaram-se anos sem que se lembrassem mais um do outro e neste tempo morreu a rainha e o rei, e Branca-Flor como se visse só resolveu casar-se. Estava já destinado o dia para a boda quando ao marido de Branca-Flor foram dizer o que estava sucedendo e ele então começou a recordar-se do que tinha passado e resolveu partir para o palácio, onde Branca-Flor estava para casar.

No caminho encontrou um casal de pombas que lhe contaram mais por miúdo tudo o que estava para suceder e se ofereceram para o auxiliar em tudo que ele precisasse.

Chegado que foi ao palácio de Branca-Flor, ofereceu-se para criado e foi logo aceite, pois como a princesa estava para casar precisava de criados.

Estavam já todos à mesa, príncipes, princesas e mais pessoais reais que tinham sido convidados para assistir ao casamento e os noivos na cabeceira da mesa, ricamente vestidos e com muitas jóias e brilhantes. O novo criado tinha preparado um grande bolo para a noiva e andava servindo à mesa; à sobremesa partiu-se o bolo e logo sairam de dentro um pombo e uma pomba que se foram banhar num vaso de água que estava no centro da mesa e depois de banhados colocaram-se ao lado de Branca-Flor e o pombo perguntou à pomba: — «Olha lá, não te lembras quando teu pai perdeu a coroa ao jogo e tu a ganhaste e depois vieram duas pombas e a roubaram? Respondeu a pomba: — «Não me lembra nada.» E assim o pombo foi recordando à pomba tudo quanto Branca-Flor tinha passado e mais o marido; e ao passo que a pomba dizia que se ia recordando, ia-se Branca-Flor recordando de tudo e no fim do jantar levantou-se da mesa e disse: — «Recordo-me de tudo e, se ainda vive meu marido que venha, pois só a ele quero.»

Nisto fugiram os pombos e o criado que andava a servir à mesa perguntou a Branca-Flor se o conhecia; ela então, dando-lhe um abraço, disse: — «Só tu serás meu esposo e a coroa de meu pai, que também já te pertenceu, será outra vez tua, pois tu serás o rei destes estados.»

Retirou-se o segundo noivo de Branca-Flor muito triste, mas louvando a resolução dela.



Conto popular recolhido em Coimbra por Adolfo Coelho (1847-1919)

27 abril 2025

A batalha de Alcácer-Quibir em música


Puestos están frente a frente, um romance em castelhano, provavelmente de Miguel Leitão de Andrada (1553–1630), que participou na bataha de Alcácer-Quibir e sobreviveu, por Teresa Salgueiro e o Lusitânia Ensemble

   Puestos estan frente a frente
Los dos valerosos campos;
Uno es del Rei Maluco,
Otro de Sebastiano el lusitano.
   Moço animoso y valiente,
Robusto, determinado,
Aunque de poca experiencia
Y no bien aconsejado
El lusitano.
   Quando los Moros sin cuento
Su hueste la van cercando
Que pera uno de los suyos
Son mais deziocho tantos.
   Ardiendo em fuego su pecho
Rabia por ponerlos mano,
Piensa que todos son nada,
Manda a pelea echarbando el lusitano.
   Brama que envistan los moros
Y el exercito contrario;
Ya se van llegando cerca
A ellos (dize) Santiago el lusitano.
   Dispara la artilharia,
La nuestra mal disparando,
Lluevem balas, llueven muertes,
Saetas y mosquetazos.
   Empuxan picas los moros,
Ya huyen rotos rodando,
Los ventureros victoria
Pregonan con grande aplauso.
   Que mataron el Maluco,
Y lo ha llevado el diablo,
Porque junto a su litera
Lo passaron de un balazo.
   Y en la mora artilharia
Dos banderas se lian ganado,
Con victoria tan pujante,
Que semejó a milagro.
   Pero por peccados nuestros
La gozamos poço espacio;
Que a socorrer retroguardia
La delantera ha parado.
   Que por los lados ya todos
Es vanguardia nuestro campo.
Y con sangre de los muertos,
Está hecho un grande lago.
   Todo lo anda el buen Rey.
Dando muertes muy gallardo,
La espada tinta de sangre,
Lança rota, y sin cavallo.
   Que el suyo passado el pecho
Ya no puede dar un passo,
A George d'Albuquerque pide
Le dé su rucio rodado.
   Daselo de buena gana,
Y el-Rey cavalga de un salto,
Mirale el-Rey como jaze,
De espaldas casi espirando.
   Mas le dize que se salve,
Pues todo es roto en pedaços,
Y el-Rey se vá a los moros,
A los moros Sebastiano el lusitano,
   Busca la muerte en dar muertes,
Busca muerte Sebastiano el lusitano,
Diziendo: Aora es la hora,
Que un bel morir, tuta la vita honora. (*)

(•) Palavras que este Rey trazia dantes na boca, e costumava dizer muitas vezes.

in Miscelanea, de Miguel Leitão de Andrada, Nova Edição Correcta, Imprensa Nacional, Lisboa, 1867

25 abril 2025

Poemarma

Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês.

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua.

Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas.
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas.

Que o poema assalte esta desordem ordenada
que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!
Que faça ginástica militar aplicada
e não vá como vão todos para França.

Que o poema fique. E que ficando se aplique
a não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo, o desejo de achar.

E que o poema diga: o longe é aqui
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
Ah que o poema chegue ao pé de ti
e te diga ao ouvido o que é preciso.

Que o poema actue directamente sobre o real
nem que por vezes seja só o poeta em movimento.
Ah que o poema para ser original
transforme em braços e acção o pensamento.

Que ponha sinos a tocar dentro das rosas
e seja mais que rosa flor de cacto.
Que o poema saiba ver dentro das coisas
a mão do homem feita poema em acto.

Que o poema me dispa de tudo o que não presta
e me transforme na sua própria acção.
Nem quero outra glória nem quero outra festa:
morrer como Guevara na Bolívia da canção.

Só tu, povo fardado de ganga azul
poderás dar-me a glória ou recusar-ma.
Aí vai o meu poema
a minha taça do rei de Tule
aí vai para ser arma!

Manuel Alegre



22 abril 2025

Louis Armstrong nos primórdios do jazz


Muskrat Rumble, de Ed Ory e R. Gilbert, por Louis Armstrong and his Hot Five, com Louis Armstrong em corneta, Edward Kid Ory em trombone, Johnny Dodds em clarinete, Lilian Haedin-Armstrong em piano e John Saint‑Cyr em banjo. Gravado em Chicago a 11 de dezembro de 1925

A música dos loucos anos 20. O puto Satchmo em Chicago começava a invadir a América antes de conquistar o mundo. Ninguém tinha ouvido tocar assim uma corneta e a música era hot, swing, fora os outros condimentos… O Jass (como se escrevia na época) aparecia como música de dança, era a moda, era uma música alegre, participada. Vindo de New Orleans, Armstrong entrara em cena pela mão do primeiro rei, Sy Oliver, outro grande trompetista e vai daí formou um pequeno conjunto a que chamou, evidentemente, Hot Five. Só gravou obras‑primas, fora as que tocou e se perderam por bailes, clubes e outras casas. «Muskrat Rumble» é um must da cultura musical da época, está lá tudo o que definia o jazz de então, o jazz antigo, clássico, de New Orleans: improvisação colectiva, solos, swing a rodos, Satchmo perfeito a dominar os ensembles e genial a solo, o típico som de rua, banjo, música pulada, dixieland, fox-trot e todos de acordo. Música que dá trabalho ouvir, para ouvir todos e cada um, não se percam do banjo, do clarinete, dos glissandos do trombone e das monumentais intervenções de Satchmo. O jazz tinha começado e de que maneira!


José Duarte (1938–2023)

20 abril 2025

Pão dos Anjos


Panis Angelicus, um moteto do compositor belga César Franck (1822–1890) sobre palavras de São Tomás de Aquino (1255–1323), pela soprano eslovaca Patricia Janečková (falecida em 2023 com 25 anos de idade, vitimada por um cancro da mama), acompanhada pela Orquestra de Câmara Janáček, sob a direção de Jakub Černohorský

17 abril 2025

Senhor, Tu lavas-me os pés?


Antífona Domine, tu mihi lavas pedes?, do padre José Maurício Nunes Garcia (1767–1830), que foi um compositor mestiço brasileiro do período barroco, pelo grupo coral Calíope, do estado do Rio de Janeiro, dirigido por Julio Moretzsohn

13 abril 2025

Valsa Estudiantina


Estudiantina, uma valsa de inspiração espanhola do compositor francês Paul Lacôme (1838–1920), num arranjo e orquestração de Émile Waldteufel (1837–1915), igualmente francês, interpretada pela Orquestra da Volksoper de Viena dirigida por Franz Bauer-Theussl (1928–2010)

11 abril 2025

A torre e ponte de Ucanha


A ponte e torre sobre o rio Varosa em Ucanha, concelho de Tarouca (Foto de autor desconhecido)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

A torre de Ucanha vista do tabuleiro da ponte sobre o rio Varosa. Ucanha, concelho de Tarouca (Foto de autor desconhecido)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Para aceder à ponte a partir da aldeia de Ucanha, é preciso passar por baixo da torre. Ucanha, concelho de Tarouca (Foto de autor desconhecido)
(Clicar na imagem para ampliá-la)

Se existe em Portugal uma região que seja riquíssima em património, essa região é a das bacias dos rios Varosa e Távora, afluentes da margem esquerda do rio Douro. Esta região integra os concelhos de Lamego, Tarouca, Moimenta da Beira, Armamar, Tabuaço, Penedono e São João da Pesqueira. Por ela passaram lusitanos e romanos e mouros e cavaleiros e trovadores e almocreves e monges. D. Afonso Henriques doou-a a Egas Moniz, seu aio, como recompensa pela indefetível dedicação demonstrada nos muitos combates que travou ao lado do seu pupilo, que ajudou a tornar-se primeiro rei de Portugal.

Desde os primórdios da Idade Média, instalaram-se nesta região diversos mosteiros, como os de Balsemão, Ferreirim, São Pedro das Águias e outros. Alguns deles tornaram-se particularmente ricos e poderosos, como foi sobretudo o caso dos mosteiros de São João de Tarouca e de Salzedas. A presença de mosteiros nesta região explica-se facilmente. Trata-se de uma região muito fértil, onde desde há muitos séculos se têm cultivado vinhas, pomares, olivais e amendoais, e onde atualmente se produz vinho da mais alta qualidade, com destaque para os espumantes saídos, sobretudo, da Cooperativa do Távora, das Caves da Raposeira e das Caves da Murganheira, estas situadas em Ucanha.

A abundante produção agrícola da região necessitava de escoamento para os locais de consumo. Porém, os rios Varosa e Távora (mais este do que aquele), além de não serem navegáveis, escavaram vales profundos que são difíceis de atravessar em grande parte da sua extensão. As pontes eram poucas e quem as possuía tirava proveito desta vantagem, cobrando portagens pela sua utilização. Foi o caso da ponte de Ucanha, sobre o rio Varosa, a respeito da qual se diz ter sido a primeira ponte com portagem da Península Ibérica.

Há quem afirme ter existido uma ponte romana mais ou menos no mesmo local em que está a atual ponte de Ucanha, pela qual passaria uma estrada igualmente romana. É muito provável que assim tenha sido, mas a ponte que agora está em Ucanha não é romana, mas sim medieval. Na sua configuração atual, a ponte deve ser do séc. XIV. No extremo oriental da ponte, ergue-se uma torre quadrangular, que só por si é digna de admiração.

O rio Varosa era uma das delimitações do couto do mosteiro cisterciense de Salzedas, que foi criado no séc. XII, mas aos monges do mosteiro não bastou terem em Ucanha uma simples ponte sobre o rio, com uma casa num extremo para a cobrança de portagem. Quiseram afirmar de forma irrefutável o seu domínio senhorial sobre aquele pedaço de território, acrescentando à ponte uma façanhuda torre, pronta a enfrentar quem quer que se atrevesse a desafiar este domínio. Quer isto dizer que os monges de Salzedas fizeram construir uma torre que tivesse características guerreiras: a entrada principal não foi feita ao nível do solo, mas alguns metros acima, e no andar mais elevado foram feitos quatro balcões com matacães. Os matacães são buracos feitos no piso dos balcões, por onde se poderia despejar azeite a ferver sobre quem passasse em baixo. Qualquer força hostil que quisesse atravessar a ponte, ficaria frita no azeite fervente despejado do alto da torre. Como se vê, uma torre assim não servia só para guardar os géneros cobrados aos utilizadores da ponte como pagamento de portagem.

No interior da torre não existe qualquer recheio digno de nota, porque este é constituído apenas por algumas peças de mobiliário vulgares. Mesmo assim, vale a pena subir à torre, se a porta estiver aberta, porque é muito bonita a visão que se tem sobre o rio e sobre a ponte, que é vista da torre em perspetiva.

07 abril 2025

Aliterações de Água


Aliterações de Água, uma obra musical para soprano e eletrónica, do compositor contemporâneo português Miguel Azguime, pela cantora soprano portuguesa Camila Mandillo, acompanhada por Miguel Azguime na eletrónica

03 abril 2025

«A história desconhecida do meu pé esquerdo»


Prótese para o pé esquerdo Proflex Xc, fabricado pela firma islandesa Össur

Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei que era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que não era um pé muito especial, porque para além de andar e correr, não me servia de mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois pés esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito para nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do paredão Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto de crawl e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.

Na verdade, só me esqueci da imagem do meu pé esquerdo — se teria um sinal particular, ou alguma cicatriz que o tornasse especial — pois sinto-o agora melhor do que quando o podia ver. Chame-se “sensação do membro presente” esta sensação de ter um pé… que está ausente. É diferente da “dor fantasma” porque simplesmente não dói, e faz com que o ProFlex Foot XC fabricado na Islândia pareça mais real. Este cérebro humano acha estranho que dali não venha nenhum sinal de vida e aumenta a sua própria sensibilidade para ver o que acontece. E o que acontece é que se sente um pé onde apenas está uma engenhoca de duralumínio, titânio e fibra de carbono.

Para um espírito otimista, alguma coisa de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu ainda não descobri nenhuma, mesmo quando o cão de um vizinho me tentou ferrar. Eu ofereci-lhe a prótese, mas o faro do bicho tramou-me.

No dia de Páscoa de 1972 tiraram-me uma fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última vez, muito sossegado ao lado do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o chão de África pela última vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo, tanto quanto seria possível com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal, tendo acabado aí a sua missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.

Para ser justo, não poderei subestimar as suas qualidades, tanto mais que as várias tentativas para o substituir condignamente falharam redondamente, a começar pelo trambolho tosco e mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada e rudimentar com que os nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu voltasse a caminhar. Vim da Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve ter chegado para espiar os meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos como os que eu venha a cometer até ao dia do juízo final.

Os meus netos parecem achar interessante que o avô se pareça com o cyborg dos seus jogos de vídeo quando anda de calções, e pensam que deve ter sido um ato de guerra heroico que esteve na origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade didática, porque na verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra colonial, só que uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos heroicos, e numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos até a cometer crimes.

Como se explica a uma criança da geração do Google que isso foi possível apenas por desinformação? E que o país onde a chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde um dia a ignorância era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os jornais um lápis azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.

É tão difícil explicar uma coisa estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente a um adulto estúpido.

Antes de eu partir para a guerra, a minha mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora de Fátima para garantir que eu viesse de lá são e salvo, cujo compromisso da sua parte era ir a pé de Aguim até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o que ganhava a santa com aquilo, mas desconfiei sempre que se tratava de uma tara originada pela vida sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me que tendo vindo eu sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por inteiro, mas não consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.

Um dia, no verão de 1965, na praia da Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu pé esquerdo. Com o peso da Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela esteve bem meia hora naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de hora sem me mexer, para sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia da Marisa, o meu pé esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente insensível. Foi a primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação, ainda que virtual, mas aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos que o meu pé esquerdo viveu.

No inverno de 1971, na casa de banho comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé esquerdo, e apenas o meu pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão médico do quartel, num relance, garantiu com ar categórico — É pé de atleta! Soou-me, assim de repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico médico. O pior é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a introduzir um gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.

Esse martírio só terminou na picada do Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia de Moçambique, exatamente às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem o antifúngico do capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim.

Este desfecho fatal aconteceu ao meu pé esquerdo porque eu acreditei que era um dever humanitário ir matar terroristas para África e salvar o império. Pelo menos foi assim que eu entendi as coisas.

Sempre que precisam de mandar soldados matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando os professores, os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a gente acredita, não é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são demasiado parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria‑se‑nos a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que também nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início, para melhor se aproveitarem de nós.

Se isto não é abuso moral por parte do Estado é de certo escravatura intelectual. Impediram-me o acesso ao conhecimento para poderem usar a minha ignorância.

Do Estado não exijo muito mais para mim, na reparação material da minha lesão física de guerra, ao contrário de muitos camaradas meus verdadeiramente injustiçados, mas exijo um condigno e honorável pedido de desculpas pela lesão moral, se não a mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo, ao meu pé esquerdo.



mcbastos, deficiente das Forças Armadas

01 abril 2025

Body and Soul, um clássico do jazz



Body And Soul, de Edward Heyman, Johnny Green, Robert Sour e Frank Eyton, por Billie Holiday (voz), Ben Webster (saxofone tenor), Jimmy Rowles (piano), Barney Kessel (guitarra), Red Mitchell (contrabaixo) e Alvin Stoller (percussão). Publicado em 1957

Body And Soul, de Edward Heyman, Johnny Green, Robert Sour e Frank Eyton, por Serge Chaloff (saxofone barítono), Boots Mussulli (saxofone alto), Herb Pomeroy (trompete), Roy Santis (piano), Everett Evans (contrabaixo) e Jimmy Zitano (percussão). Publicado em 1955