23 setembro 2023

"Brundibár", uma ópera infantil no campo de concentração


Um resumo do que se passou no campo de concentração nazi de Terezín (em alemão Theresienstadt) há 80 anos. Vídeo falado em húngaro e legendado em inglês

Terezín, 23 de setembro de 1943. A ópera infantil "Brundibár", de Hans Krása, chega ao ghetto de Terezín para uma estreia — como parte do pérfido plano dos nazis, de apresentar Terezín como ghetto modelo, com uma vida cultural ativa. O compositor Hans Krása foi assassinado em Auschwitz, mas "Brundibár" continua a ser representada — uma tardia vitória da humanidade.

No palco: crianças severamente traumatizadas e esfomedas. No público: prisioneiros judeus e os seus torturadores — membros das SS. Zvi Cohen tocou então harmónica de boca: "Os alemães descobriram que quando se dá cultura aos judeus, eles ficam sossegados", recorda Cohen. "A cultura dá vontade de viver às pessoas em Terezín". Viver para quê? A maior parte dos residentes do ghetto de Terezín foram deportados e portanto assassinados em Auschwitz ou noutro local de extermínio.

Melodias dão alma às barracas

Em 1942 também lá estava Hans Krása, o criador da ópera infantil "Brundibár". Foi representada 55 vezes em Terezín. Oficialmente. Não oficialmente, inúmeras vezes as melodias ecoaram pelas barracas, ruas e quintais. À noite, quando os guardas do ghetto dormiam. "Estávamos contentes por podermos cantar", diz Dagmar Lieblova, antiga menina do coro em "Brundibár". "Nós cantávamos, em especial, sobre uma vida normal, onde se podia comprar pão, se podia comprar leite, comer gelados. Tudo ao contrário do que nós víamos à nossa volta."



Eva Hermanova, sobrevivente de Auschwitz e que fez parte do coro da ópera infantil "Brundibár" (Abelha) no campo de concentração de Terezín (Theresienstadt em alemão), presta o seu testemunho. Vídeo falado em alemão e com algumas imagens impressionantes

Estreia caseira no orfanato

Em 1938, Hans Krása, aluno de Alexander Zemlinsky e antigo ponto no teatro alemão de Praga, compôs a ópera: uma obra esperançosa sobre a vitória do Bem sobre o Mal. No campo de concentração de Terezín, "Brundibár" foi em 23 de setembro de 1943 pela primeira vez levada ao palco no chamado "Quartel de Magdeburgo". Mas antes desta estreia oficial já "Brundibár" tinha sido representada — num orfanato em Praga. Hans Krása não estava lá — já estava em Terezín.

Uma pequena esperança com um enorme resultado

A chegada ao ghetto de uma versão para piano da ópera foi um raio de luz na mais profunda escuridão — e possibilitou a Krása refazer a sua ópera, também oficialmente: os homens das SS no ghetto tinham-lhe dado "autorização". "Brundibár" deveria tornar-se num truque de ilusionismo para efeitos de propaganda. O inferno a fingir de mundo perfeito. Para cúmulo, Goebbels deixou cantar o coro final de "Brundibár", quando chegou a Terezín uma delegação internacional da Cruz Vermelha: música abominada pelos assassinos. Apesar de tudo, "Brundibár" sobreviveu aos nazis e garantiu aos judeus a sobrevivência — uma pequena esperança com um enorme resultado.



Uta Sailer. Texto traduzido do alemão


A ópera infantil em dois atos "Brundibár" (Abelha), do compositor judeu checo Hans Krása (1899–1944), morto no campo de extermínio de Auschwitz, com libreto do escritor checo Adolf Hoffmeister (1902–1973), interpretada em checo

21 setembro 2023

Os Prémios Ig Nobel de 2023


Ex-líbris da revista Annals of Improbable Research

Em cada ano ocorre a cerimónia da atribuição dos Prémios Ig Nobel, que são prémios que se destinam a consagrar os trabalhos científicos mais insólitos ou mais divertidos. Apesar do seu ignóbil nome, os Prémios Ig Nobel não são prémios feitos para humilhar os cientistas galardoados; destinam-se, isso sim, a premiar os autores de trabalhos científicos que primeiro façam rir e depois façam pensar. Não se pode, por isso, deduzir que os trabalhos premiados não tenham valor científico.

Os Prémios Ig Nobel de 2023 já foram atribuídos, durante uma "cerimónia" organizada pela revista Annals of Improbable Research, que ocorreu em 14 de setembro de 2023 por webcast apenas. Segue-se a lista dos Prémios Ig Nobel de 2023.

Prémio Ig Nobel da Química e Geologia

Atribuído a Jan Zalasiewicz, por explicar porque é que muitos geólogos e paleontólogos gostam de lamber pedras.

Uma pedra que for humedecida com a língua poderá revelar se é um fóssil de origem orgânica (um osso colar-se-á à língua), se é de origem mineral, qual é a sua textura e granularidade, etc.

Prémio Ig Nobel da Literatura

Concedido a Chris Moulin, Nicole Bell, Merita Turunen, Arina Baharin e Akira O’Connor, por estudarem a sensação que as pessoas experimentam quando repetem uma simples palavra muitas, muitas, muitas, muitas, muitas, muitas vezes.

Ao fim de cerca de 30 repetições ou um minuto, a palavra repetida deixa de ter um significado imediatamente reconhecível, para passar a ser apenas uma sequência de fonemas sem sentido, como se fosse uma palavra desconhecida.

Prémio Ig Nobel de Engenharia Mecânica

Galardoado a Te Faye Yap, Zhen Liu, Anoop Rajappan, Trevor Shimokusu e Daniel Preston, por usarem aranhas mortas como ferramentas de preensão e com elas elevarem pequenas cargas.

Quando morrem, as aranhas ficam com as patas encolhidas. Esta equipa de cientistas conseguiu fazer abrir e fechar as patas de aranhas mortas, como se fossem pinças de pequenos robôs, e agarrar pequenos objetos.

Prémio Ig Nobel de Saúde Pública

Atribuído a Seung-min Park, por ter inventado uma sanita carregada de equipamento eletrónico que faz uma avaliação rápida do estado de saúde do utilizador.

A ideia não é nova, mas nenhuma sanita foi tão completa como esta, que faz uma análise à urina, às fezes e é mesmo capaz de fazer testes à covid-19. Esta sanita é tão completa que até fotografa o ânus do utilizador para identificá-lo, como se de uma impressão digital se tratasse! Diz o criador da sanita que não há duas pessoas com o ânus igual! Os dados recolhidos são em seguida encriptados e enviados pela sanita para uma cloud.

Prémio Ig Nobel da Comunicação

Concedido a María José Torres-Prioris, Diana López-Barroso, Estela Càmara, Sol Fittipaldi, Lucas Sedeño, Agustín Ibáñez, Marcelo Berthier e Adolfo García, por estudarem a atividade mental de pessoas que são capazes de falar de trás para a frente com facilidade.

Na cidade de La Laguna, nas Canárias, Espanha, existe um grupo de pessoas que são capazes de inverter as sílabas de palavras e até de frases inteiras, dizendo, por exemplo, nasbue chesno em vez de "buenas noches". Os autores do estudo concluíram que esta capacidade não está relacionada com a memória, mas sim com um aumento da massa cinzenta do cérebro e com uma maior conectividade entre regiões do cérebro relacionadas com a linguagem.

Prémio Ig Nobel da Medicina

Galardoado a Christine Pham, Bobak Hedayati, Kiana Hashemi, Ella Csuka, Tiana Mamaghani, Margit Juhasz, Jamie Wikenheiser e Natasha Mesinkovska, por procurarem saber se existe um igual número de pelos em ambas as aberturas do nariz humano.

Há pessoas que sofrem de alopecia (perda de cabelos e de pelos) em várias partes do corpo, a qual também pode atingir as narinas. Quando fica desprovido de pelos, o nariz fica mais sensível a infeções respiratórias, alergias, etc. Esta equipa de cientistas examinou os narizes de 20 cadáveres e deu-se ao trabalho de contar os pelos existentes nas suas narinas, além de ter medido o comprimento dos referidos pelos! Para o enriquecimento da nossa cultura geral, ficamos a saber que uma narina humana possui em média 120 a 122 pelos, os quais têm comprimentos que variam entre 0,81 e 1,035 centímetros.

Prémio Ig Nobel da Nutrição

Atribuído a Homei Miyashita e Hiromi Nakamura, por determinarem até que ponto a eletrificação dos pauzinhos de comer e das palhinhas de beber altera o sabor dos alimentos e das bebidas.

Estes dois cientistas estudaram a sensibilidade das papilas gustativas quando se colocam elétrodos nos extremos das palhinhas de beber e nas pontas dos pauzinhos de comer. Concluíram eles que esta sensibilidade aumenta proporcionalmente à diferença de potencial aplicada aos elétrodos. A finalidade do estudo consiste em levar as papilas gustativas a detetar sabores tão subtis, que não sentiriam se não houvesse a passagem de uma corrente elétrica.

Prémio Ig Nobel da Educação

Ganho por Katy Tam, Cyanea Poon, Victoria Hui, Wijnand van Tilburg, Christy Wong, Vivian Kwong, Gigi Yuen e Christian Chan, por terem estudado o aborrecimento de professores e alunos.

O aborrecimento sentido pelos alunos durante uma aula é um fenómeno praticamente universal, que ninguém se atreve a negar. O que estes cientistas estudaram foi até que ponto o aborrecimento sentido pelo próprio professor se reflete no aproveitamento dos seus alunos. Sem dúvida que os professores também se podem sentir aborrecidos, por estarem a ensinar sempre a mesma matéria ano após ano, perante alunos que não manifestam o mais pequeno interesse. Como resultado, os alunos ficam ainda mais aborrecidos e menos motivados do que já estavam. Esta é uma das conclusões do estudo científico premiado com o Ig Nobel, e que é manifestamente evidente: o aborrecimento de uns gera ainda maior aborrecimento nos outros. Outra conclusão a que a equipa de cientistas chegou é a de que a própria expectativa de que uma aula vai ser aborrecida gera ela mesma aborrecimento. A solução que eles propõem é a de manipular antecipadamente as expectativas sobre o interesse que uma aula possa vir a ter, de modo a minimizar o aborrecimento. Não há receitas milagrosas.

Prémio Ig Nobel da Psicologia

Concedido a Stanley Milgram, Leonard Bickman e Lawrence Berkowitz, por estudarem quantas pessoas olham para cima numa rua de uma cidade, quando veem estranhos olharem para cima.

Para dizer com toda a sinceridade, não há nada neste estudo que não se saiba já de forma empírica. Toda a gente sabe que o ser humano é dotado de curiosidade e, portanto, é natural que também olhe, quando vê alguém a olhar para o ar. E é tudo.

Prémio Ig Nobel da Física

Galardoado a Bieito Fernández Castro, Marian Peña, Enrique Nogueira, Miguel Gilcoto, Esperanza Broullón, Antonio Comesaña, Damien Bouffard, Alberto C. Naveira Garabato e Beatriz Mouriño-Carballido, por medirem até que ponto a agitação da água dos oceanos é afetada pela atividade sexual das anchovas.

É sabido que a agitação marítima se deve a vários fatores, tais como os ventos e as marés, que afetam diversas propriedades da água dos oceanos, tais como a temperatura, a salinidade, a dissolução de gases e a quantidade de nutrientes. Esta equipa de cientistas acrescenta aos fatores de agitação marítima referidos os organismos que vivem nos oceanos, como o zooplâncton, os peixes e os mamíferos, tendo estudado a intensa agitação das águas provocada pela desova de um numeroso cardume de anchovas.


Controlada por um pequeno sistema hidráulico, uma aranha morta (em cima) é usada para agarrar outra aranha, pousada numa superfície (em baixo) (Foto: Preston Innovation Laboratory)

19 setembro 2023

Calma! O verão está no fim, mas ainda nos esperam dias amenos


Moças no banho, fresco transferido para uma tela, do pintor italiano Bernardino Luini (falecido em 1532). Durante o processo de transferência de uma parede para a tela, esta pintura sofreu alguns danos. Pinacoteca de Brera, Milão, Itália (Clicar na imagem para ampliá-la)

16 setembro 2023

O violino é assim que se toca


Fantasia sobre temas da ópera cómica "A Filha do Regimento" (de Gaetano Donizetti), do compositor português Francisco de Sá Noronha (1820–1881), pelo violinista italiano Gian Paolo Peloso e a Orquestra Clássica da Madeira

13 setembro 2023

Um precursor do Neorrealismo


Madrugada, 1920, escultura de Artur Anjos Teixeira (1880–1935). Representa um casal de pescadores, em que o homem caminha com um bordão na sua mão direta, enquanto a mulher segue mais atrás, com uma canastra na cabeça e um filho nos braços. Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa, Portugal

Madrugada, 1920, escultura em bronze de Artur Anjos Teixeira (18801935). Representa um casal de pescadores descalços, em que o homem transporta um bordão entalado no seu braço esquerdo, enquanto a mulher segue à sua frente, com uma carga à cabeça e um filho nos braços. Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

Varina, atando o pé, gesso patinado de Artur Anjos Teixeira (1880–1935). Representa uma varina descalça, com o pé direito pousado num tronco e atando um pano em volta do respetivo tornozelo. Museu Anjos Teixeira, Sintra, Portugal

Artur Gaspar dos Anjos Teixeira (Anjos Teixeira, pai) foi um escultor naturalista português. Produziu diversas obras em que se nota uma forte preocupação com as questões sociais, como a pobreza e a desigualdade. Podemos, por isso, considerar que Anjos Teixeira foi um precursor do Neorrealismo, corrente artística e literária que ainda estava para vir e que marcou fortemente a vida cultural portuguesa no séc. XX.

11 setembro 2023

«A menina dá-me a honra de partilhar comigo esta dança?»


In the Mood, pela orquestra de Glenn Miller

Bugle Call Rag, pela orquestra de Benny Goodman

One O'Clock Jump, pela orquestra de Count Basie

Manhattan, pela orquestra de Tommy & Jimmy Dorsey

C Jam Blues, pela orquestra de Duke Ellington

09 setembro 2023

Gaspar Vaz


Virgem da Anunciação, c. 1530, óleo sobre madeira de Gaspar Vaz (ativo entre 1514 e 1568). Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, Portugal

Cristo em Casa de Marta, 1535–1540, óleo sobre madeira de castanho de Gaspar Vaz (ativo entre 1514 e 1568). Museu Nacional Grão Vasco, Viseu, Portugal

Gaspar Vaz foi um pintor português do séc. XVI e pertenceu à denominada Escola de Viseu. Não se sabe o ano do seu nascimento, mas supõe-se que tenha visto a luz do dia em Viseu. Fez a aprendizagem da sua arte em Lisboa, na oficina de Jorge Afonso, um dos maiores vultos da pintura portuguesa. Aí terá conhecido Vasco Fernandes (Grão Vasco), outro grande vulto, com quem viria a colaborar já em Viseu.

O estilo de Gaspar Vaz é muito semelhante ao de Grão Vasco, tornando difícil a identificação da sua obra. Alguns pequenos detalhes, porém, permitem aos entendidos dizer se um determinado quadro foi feito por um ou pelo outro. Por exemplo, Gaspar Vaz não teria um domínio da técnica tão perfeito como tinha Grão Vasco, mas imprimiria uma maior expressividade às suas personagens.

04 setembro 2023

O lobo humano

A cada instante aos meus ouvidos
Chega um lamento, um grito, um ai!
Coro dantesco de gemidos,
Detonações, brados perdidos
E o baque surdo de quem cai…

Soluços, bocas às dentadas
Numa feroz agitação…
Blasfémias, uivos, gargalhadas,
Imprecações e derrocadas
No ronco torvo dum tufão!

É o velho mundo a desfazer-se
E a raça humana que o desfaz!
O Egoísmo em fúria a contorcer-se,
Todo a espumar e a remorder-se,
Guinando aos pulos para trás!

Trava-se a luta, braço a braço,
E não há trégua nem perdão!
O sangue espirra a cada passo,
Os corvos cruzam todo o espaço
E o fogo lambe a escuridão…

Numa alcateia, foragidos
Os lobos olham com pavor:
— É o Lobo humano!… — E, comovidos,
Vão para as furnas escondidos
Lamber os filhos com amor…

João Saraiva (1866–1948)


(Foto de autor desconhecido)

01 setembro 2023

A morte do capitão


Cortejo fúnebre que antecedeu a trasladação para Portugal dos restos mortais do capitão José Manuel da Costa Martins, comandante da Companhia de Cavalaria 2635 do Batalhão de Cavalaria 2899 ("Ás de Espadas"), morto em combate no dia 27 de fevereiro de 1970, na região de Muié, Luchazes, Moxico, Angola (Foto: Manuel Casal Ribeiro)

Narrativa dos acontecimentos que conduziram à morte do capitão José Manuel da Costa Martins, feita pelo antigo primeiro-cabo enfermeiro Manuel Casal Ribeiro, no seu livro Memórias (na primeira pessoa).



Premonição I

Quando fui chamado pelo Dr. Hasse Ferreira, para me dizer que, no dia seguinte, sairíamos para uma operação em larga escala numa zona de risco (pois esta era, a nível de companhias, a que englobava cerca de 130 homens), eu perguntei-lhe: “Não é melhor levar dois ou três frascos de soro, para o caso de haver feridos?” “Não, não vale a pena, pois a evacuação dos feridos faz-se rapidamente e, quando um ferido não aguenta uma hora, é porque já não vale a pena ser socorrido.”

A flagelação

Saímos nessa madrugada, tomado antes o pequeno-almoço, em direcção ao rio Chicului, local que desconhecíamos totalmente. Andámos várias horas pela picada até chegarmos ao rio, seguindo a descoberto ao longo da margem. Ao entardecer, fomos alvejados, sem consequências. Pouco depois, começava o sol a pôr-se, parámos para passar a noite, em terreno descoberto.

Premonição II

No dia seguinte, o grupo do capitão, em que eu também estava inserido, passaria para a frente, enquanto outro pequeno grupo seguiria pelos lados, naquilo a que nós chamávamos de “bater mato”. Dirigi-me ao capitão e perguntei-lhe se não seria melhor eu mudar de grupo, para ficar mais resguardado, pois era o único enfermeiro: no caso de haver feridos e eu fosse um deles, não poderia valer-lhes. Respondeu-me que não, porque não ia acontecer nada.

O certo é que permanecemos junto ao rio até depois das 10 horas.


A emboscada

Embrenhámo-nos no mato seguindo por um trilho e, cerca de 15 minutos depois, ouvem-se os primeiros tiros. Todos ao chão, e a seguir ouve-se o rebentamento de uma granada, saltei para fora do trilho e, quando levo a G3 à cara e o dedo ao gatilho, noto que há alguns soldados a rastejar na minha direcção. Há gritos a chamarem-me, corro para a frente do grupo e vejo o capitão já a agonizar, pois tinha duas balas no peito, junto ao coração, e uma granada ofensiva que lhe tinha desfeito as partes e as pernas, um G.E. com um pulmão perfurado, feridos mais ligeiros e homens a chorar. Assim que me debruço sobre o capitão, as minhas primeiras palavras foram: “Filha da puta de guerra de interesses, que nunca mais acaba!” Abri o saco dos medicamentos e, enquanto tratava dos feridos, fui dando ordens para improvisarem macas, para o que dei o meu pano de tenda. Gritei ao Cavalinhos para pedir a evacuação dos feridos. Estava a tratar o G.E. — que, a seguir ao capitão, era o que estava em pior estado — quando me apercebi de que ele já tinha morrido. Regressámos de imediato para a clareira junto ao rio para evacuar os feridos nos helicópteros.

A evacuação

Já na clareira, e com a segurança montada, esperámos pelo helicóptero. Constatei, então, e definitivamente, que o capitão já morrera, mas o nosso (já falecido) Alferes Girão veio chamar-me, dizendo que lhe parecia ter visto o capitão mexer-se. Fui com ele, descobri o capitão e disse-lhe: “Ò meu alferes não vê que o capitão está morto?!” Esta cena repetiu-se mais duas ou três vezes, ao Alferes Girão custava-lhe aceitar tão brutal acontecimento. O facto é que as horas foram passando e, de helis, nem ruído. O Alferes Canas disse-me que, quando os helicópteros chegassem, não divulgasse que havia mortos porque, senão, eles não os levariam, pelo que teríamos de carregá-los até ao quartel. Ao fim de quatro horas, um dos G.E.s aproximou-se de mim e disse-me que o G.E. tinha morrido. Fui com ele e constatei que assim era, o desgraçado agonizara mais de quatro horas. Instalou-se em mim uma tal revolta que, quando o heli pousou, eu levantei-me ao mesmo tempo que dele saía o piloto, um tenente, e gritei-lhe:

“Temos dois mortos e três feridos, como é? Só agora é que aparecem?!”

Diz-me ele: “Calma, nós vamos levar os feridos a Serpa Pinto e regressamos para levar os mortos ao quartel.” Como eu já tinha sido avisado pelo nosso Alferes, retorqui-lhe: “Um momento!” Dirigi-me aos nossos dois furriéis — creio que um deles era o Dias Pereira, que era aquele que estava em piores condições — e perguntei se não se importavam de esperar mais, talvez meia-hora, o que eles aceitaram de imediato. Virei-me para o Tenente e disse-lhe:

“Agora vai levar os mortos ao Muié e depois volta aqui para levar os feridos, senão não sai daqui ninguém”.

Foram mais ou menos estas as minhas palavras, que o piloto aceitou — levou o capitão e o G.E. para o quartel e regressou cerca de 30 minutos depois para levar os feridos.

O Cavalinhos

Depois de o helicóptero partir com os feridos, pusemo-nos em marcha, em direcção à picada, que ficava em frente a uma ponte destruída, sobre o Chicului. Parámos já a noite ia longa, para descansar, comer e encher os cantis com água. Estava eu sentado a abrir uma lata de conserva quando o Cavalinhos me vem pedir o cantil; eu disse-lhe que não, que me desse ele os cantis que tinha, pois eu é que devia tratar disso. Ele insistiu e eu entreguei-lhe o meu, e lá foram uns poucos buscar água. Pouco depois, ouviu-se um estrondo, a lata que eu tinha na mão voou para um lado e eu para o outro, à procura da G3, tiroteio infernal em todas as direcções. Eu nem sequer levei a mão ao gatilho, pois não se via nada, tal era a escuridão. Ouviam-se gritos vindos do lado do rio. O Cavalinhos tinha tropeçado numa armadilha e vinha ferido, não era grave, alguns estilhaços nas nádegas, que eu desinfectei como pude, à luz de isqueiros e por baixo de um pano de tenda. Esta situação veio atrasar a nossa saída daquele local, que estava prevista para a meia-noite, em cerca de duas horas. Quando nos pusemos a caminho do quartel, sempre à berma da picada, o Cavalinhos ia à minha frente e eu de vez em quando perguntava-lhe se queria parar para pedir a sua evacuação logo que rompesse o dia. Disse-me sempre que não, aguentando corajosamente as dores, debaixo de uma chuva diluviana. Um verdadeiro herói. Ao chegar à entrada do quartel, o Leonel dirigiu-se-me, perguntando: “Eh Casal, então?” Eu, que até aí me tinha aguentado, desatei num pranto convulsivo. O Leonel abraçou-me e levou-me para o nosso quarto, onde então, mais tarde e mais calmo, lhe contei o que se tinha passado.



Em complemento à narrativa do ex-primeiro-cabo enfermeiro Manuel Casal Ribeiro, acima reproduzida, transcreve-se a seguir o testemunho do antigo alferes miliciano José Reis.


A noite mais longa

Com os mortos e feridos já a bordo do Alouette do Tenente Antolin, que finalmente apareceu ao fim de uma longa espera de 5 horas, não é possível esquecer o desabafo do Furriel Dias Pereira que já a bordo do Helicóptero com uma mão totalmente esfacelada, dizia: - "Meu alferes, ganhe a sua guerra que eu já ganhei a minha!!!"

O rude golpe da morte do Cap. Costa Martins e do nosso guia naquela fulminante emboscada, a longa espera pelo apoio aéreo, deixava-nos uma dura tarefa pela frente por nos encontrarmos a mais de um dia de caminho a pé no regresso ao Muié, agravado pelo facto de estarmos perfeitamente controlados pelo IN ao fim de 5 horas no mesmo local.

A saída do Chicolui tornava-se pois muito perigosa e o perigo de novas emboscadas dava-nos que pensar.

Optámos por subir o rio a caminho da nascente sempre pela margem, com os morteiros afiados, aguardando o anoitecer e dando a ideia que continuaríamos nessa direcção, ao contrário do que seria o caminho natural pela perigosa picada directa para o Muié, que saía perpendicular ao rio.

Logo que anoiteceu, traçámos um plano que consistiu em acamparmos na chana, dando a ideia que ali ficaríamos até de manhã, facto que por certo o IN aproveitaria para nos emboscar na perigosa saída do rio ou mais à frente, sabíamos lá nós onde......

Sobre nós, noite cerrada, desabavam 4 ou 5 trovoadas a toda a volta e uma chuva persistente que não parava de cair. Por vezes parecia fogo de artifício, tornando aquela noite muito dura psicologicamente e uma iluminação sinistra depois de tudo o que se passou, e o que se seguiria.

O plano consistia em abastecermos de água ali mesmo e à meia noite de forma inopinada e fora da picada, mata dentro, subirmos a margem em direcção ao Rio Muié, que verificámos depois, estava a mais de um dia de caminho, caminho longo, onde não era possível abastecer de água.

Cada secção indicou um elemento para em grupo ir ao Rio Chicolui, ali bem perto, abastecer os cantis mesmo debaixo de trovoada, o dia seguinte ia ser muito duro.

Constituído o grupo, este lá foi no escuro trilho abaixo abastecer ao máximo os cantis. O silêncio individual era total por segurança e a atenção era dobrada, ninguém tinha sono, todos aguardavam naquele silêncio, apenas interrompido pela trovoada, que regressasse o pessoal da água.

Repentinamente ouviu-se uma grande explosão, todos “morremos” de preocupação, nem um tiro se ouviu, o silêncio só foi interrompido por um elemento que em corrida informou:

— O Cavalinhos rebentou uma armadilha que estava no trilho!!!

Regressado todo o grupo, debaixo de capas por forma a não sermos localizados, à luz de isqueiros, foram feitos os primeiros socorros, tínhamos perante nós o radiotelegrafista, com as costas crivadas de estilhaços e um longo caminho a percorrer.

Não podíamos ficar ali mais tempo!!!

A meia noite chegou e como previsto, avançámos. O Cabo Cavalinhos estoicamente suportando as dores, incorporou-se na coluna e mata dentro, subindo a margem, aproveitámos a frescura da noite para seguir no mais perfeito corta-mato, contando apenas a direcção da bússola que mais aqui ou ali iria dar ao Rio Muié, mas............ ele estava longe.

O Sol quando apareceu veio fortíssimo, e mesmo com todos os apelos à poupança de água, ao meio dia, já muita gente tinha o cantil vazio, depois, depois... até uma árvore queimada por uma faísca e que tinha água da chuva no tronco, mas... cheia de bichos, serviu para os mais aflitos.

Os comprimidos de cloro trataram os bichos......

O rio Muié, só foi alcançado no dia seguinte e tivemos que acampar ainda outra noite numa mata fechada com toda a gente exausta e onde o colchão foram raízes e mais raízes, a segurança a isso obrigou... FOI A NOITE MAIS LONGA.



GLOSSÁRIO:
G3 — Modelo de espingarda automática
G. E. — "Grupos Especiais", uma força paramilitar africana
Alouette — Marca de helicópteros
IN — Inimigo
Chana — Terreno plano e alagadiço

29 agosto 2023

Danças ucranianas


Bordadeiras, por alunas da Academia Municipal de Dança de Kiev

Hopak, pelo Agrupamento Nacional Ucraniano de Dança Folclórica Pavlo Virsky. Hopak é um tipo de dança de joelhos fletidos, que muitas pessoas julgam ser russo, mas não é. O hopak surgiu entre os cossacos de Zaporíjia e expandiu-se pelo resto da Ucrânia e pelo sul da Rússia. Em russo é chamado gopak

26 agosto 2023

A arte de um santeiro


Sãozinha de Alenquer, de Amálio Maia (1895–1986), em pedra de Ançã, Instituto da Sãozinha, Abrigada, Alenquer (Foto da capa do livro sobre a vida e obra de Amálio Maia por Sérgio O. Sá)

Não se dizem escultores, nem chamam arte às estátuas que produzem. São os santeiros ou imaginários, assim chamados porque são eles que fazem as imagens dos santos que povoam os altares das igrejas, capelas, santuários e oratórios. Não frequentaram qualquer curso de Belas-Artes nem estão a par das correntes artísticas no domínio da escultura, antes foram aprendizes em oficinas de mestres de fama reconhecida, até que eles mesmos se tornaram mestres também. Apesar de tudo isto, mesmo com poucos ou nenhuns estudos, alguns deles, pelo menos, tornaram-se verdadeiros artistas. Merecem, por isso, todo o nosso respeito.

Em Portugal, os principais centros de produção de estatuária sacra situam-se a norte: na Maia e na vizinha localidade de São Mamede de Coronado, que pertence ao concelho da Trofa, assim como em Braga e em Vila Nova de Gaia. Por tradição, os santeiros transmitem frequentemente a sua arte de pais para filhos e para netos, constituindo assim verdadeiras dinastias, como é o caso, no concelho da Maia, da família Sá e da família Maia, e em São Mamede de Coronado daquela que é, talvez, a mais respeitada de todas as dinastias de santeiros, a da família Tedim.

Suponhamos que uma determinada confraria decidiu encomendar a um santeiro uma imagem de Santo António, para colocar no altar da sua capela. Suponhamos, também, que o santeiro lhes propôs a feitura de uma imagem que representasse Santo António de mãos levantadas para o céu, em vez de ter o Menino Jesus ao colo. «Afinal», diria o santeiro, «o Santo António não andou a vida toda com o Menino ao colo de um lado para o outro». Qual acham que seria a reação dos irmãos da confraria? Sem dúvida nenhuma que seria uma reação de total rejeição. «Nem pensar», diriam os irmãos, «o Santo António tem que ser representado com o Menino ao colo, caso contrário não será o Santo António, mas outro santo qualquer».

Nestas condições, as representações dos santos nas imagens têm forçosamente que obedecer a um conjunto de estereótipos, que permitam o reconhecimento imediato do santo ou da santa sem necessidade de ler qualquer legenda. O Santo António terá que ser representado com o Menino Jesus ao colo, o São Sebastião terá que ser representado amarrado a um tronco e crivado de setas, e por aí adiante. Não há como fugir a isto. Ou o santeiro faz as imagens tal como os potenciais clientes pretendem, ou estes cancelam a encomenda e vão bater a outra porta. Por isso, não sejamos demasiado exigentes com os santeiros. Mesmo que quisessem, eles não poderiam fazer de outra maneira. É o seu próprio ganha‑pão que está em causa.

Um dos maiores santeiros portugueses dos últimos cem anos, senão mesmo o maior de todos, foi o maiato Amálio Maia, que só tinha a quarta classe da Escola Primária. É claro que Amálio Maia fez muitas imagens convencionais, de acordo com o que lhe era encomendado, sem que pudesse dar largas à sua criatividade, mas, por vezes, esta criatividade manifestava-se em figuras secundárias, moldadas à margem das figuras principais. Vendo estas figuras secundárias, sentia-se que podia haver ali um talento que estava reprimido pelas convenções.

Um dia surgiu a oportunidade de Amálio Maia dar largas às suas qualidades de Artista com A maiúsculo, com a encomenda de uma estátua que representasse a Sãozinha, a jovem de Alenquer que morreu com fama de santidade. Então, sim, como não existia um estereótipo da Sãozinha a que se visse obrigado, Amálio Maia pôde finalmente pôr toda a sua alma de artista na feitura daquela que terá sido a sua obra-prima: uma escultura da Sãozinha.

Sérgio O. Sá, que pertence a uma família de santeiros, embora não exerça a profissão, descreveu assim a criação da estátua da Sãozinha por Amálio Maia:


Cerca de nove anos depois da morte da "Florinha de Abrigada", como lhe chamavam, os seus progenitores decidiram mandar esculpir um retrato de corpo inteiro, em pedra de Ançã, em memória de sua malograda filha a quem o destino deixou viver apenas dezassete anos. Para o efeito, escolheram a oficina Maias Irmãos, confiantes no talento do seu mestre, e passaram por lá. Levaram fotografias, vestes e calçado que Sãozinha tinha usado. Dialogaram, acertaram orçamento e deixaram a encomenda.

Com os elementos e sugestões deixados, Amálio Maia partiu para a elaboração do respectivo modelo, em barro, com 0,80 m de altura. Modelo que, depois de aprovado pelos encomendadores, passou para as mãos dos colaboradores que, sobre o bloco de pedra, trataram de fazer emergir as formas que, no modelo, já estavam bem definidas.

Acompanhando, atento, o nascimento da estátua, cuja altura correspondia à do modelo — 0,80 m — o mestre aguardava, com paciência e alguma ansiedade à mistura, o momento de se entregar a ela, de passar ao tratamento do rosto, dos cabelos, das mãos, proceder ao aperfeiçoamento de um ou outro detalhe e determinar a sua conclusão.

Essa formosa estátua, produzida em 1949, encontra-se na Casa da Sãozinha, em Abrigada — Alenquer.


Sérgio O. Sá (Sérgio de Oliveira e Sá), Amálio Maia — Um santeiro maiato de nome nacional, Edição de Autor, Maia, 2020


Santo António, de Amálio Maia (1895–1986), em pedra de Ançã, frontaria do Santuário de Mixões da Serra, Vila Verde (Foto extraída do livro sobre a vida e obra de Amálio Maia por Sérgio O. Sá)

Nossa Senhora da Guia, de Amálio Maia (1895–1986), em madeira policromada, Capela de Nossa Senhora da Guia, Vila do Conde (Foto extraída do livro sobre a vida e obra de Amálio Maia por Sérgio O. Sá)

Figura do povo, de Amálio Maia (1895–1986), madeira policromada, Capela da Traição, Via Sacra do Santuário do Bom Jesus do Monte, Braga (Foto extraída do livro sobre a vida e obra de Amálio Maia por Sérgio O. Sá)

Busto de Augusto Simões, de Amálio Maia (1895–1986), pedra de Ançã, acervo museológico da Câmara Municipal da Maia (Foto extraída do livro sobre a vida e obra de Amálio Maia por Sérgio O. Sá)

23 agosto 2023

Naturalia non sunt turpia


(Foto de autor desconhecido)

Naturalia non sunt turpia (as coisas naturais não são torpes) é uma frase latina que se costuma citar a propósito da nudez, querendo dizer que nada no corpo humano é torpe, porque é natural. Um crente poderá também dizer que nada no corpo humano é torpe, porque é de criação divina.

É habitual chamar nudista ou naturista a uma pessoa que pratica a nudez com alguma regularidade, mas o naturismo não é só isso. Uma pessoa pode andar nua por diversas razões (incluindo razões de ordem sexual), mas a palavra indispensável para que essa pessoa possa ser considerada naturista ou nudista é a palavra "respeito": respeito por si, respeito pelos outros e respeito pela Natureza.

(Foto de autor desconhecido)

O naturismo é uma filosofia de vida nascida no início do séc. XX em França e na Alemanha, quando surgiram as primeiras associações que criaram espaços reservados ao tratamento e cura de doenças, nos quais as pessoas ficavam despidas ao ar livre e alimentavam-se unicamente de produtos naturais.

Por outro lado, na Alemanha, um professor de educação física chamado Adolf Koch (1897–1970), que se dedicou ao estudo da ginástica e criou um método que tomou o seu nome, incentivou a prática de exercícios físicos em total nudez, como na Grécia Antiga. Como resultado, Adolf Koch verificou que, ao fim de algum tempo, os seus alunos se mostravam mais alegres, mais confiantes e mais robustos do que os outros. Com base nos seus ensinamentos, foi então fundado em julho de 1923 (portanto há cem anos) um movimento de aproximação nua à Natureza que ganhou uma vasta reputação no mundo de língua alemã e se chamou Freikörperkultur (Cultura do Corpo Livre), também chamado, de forma abreviada, pela sigla FKK. Este movimento foi combatido pelos nazis, mas ressurgiu após o fim da Segunda Guerra Mundial, tanto na República Federal da Alemanha como, sobretudo, na República Democrática Alemã. Ainda hoje, nos países de língua alemã, a sigla FKK é sinónima de nudismo e os locais onde a sua prática está legalizada são assinalados por placas ostentando a sigla FKK.

Um cartaz em Viena, assinalando uma área oficialmente reservada à prática de nudismo. Os vienenses dizem que a sua cidade tem a maior área naturista do mundo, que está situada no Parque Nacional de Lobau, assim como nas vizinhas margens do canal Neue Donau, onde é possível nadar rodeado de cisnes (Foto de autor desconhecido)

A publicidade está cheia de invejáveis corpos perfeitos, cujas imagens são usadas na promoção dos mais diversos produtos e serviços. As pessoas olham para esses corpos, comparam-nos com os seus próprios e sentem-se infelizes, porque não têm um corpo assim. Envergonham-se do corpo que têm, porque o ideal de beleza e perfeição que lhes é apresentado lhes parece inatingível.

Diversos estudos científicos publicados em revistas de renome têm vindo a sublinhar as vantagens sanitárias e psicológicas da convivência social sem roupas em ambiente natural. Quando se encontram despidas juntamente com outras pessoas nuas, as pessoas têm tendência a aceitar os seus semelhantes tal como são, com todas as suas qualidades e com todas as sua imperfeições, sentem aumentar a sua auto-estima e tendem a ser mais francas e menos dissimuladas, precisamente porque se apresentam sem disfarces.

(Foto de autor desconhecido)

Um estudo científico em inglês sobre o naturismo e os seus efeitos, chamado Naked and Unashamed: Investigations and Applications of the Effects of Naturist Activities on Body Image, Self-Esteem, and Life Satisfaction, está aberto ao público na Web, para consulta e descarga em formato PDF, no endereço https://link.springer.com/article/10.1007/s10902-017-9846-1.

(Foto: Albert Yam)

19 agosto 2023

Asas e Azares

Voar com a asa ferida?
Abram alas quando eu falo.
Que mais foi que fiz na vida?
Fiz, pequeno, quando o tempo
estava todo ao meu lado
e o que se chama passado,
passatempo, pesadelo,
só me existia nos livros.
Fiz, depois, dono de mim,
quando tive que escolher
entre um abismo, o começo,
e essa história sem fim.
Asa ferida, asa ferida,
meu espaço, meu herói.
A asa arde. Voar, isso não doi.

Paulo Leminsky (1944–1989), poeta brasileiro


(Foto: picture alliance/JOKER)

16 agosto 2023

Sports et Divertissements


Sports et Divertissements, um conjunto de 21 miniaturas musicais para piano de Erik Satie (1866–1925), que acompanham 20 ilustrações de Charles Martin (1884–1934) e ainda um prefácio. Interpretação do pianista armeno-espanhol Rubén Yessayan

Sports et Divertissements é um conjunto de 21 peças miniaturais para piano escritas pelo excêntrico compositor francês Erik Satie, para acompanharem 20 ilustrações feitas pelo artista plástico Charles Martin, também francês. A 21.ª peça de Satie, que de facto é a primeira e surge apresentada como prefácio, é o chamado "Choral Inappétissant", uma peça propositadamente amarga e aborrecida, que Erik Satie dedicou a todos os que não gostavam dele…

As ilustrações de Charles Martin e as correspondentes partituras de Erik Satie (cuidadosamente manuscritas pelo próprio compositor) deveriam ser publicadas conjuntamente em forma de livro, a ser intitulado, precisamente, Sports et Divertissements. Ora tudo isto aconteceu em 1914, ano em que teve início a 1.ª Guerra Mundial, e a publicação do livro não se concretizou.

Terminada a guerra, renasceu a ideia da publicação do livro. Se, por um lado, as composições de Satie não sofreram qualquer alteração, permanecendo as que ele tinha escrito em 1914, as ilustrações originais de Charles Martin foram substituídas por outras do mesmo autor, mais de acordo com a estética dos chamados "loucos anos 20", que era uma estética mais cubista. O livro foi finalmente publicado em 1923, há precisamente cem anos.

O vídeo aqui apresentado mostra os desenhos de Charles Martin acompanhados da correspondente música de Erik Satie, assim como das palavras que o próprio compositor escreveu nas suas partituras, em jeito de descrição, traduzidas do francês para castelhano. Aparentemente, a tradução é muito aceitável.

09 agosto 2023

Igreja de São Cristóvão de Rio Mau


Igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Foto: Paula Miranda?)

Rio Mau é o nome de uma localidade do concelho de Vila do Conde, que tem uma igreja românica dedicada a São Cristóvão, que é pequena, discreta, rústica e pobre, mas no entanto é linda! Não é por acaso que esta igrejinha está classificada como Monumento Nacional.

Quando visitamos a pequena igreja de São Cristóvão de Rio Mau, sentimo-nos logo transportados para a Idade Média, porque poucas alterações esta igreja sofreu desde os primórdios da nacionalidade até aos nossos dias. Como parece ter parado no tempo muitos séculos atrás, São Cristóvão de Rio Mau é o retrato de uma época que ficou petrificada no rugoso granito local e por isso nos dá uma amostra da rusticidade, dos gostos, da fé, dos símbolos, dos medos, dos mitos e das esperanças das pessoas que viveram naquele tempo e naquela região.

A igreja de São Cristóvão de Rio Mau deve ter sido construída no séc XI, como parte integrante de um mosteiro que albergava uma comunidade de cónegos regrantes de Santo Agostinho. No séc. XII, a igreja sofreu alguns acrescentos e passou a tomar um aspeto semelhante ao que agora apresenta. Desde então, ela não sofreu muitas alterações, porque entretanto os monges saíram daquele lugar para se juntarem aos que estavam em São Simão da Junqueira, perto dali. A humilde igrejinha de Rio Mau deve então ter ficado esquecida ou mesmo abandonada, enquanto o mosteiro que lhe ficava anexo desapareceu por completo.

O estado a que chegou a igreja de São Cristóvão de Rio Mau deve ter sido de verdadeira ruína, a avaliar pelos sinais de reconstrução que apresenta de forma evidente. No entanto, foi possível restaurá-la tanto quanto possível dentro do respeito pela sua traça original medieval, porque ela nunca tivera outra. A igreja sempre tinha sido mais ou menos assim e assim ficou. É uma belíssima igreja, ainda que seja muito rústica e pequena.


Tímpano do portal principal da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, concelho de Vila do Conde (Foto: Jacqueline Poggi)

O tímpano do portal principal da igreja é tão tosco que até comove. Dir-se-ia que aquelas figuras foram esculpidas por mãos que estavam mais habituadas a empunhar o arado, do que a manusear o martelo e o cinzel para moldar o duro granito.

No centro do tímpano, vê-se uma representação de Santo Agostinho, com a mitra e o báculo de bispo, abençoando os fiéis com a sua mão direita. De ambos os lados da figura central, duas personagens menores apresentam livros abertos, símbolos tradicionalmente associados a Santo Agostinho, que é Doutor da Igreja. Por fim, no extremo esquerdo do tímpano vê-se uma ave com o sol acima da sua cabeça e no extremo direito está o que dizem ser uma sereia com os braços levantados segurando a lua. Sinceramente, não consegui descobrir qual é o significado destas duas figuras. Com certeza que deve existir um simbolismo associado a elas, mas eu não sei qual é.


Tímpano do portal lateral norte da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Foto de autor desconhecido)

O portal lateral da igreja virado a norte tem um tímpano com um baixo-relevo que parece representar um combate entre um grifo, no lado esquerdo, e um dragão, no lado direito. Este combate pode ser interpretado como simbolizando a luta entre o Bem e o Mal.


Capitéis no portal principal da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Foto: Xabier)

Uma das características das igrejas medievais, sejam elas românicas ou góticas, mas sobretudo das românicas, é a extraordinária riqueza e diversidade de motivos representados em capitéis, gárgulas, cachorros e outros elementos arquitetónicos. Os motivos que forem vegetais e abstratos, enfim, provavelmente teriam uma finalidade predominantemente decorativa. Mas que dizer dos outros motivos (e são tantos e tão diversos), que representam pessoas, animais, dragões, sereias, monstros, etc.? Que significados poderemos atribuir a tais representações, que muitas vezes nos parecem ter saído de sonhos, de delírios, de êxtases e de visões do inferno ou do paraíso, e que ficaram eternizados na pedra? Ainda por cima, tais representações testemunham muitas vezes uma conceção estética de altíssima qualidade.


Capitel no interior da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Foto: PedroPVZ)

Mesmo quando não soubermos que mensagem nos pretendia transmitir o artista que tais motivos materializou, sentimos uma comoção imensa ao vê-los, que não é unicamente estética. Assim acontece em São Cristóvão de Rio Mau. É uma igreja que emociona.



Capitéis no interior da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Fotos: Xabier)

Capitel no interior da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde (Foto de autor desconhecido)

Interior da igreja de São Cristóvão de Rio Mau, Vila do Conde, tal como se apresenta atualmente (Foto de autor desconhecido)

02 agosto 2023

Um filme de Bucha e Estica


A dupla cómica Stan Laurel e Oliver Hardy (Bucha e Estica em Portugal e O Gordo e o Magro no Brasil) alistam-se na Legião Estrangeira na sequência de um desgosto de amor sofrido por Oliver, no filme The Flying Deuces, datado do ano de 1939 e realizado por A. Edward Sutherland. Outros destacados intérpretes deste filme são Jean Parker e Reginald Gardiner. Esta é uma versão original falada em inglês, sem legendas. Duração: 1 hora, 3 minutos e 30 segundos. Apontando para o símbolo no canto superior direito, é possível aceder diretamente ao site que contém o filme e descarregá-lo num de diversos formatos

30 julho 2023

Duas peças musicais de Francisco de Lacerda


Saudades da Terra, do compositor português Francisco de Lacerda (1869–1934), nascido na Fajã da Fragueira, Calheta, ilha de São Jorge, Açores, por Lia Altavilla (soprano) e Carla Seixas (piano)

Danses Sacrées ou Danse du Voile, do compositor português Francisco de Lacerda (1869–1934), pela harpista inglesa Eleanor Turner

25 julho 2023

Habeas Pinho


Numa madrugada do ano de 1955, na cidade de Campina Grande, no estado da Paraíba, Brasil, um boémio que fazia uma serenata foi detido pela polícia, por perturbação do sossego público. Foi libertado no dia seguinte sob fiança, mas o seu violão manteve-se apreendido. Foi feito o inquérito correspondente, que seguiu para a Justiça, devidamente acompanhado pelo violão como instrumento do "crime". Com vista a reaver o seu violão, o boémio recorreu ao advogado Ronaldo Cunha Lima, que além de advogado era poeta. Este dirigiu ao juiz da comarca, Artur Moura, a seguinte petição:

Senhor Juiz.
Artur Moura
Meritíssimo Juiz de Direito da 2ª Vara desta Comarca,

O instrumento do "crime"que se arrola
Nesse processo de contravenção
Não é faca, revólver ou pistola,
É simplesmente, Doutor, um violão.

Um violão, Doutor, que em verdade
Não feriu nem matou um cidadão
Feriu, sim, mas a sensibilidade
De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura,
Instrumento de amor e de saudade
O crime a ele nunca se mistura
E nem existe sentimento de afinidade.

O violão é próprio dos cantores
Dos menestréis de alma enternecida
Que cantam mágoas que povoam a vida
E sufocam as suas próprias dores.

O violão é música e é canção
É sentimento, é vida, é alegria
É pureza e é néctar que extasia
É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório.
Mas seu destino, não, se perpetua.
Ele nasceu para cantar na rua
E não para ser arquivo de Cartório.

Ele, Doutor, que é suave lenitivo
Para a alma da noite em solidão,
Não se adapta, jamais, em um arquivo
Sem gemer sua prima e seu bordão

Mande soltá-lo, pelo amor da noite
Que se sente vazia em suas horas,
Para que volte a sentir o terno acoite
De suas cordas finas e sonoras.

Liberte o violão, Doutor Juiz,
Em nome da Justiça e do Direito.
É crime, porventura, o infeliz
Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, afinal, será pecado,
Será delito de tão vis horrores,
Perambular na rua um desgraçado
Derramando nas praças suas dores?

Mande, pois, libertá-lo da agonia
(a consciência assim nos insinua)
Não sufoque o cantar que vem da rua,
Que vem da noite para saudar o dia.

É o apelo que aqui lhe dirigimos.
Na certeza do seu acolhimento
Juntada desta aos autos nós pedimos
E pedimos, enfim, deferimento.

O juiz Artur Moura elaborou então o seguinte despacho:

Para que eu não carregue
Remorso no coração
Determino que se entregue
Ao seu dono o violão.


O próprio advogado e poeta Ronaldo Cunha Lima contou este episódio perante as câmaras da televisão

19 julho 2023

Dançando sem uma perna


Um cancro obrigou à amputação de uma perna ao sul-africano Musa Motha

14 julho 2023

Regresso ao Lar

Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!…
Foi há vinte?… Há trinta?… Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!…

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida…
Só achei enganos, decepções, pesar…
Oh, a ingénua alma tão desiludida!…
Minha velha ama, com a voz dorida,
canta-me cantigas de me adormentar!…

Trago de amargura o coração desfeito…
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!…
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!…

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar…
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!…
Minha velha ama, sou um pobrezinho…
Canta-me cantigas de fazer chorar!…

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!…), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!…

Canta-me cantigas manso, muito manso…
tristes, muito tristes, como à noite o mar…
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

Guerra Junqueiro (1850–1923)


Uma janela em Freixo de Espada-à-Cinta (Foto: ana sapage)