30 março 2016

Pesadelo

A guerra é um pesadelo
que te ocupa a cabeça toda a noite
com cadáveres caminhando destroçados
pelos interstícios do sono
e bombas que rebentam e espalham
fel e pregos
em todas as cartilagens,
e uma procissão de fístulas
deixando a sua baba pestilenta
pelo peito, pela boca, pelos joelhos.

A guerra é um pesadelo
onde as pombas choram
e os cavalos uivam com horror
ao ver as patas arrancadas a fugir do corpo.

A guerra é um pesadelo
onde as prostitutas implodem
na mais cruel virgindade
e a criança voa,
cirurgicamente fragmentada,
como uma romã perdida do seu ser.

E quando a noite se esvai e a manhã chega
para te abraçar com os seus olhos
trémulos de água
e um cheiro branco a pão,
descobres que o pesadelo
e a guerra
e os homens que fazem a guerra
continuam a espalhar a sua sementeira negra
pelas searas mais perdidas
deste mundo.

José Fanha, in Poesia, Lápis de Memórias, Coimbra, 2012


Crianças fugindo de um bombardeamento aéreo com napalm à aldeia de Trang Bang, Vietname, em 8 de junho de 1972. A menina, com nove anos de idade e chamada Phan Thị Kim Phúc, sofreu sérias queimaduras nas suas costas e braços, mas sobreviveu, tendo sido submetida a 17 cirurgias. Esta fotografia valeu ao seu autor diversos prémios (Foto: Huynh Cong Ut, mais conhecido como Nick Ut, da agência Associated Press)

Comentários: 2

Blogger Chama a Mamãe! escreveu...

Nem temos a dimensão do horror das guerras. Em alguns lugares, ela nem é divulgada, tanto o horror que por lá existe, como no Sul do Sudão.
Triste.

30 março, 2016 12:46  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Quando se refere ao Sul do Sudão, a "Mamãe" quer referir-se ao estado independente do Sudão do Sul, não é verdade? A guerra civil que tem causado muitos milhares de vítimas entre os cidadãos deste novo país tem, de facto, sido ignorada pelos meios de comunicação internacionais, apesar da sua extrema violência. Além do horrível cortejo de mortos e feridos, há agora uma fome generalizada naquele desgraçado país.

Há mais guerras a lavrar no Sudão propriamente dito, o país presidido por Omar al-Bashir, sobre quem existe um mandado de captura por parte do Tribunal Penal Internacional, por acusações de genocídio. Na verdade, o genocídio no Sudão não acabou com a secessão do Sudão do Sul. Nos estados de Kordofan do Sul e do Nilo Azul, nomeadamente, continuam a registar-se combates, que opõem o exército governamental, maioritariamente árabe e muçulmano, aos rebeldes locais, maioritariamente negros e cristãos ou animistas. As populações das montanhas Nuba (não confundir com a Núbia, que também fica no Sudão, mas no norte), sobre as quais a cineasta e fotógrafa ex-nazi Leni Riefenstahl nos deixou retratos absolutamente espantosos de beleza e de genuinidade africana (https://www.youtube.com/watch?v=WV0ezSpAiB4), estão reduzidas à mais impressionante miséria, vivendo em grutas para tentar escapar aos bombardeamentos da aviação sudanesa. O mundo incrível que Leni Riefenstahl retratou, e depois dela o espanhol Antonio Cores (https://www.youtube.com/watch?v=DQNVnxf0IpI), não existe mais, nem voltará a existir.

No Darfur, igualmente, continua a combater-se. A guerra não acabou nesta outra região do Sudão, apesar de ela ter deixado de figurar nos noticiários. Enfim, parece que enquanto Omar al-Bashir continuar no poder, não haverá paz no Sudão. O problema é tirá-lo de lá sem que o Sudão mergulhe no caos, como a vizinha Líbia.

31 março, 2016 03:46  

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