05 outubro 2021

Grito

De ti que inventaste
a paz
a ternura
e a paixão
o beijo
o beijo fundo intenso e louco
e deixaste lá para trás
a côncava do medo
à hora entre cão e lobo
à hora entre lobo e cão.

De ti que em cada ano
cada dia cada mês
não paraste de acender
uma e outra vez
a flor eléctrica
do mais desvairado
coração.

De ti que fugiste à estepe
e obrigaste
à ordem dos caminhos
o pastor
a cabra e o boi
e do fundo do tempo
me chamaste teu irmão.

De ti que ergueste a casa
sobre estacas
e pariste
deuses e linguagens
guerras
e paisagens sem alento.

De ti que domaste
o cavalo e os neutrões
e conquistaste
o lírico tropel
das águas e do vento.

De ti que traçaste
a régua e esquadro
uma abóboda inquieta
semeada de nuvens e tritões
santidades e tormentos.

De ti que levaste
a volupta da ambição
a trepar erecta
contra as leis do firmamento.

De ti que deixaste um dia
que o teu corpo se cansassse
desta terra de amargura e alegria
e se espalhasse aos quatro cantos
diluido lentamente
no mais plácido
silente
e negro breu.

De ti
meu irmão
ainda ouço
o grito que deixaste
encerrado
em cada pétala do céu
cada pedra
cada flor.
O grito de revolta
que largaste à solta
e que ficou para sempre
em cada grão de areia
a ressoar
como um pálido rumor.
O grito que não cansa
de implorar
por amor
e mais amor
e mais amor.

José Fanha


Placa dourada enviada para o espaço em 1972, a bordo da sonda Pioneer 10

Comentários: 5

Blogger Rogério G.V. Pereira escreveu...

Há tanto
tanto tempo
que nada lia do Fanha
Nem sei
por que bandas anda
Nem sei...

06 outubro, 2021 00:18  
Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Um poema que nos toca profundamente, este "Grito"...

Abraço!

06 outubro, 2021 11:10  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

Excelente poema de José Fanha !

08 outubro, 2021 22:19  
Blogger Ricardo Santos escreveu...

A placa que foi para o espaço não conhecia !
Fernando obrigado

08 outubro, 2021 22:20  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Eu também nada sei de José Fanha. Vi este "Grito" na internet e resolvi republicá-lo, para não ser só o "Eu sou português aqui". É verdade que "Eu sou português aqui" é um excelente poema, mas o José Fanha também escreveu outros. Este "Grito" merece igualmente ser divulgado.

A placa enviada a bordo da sonda Pioneer 10 e outra igual a bordo da Pioneer 11 foram uma ideia do grande cientista e divulgador já falecido Carl Sagan. É uma mensagem de paz dirigida a quaisquer extraterrestres que eventualmente as venham a encontrar, daqui a muitos milhões, biliões ou triliões de anos. As sondas aí vão, a caminho do espaço profundo e de alguma forma de vida inteligente que possa tropeçar nelas, seja ela qual for. Nessa ocasião, talvez já nem a Terra e nem o próprio Sol existirão mais.

09 outubro, 2021 02:02  

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