04 setembro 2023

O lobo humano

A cada instante aos meus ouvidos
Chega um lamento, um grito, um ai!
Coro dantesco de gemidos,
Detonações, brados perdidos
E o baque surdo de quem cai…

Soluços, bocas às dentadas
Numa feroz agitação…
Blasfémias, uivos, gargalhadas,
Imprecações e derrocadas
No ronco torvo dum tufão!

É o velho mundo a desfazer-se
E a raça humana que o desfaz!
O Egoísmo em fúria a contorcer-se,
Todo a espumar e a remorder-se,
Guinando aos pulos para trás!

Trava-se a luta, braço a braço,
E não há trégua nem perdão!
O sangue espirra a cada passo,
Os corvos cruzam todo o espaço
E o fogo lambe a escuridão…

Numa alcateia, foragidos
Os lobos olham com pavor:
— É o Lobo humano!… — E, comovidos,
Vão para as furnas escondidos
Lamber os filhos com amor…

João Saraiva (1866–1948)


(Foto de autor desconhecido)

Comentários: 2

Blogger Maria João Brito de Sousa escreveu...

Foi com profunda comoção que li este poema que até hoje desconhecia...

Obrigada por mo dar a conhecer, Fernando!

Um abraço!

05 setembro, 2023 13:29  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Este é mais um poema do meu bisavô João Saraiva, que foi avô paterno da minha mãe. Ele refere-se à 1.ª Guerra Mundial e é o último poema de um livro chamado "Líricas e Sátiras", publicado em 1916 pela Renascença Portuguesa no Porto. Este poema destoa completamente do resto do livro, pois não é lírico nem satírico, e, como é o último poema, dá a impressão de ter sido acrescentado à última hora, quando o livro já devia estar pronto para ir para o prelo. Na minha opinião, ele é, inquestionavelmente, o melhor poema de todo o livro.

06 setembro, 2023 02:33  

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