08 setembro 2016

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui…
A que distância!…
(Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!…

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…


Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)


Comentários: 4

Blogger Um Jeito Manso escreveu...

Olá Fernando, bom dia,

Muitos parabéns e um que tenha um belo dia.

E, como se costuma dizer, que conte muitos, ou seja que tenha pela frente uma vida longa e feliz.

Um abraço.

08 setembro, 2016 10:32  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado, UJM, pelos seus votos. O dia não foi mau de todo; podia ter sido pior. Quanto à vida longa e feliz, só o futuro o poderá dizer.

A imagem que publico, e que foi extraída de uma fotografia coletiva em que estavam muitas outras pessoas, mostra moi même com cerca de dez anos de idade.

09 setembro, 2016 00:55  
Blogger Isabel escreveu...

PARABÉNS!
Vale mais tarde do que nunca...e como só agora vi o post...

O poema é muito bonito e a foto do jovem menino é gira. E faço minhas, as palavras da UJM.

Boa tarde:)

14 setembro, 2016 14:37  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Muito obrigado, amiga Isabel. O poema é muito bonito, mas o menino nem por isso. Não sei porquê, sou fotogénico. Fico sempre muito bem nas fotografias. Mas pode crer que na vida real não fui (e muito menos sou) tão giro assim.

15 setembro, 2016 00:55  

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