O achado da bolsa
O ator Jim Carrey representando o papel do avarento Ebenezer Scrooge em A Christmas Carol (Foto: Walt Disney Pictures)
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Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrescentando suas riquezas, assim nele se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa não trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua casa entesourar. Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe acertou a cair a bolsa, e até que chegou a casa a não achou menos. Esteve para perder o juízo juntamente com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao duque, que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que mandasse sua excelência em seu nome apregoar que quem achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em ouro, que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito pobre e virtuosa. E ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foi mui leda, entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta determinação se foi diante do duque e lhe pôs em sua mão a bolsa que havia achado assim e da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o duque a pobreza desta mulher, e que era digna de ser grandemente favorecida, logo mandou chamar o mercador e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não faltava mais que cumprir sua promessa àquela mulher honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento mercador, porém achegou-lhe à alma o ver que havia de dar os quarenta cruzados que tinha prometido de achado, e assim imaginou logo naquele instante um ardil para os não dar, e foi que tomou a bolsa e vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o, e posto que o achasse certo, contudo isso revirando para a mulher que o havia achado, lhe disse:
— Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos, que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.
A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:
— De maneira, senhor, que credes de mim que vos havia de furtar o vosso dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la aqui, senão não querer eu o alheio?
Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o achado que tinha prometido. O duque, conhecendo a malícia do mercador e tudo aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que prometera, entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do avarento mercador, imaginou que a maior pena que podia dar a um homem tão ruim como aquele era fazer que com seu engano se ofendesse a si mesmo, e a esta causa, virando-se para ele, lhe disse:
— Vinde cá; se isto é assi como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não é vossa, pois nela faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa que se achou sem dúvida nenhuma é uma que esse próprio dia perdeu um meu criado com esta mesma soma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como é, a mim e não a vós pertence.
E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:
— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos faço graça dela com o dinheiro que tem.
Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o duque dizia; antes arrependido de não haver cumprido a palavra que prometera se foi para sua casa chorar seu desastre.
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Gonçalo Fernandes Trancoso (c.1520–1596), Contos e Histórias de Proveito e Exemplo
Comentários: 3
Aos avarentos
nunca mais lhes saem duques
hoje a bolsa é outra!
(bom conto, pá!)
Belo conto!
Abraço
Muito obrigado pelos vossos comentários. O que há mais é bolsas. Só o dicionário online Priberam lista 14 significados para a palavra bolsa, mais a bolsa de ar, a bolsa de valores, a bolsa marsupial, a bolsa seca e a bolsa sinovial. O dicionário Infopédia da Porto Editora lista 9 significados, mais a bolsa das águas, a bolsa de emprego, a bolsa de estudo, a bolsa do fel, a bolsa do ferrado e apertar os cordões à bolsa, que é uma coisa que cada vez mais pessoas se sentem constrangidas a fazer.
https://dicionario.priberam.org/bolsa
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/Bolsa
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