29 janeiro 2025

Que prazer e que deleite


Ária Qual piacere e qual diletto, da ópera cómica Oro non compra amore, escrita em 1804 pelo compositor português Marcos Portugal (1762–1830) sobre um libreto de Giuseppe Caravita. Recital interpretado pela soprano Sofia Pedro, a instrumentista Gili Rinot em clarinete clássico e o Ensemble Phoenix em instrumentos da época, sob a direção de Myrna Herzog. Gravação ao vivo numa igreja cristã da cidade de Abu Gosh, em Israel, onde a grande maioria da população é muçulmana

26 janeiro 2025

Um poema da Guerra Colonial


Aquartelamento de Calambata, no antigo distrito (atual província) do Zaire, Angola, onde estava instalada uma companhia do Exército Português (Foto: José Bregieiro, 1972)


CALAMBATA

à memória dos nove

(como) a manhã africana inventa a anhara deserta
onde os passos descem do sopro das armas.
A voz cheia da bazuca numa vibração oblíqua.
O coice súbito do morteiro. O silvo em ogiva na face
cinzenta do medo. O cheiro imaginário da maresia.
O medo, o medo.

E como a súbita emboscada acontece
entre o Lungadge e a Magina, exactamente
às nove horas em ponto da manhã africana.
Um auto de corpo de delito se lavra sobre
a anhara então deserta. São nove homens,
têm a minha idade. Diz-se que deslizam pássaros
autopsiados na véspera da memória.

O cacimbo, esta face de areia suspensa. Fitam-me
nove pares de olhos mortos. Como se do chão uma
lâmina se abrisse por entre crateras para as
minhas mãos, crescendo rápida, fugaz.

Via-se a anhara ondular. Uma bandeira nos imaginados
mamoeiros ou na lança dos bambus. E na franja das
mulembas a presença erecta das cubatas: caçambuleiros
velhos de cachimbo apontado ao norte, dengosas
velhas mulheres, os bois tristes como os olhos dos
monangambas, o grito dos monandengues a anunciar
grandes distantes chuvas de morte sobre o mundo.

O imbondeiro: uma árvore de braços abertos sobre a manhã, a terra num sobressalto mudo e cego debaixo da guerra, como se toda uma eterna madrugada acordasse veloz para nos fechar e suturar os olhos, a língua, a boca, os gestos sem cor.

Tensos os braços na espera. Passam da manhã para a tarde. O socorro não vem, a terra num sobressalto a flutuar dentro da guerra. A madrugada acordada na hora veloz da sutura sobre a boca. E eis que a manhã desperta nas metralhadoras.
O ventre, os ouvidos, o peito tomado de assalto.
O combate é um ser vivo, um réptil a corroer os membros,
a face a vida destes nove rapazes da minha idade.

E então, Calambata, palavra escrita a nove letras.
A manhã de nove horas africanas,
o corpo de nove rapazes da minha idade.

João de Melo, escritor português


NOTAS

1 — Os nove rapazes a que João de Melo se refere neste seu poema foram nove jovens militares portugueses, mortos numa emboscada ocorrida numa picada a cerca de 30 quilómetros da fronteira norte de Angola, no ano 1973. Pertencentes a uma companhia instalada em Calambata, os nove militares dirigiam-se a Maquela do Zombo para, na volta, trazerem reabastecimentos em combustível destinados à sua companhia.

2 — Existe um escritor português chamado João de Melo e existe um escritor angolano chamado João Melo, mas sem "de". São dois escritores distintos.



GLOSSÁRIO

anhara — planície coberta de capim
cacimbo — névoa
mulembas — árvores muito frondosas semelhantes aos sicómoros
cubatas — palhotas
caçambuleiros — trôpegos? (de caçambular = fintar, driblar)
monangambas — trabalhadores forçados
monandengues — garotos, meninos
imbondeiro — baobá, Adansonia digitata

24 janeiro 2025

Take Five


Take Five, uma composição de Paul Desmond, pelo Dave Brubeck Quartet, com Dave Brubeck no piano, Paul Desmond no saxofone alto, Eugene Wright no contrabaixo e Joe Morello na bateria. Gravado em 1959

22 janeiro 2025

A cerâmica dos índios Waurá, também chamados Waujá


Pôr-do-sol no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil, onde vivem os índios Waurá ou Waujá (Foto: Piratá Waurá)
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Cerâmica dos índios Waurá apresentada numa exposição (Foto: Piratá Waurá)
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Dois potes de barro decorados com desenhos tradicionais do Xingu e cujas tampas têm pegas que representam cabeças de onça. «Segundo a história quando não existia a humanidade o criador procurava água e encontrou na casa de um ser muito pote de água, no outro dia ele voltou flechando as potes e água explodiu (…)». (Foto: Piratá Waurá)
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Ultimando a decoração do fundo de uma grande panela de barro, destinada à preparação do beiju, uma espécie de grande panqueca confecionada a partir do polvilho de mandioca (Foto: Piratá Waurá)
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Recipiente de barro. «Quando o cacique escolhe seu sucessor que seja jovem é realizado a furação de orelha, nesse momento o pote é utilizado para anestesiar a orelha dos jovens» (Foto: Piratá Waurá)
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Duas grandes panelas de barro (Foto: Piratá Waurá)
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Alguns desenhos tradicionais utilizados na decoração da cerâmica são também empregues na pintura corporal (Foto: Piratá Waurá)
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Piratá Waurá é um talentoso fotógrafo pertencente ao povo Waurá ou Waujá, do Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil. Todas as imagens que ilustram este post são da sua autoria e foram colhidas na sua página pessoal no Instagram



Os artefatos da cultura material wauja são muito apreciados, tendo por isso uma das melhores entradas no mercado do artesanato indígena brasileiro. A sua singularíssima cerâmica é um emblema de sua etnicidade. Atualmente, a cerâmica tem um peso extraordinário na manutenção econômica da aquisição de bens industrializados.

(...) O sistema gráfico wauja está estruturado a partir da combinação de cinco elementos gráficos mínimos:

1) triângulos (retângulos e isósceles);

2) pontos;

3) círculos;

4) quadriláteros (losangos, quadrados, retângulos e trapézios);

5) linhas (retas e curvas).

Como em qualquer sistema de arte ornamental, são as combinações padronizadas dos elementos mínimos que determinam a formação de um motivo. O grafismo wauja utiliza aproximadamente de 40 a 45 motivos na ornamentação da cultura material, fora outros tantos especialmente usados na pintura corporal. Apesar dessa riquíssima variedade de motivos gráficos, apenas 16 motivos são empregados com frequência, e, dentre esses, o motivo kulupienê tem sido desenhado com altíssima frequência sobre todos os tipos de suportes desde a primeira notícia histórica sobre os xinguanos em 1884. Este motivo também foi identificado em cerâmicas do século XII.




Aristóteles Barcelos Neto, antropólogo brasileiro

20 janeiro 2025

Um baixo-relevo com 25 000 anos


A chamada Vénus de Laussel, de há cerca de 25 000 anos, baixo‑relevo em calcário, encontrada em Laussel, Marquay, Dordogne, França. Representa uma mulher segurando um chifre de bisonte na sua mão direita. Museu da Aquitânia, Bordéus, França
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18 janeiro 2025

Espírito da Floresta


Espírito da Floresta, princípios do séc. XIX, escultura de madeira feita por um artista anónimo do povo Ijo, que vive no delta do Níger, Nigéria. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles, Estados Unidos da América
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Esta estranha escultura nigeriana é chamada Espírito da Floresta e retrata os perigos existentes numa floresta de mangues ou mangal. O povo Ijo, a que pertenceu o criador desta obra de arte, é um povo que habita no delta do Rio Níger, onde o mangal é uma vegetação dominante.

O mangal é um tipo de vegetação existente no litoral de regiões equatoriais e tropicais, que está adaptada a viver num ambiente alagadiço e sujeito à subida e descida das marés. A água onde cresce o mangal tanto pode ser salgada como salobra. Além de serem capazes de viver em condições de salinidade que matariam qualquer outra planta, os mangues possuem raízes parcialmente descobertas, que sustentam a planta "no ar", sugerindo muitas vezes as patas de um aranhiço. As raízes de muitos mangues reunidos dão ao mangal um aspeto característico.

Além de ser uma importantíssima barreira que protege a costa contra a erosão marítima, o mangal constitui um ecossistema riquíssimo do ponto de vista biológico, sendo habitado por numerosas espécies animais como peixes, crustáceos, sanguessugas, macacos, répteis, batráquios e muitos outros bicharocos que vivem na água, no coberto vegetal ou são anfíbios.

O mangal de um delta, como o do Níger, constitui um labirinto de ilhas entre as quais serpenteiam os braços do rio e no qual é fácil alguém se perder. Além disso, a existência de cobras e outras espécies perigosas para o ser humano impõe que se tenha o maior cuidado quando se penetra no mangal. A curiosa escultura acima representada chama a atenção, de uma forma extraordinariamente sugestiva, para os perigos existentes no mangal do delta do Níger.


Pormenor do mangal existente no delta do Rio Níger (Foto de autor desconhecido)
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15 janeiro 2025

Escada


Pintura, 1965, óleo sobre tela de José Escada (1934–1980). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Dans la plage, 1979, plástico de José Escada (1934–1980). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Sem título, 1972, óleo sobre platex de José Escada (1934–1980). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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José Jorge da Silva Escada foi um pintor nascido em Lisboa em 1934 e falecido na mesma cidade em 1980. Começou por estudar na Escola António Arroio, em Lisboa, e em 1958 concluiu o curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Em 1959 foi com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian para Paris, cidade onde permaneceu até 1969 e que muito o influenciou. De volta a Lisboa, tornou-se cliente habitual do Café Gelo, no Rossio, juntando-se assim a outros artistas, escritores e intelectuais que já frequentavam este icónico estabelecimento. A sua obra, dotada de grande originalidade, encontra-se espalhada por muitas coleções.

11 janeiro 2025

Viagem ao Maravilhoso


Primeiro episódio da série documental Viagem ao Maravilhoso, realizado em 1990 por Carlos Brandão Lucas para a RTP

09 janeiro 2025

Ralhete

Não me cobres
histórias de adormecer
quando o obus
rebenta no quintal
não me peças luz
se as janelas estão trancadas
não me lembres dos traumas
nem fales de fantasmas
quando eu sonho com
todos os companheiros
que sinto perder na batalha
a cada tempo
não me perguntes sobre o amor
que não tive
nem pelo coração, que esse,
faz tempo, jaz gelado
na granada do meu peito.
Porque procuras os meus olhos
se há muito foram perfurados
pelos estilhaços?
Como te atreves a querer
que te dê a mão se ainda agora
a ofereci em troca de pão?
E, sobretudo, não me perguntes
pelo que não disse
pois a minha boca
há muito se fechou à força
do fuzil do homem
que em mim te semeou.

Ana Santana, poetisa e economista angolana


(Foto de autor desconhecido)

07 janeiro 2025

Fantasia Coral de Beethoven


Fantasia Coral, para piano, vozes solistas, coro misto e orquestra, op. 80, de Ludwig van Beethoven (1770–1827), pela pianista argentina Martha Argerich, o maestro japonês Seiji Osawa e solistas, coro e orquestra não identificados, o que é imperdoável

05 janeiro 2025

Domínguez Álvarez


Casario e Figuras de um Sonho, 1934, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Adega do Galo, 1930, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Rua de Santo Ildefonso, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Coleção particular
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Paisagem de Frías, 1932, óleo sobre tela de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Sem título, têmpera sobre papel de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Paisagem de Contumil, óleo sobre cartão de Domínguez Álvarez (1906–1942). Centro de Arte Moderna Gulbenkian, Lisboa
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Capa do catálogo de uma exposição de obras de Domínguez Álvarez (1906–1942), realizada em Lisboa pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2007–2008
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De ascendência galega, tanto por parte da mãe como por parte do pai, José Cândido Domínguez Álvarez foi um pintor nascido no Porto em 1906 e falecido na mesma cidade em 1942. Estudou no Porto e na Galiza e obteve a classificação máxima (20 valores) como nota final, no curso de Pintura da Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Apesar da nota conseguida, Domínguez Álvarez nunca conseguiu obter em vida o reconhecimento do seu real valor. Nunca foi a Paris, ao contrário de tantos outros artistas, e nem sequer foi a Lisboa, limitando as suas deslocações ao norte de Portugal e de Espanha. Mesmo assim, foi um pintor notável, dos melhores do séc. XX. O que ele teve, foi o azar de viver num tempo em que a ditadura do Estado Novo alimentava uma arte conformista e virada para a glorificação do passado, o que ele não fazia.

Domínguez Álvarez foi um pintor modernista. Em algumas das suas obras, é evidente a assumida influência do pintor maneirista El Greco. Noutras, surgem enigmáticos vultos de chapéu na cabeça, em ambientes inquietantes. Pintou bastantes paisagens, com destaque para a representação de vilas e cidades do norte de Espanha. Como viveu na portuense Rua da Vigorosa, às Antas, também pintou algumas paisagens rurais ali bem perto, em Contumil, uma antiga aldeia administrativamente absorvida pela cidade. No seu tempo, Contumil ainda tinha um caráter rural muito acentuado.

01 janeiro 2025

Ouvir estrelas

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Olavo Bilac (1865–1918), poeta brasileiro