Uma inofensiva batalha musical
— Apresentação dos exércitos;
— Parte central, mais idílica;
— Batalha propriamente dita;
— Toque de vitória e exultação final
Árvore, — amiga constante,
Desde o berço à sepultura!
Bendita a mão que te plante,
Bendita a voz que te cante,
Bendita sejas na altura!
Estende à luz os teus ramos,
Onde a harmonia se gera!
Perfuma o ar que aspiramos…
— Dá-nos flor na primavera!
Cobre de verde folhagem
Teus braços, docel sombrio!
Abranda a calma da aragem…
— Dá-nos a sombra do estio!
Os teus pomos ao Sol cora…
E pensa que ao abandono
Há muita boca que implora:
— Dá-me o teu fruto no Outono!
Em vindo a dura inverneira,
Seja o teu gesto mais terno!
Dá-nos calor na lareira…
— Dá-nos a lenha no inverno!
Bendita seja a constância
Que há na tua proteção!
Árvore, — amor e abundância! —
— Deste-me o berço na Infância!
Dá-me na Morte o caixão!
Esta mágoa em noite de cacimbo
martela lentamente o pensamento
no instante em que ruge o avião
partindo o silêncio com estrondo…
as bombas vomitando o fogo
que a combustão do napalm espalha
nas aldeias de fantasmas famintos
que matam todas as esperanças
da gente pobre e franzinas crianças
que tentam fugir de qualquer jeito
— vergonha da pátria sem o proveito!
Meus olhos brilharam de espanto
ao verem a sanzala em chamas…
ali sufocadas no calor das labaredas
ficaram as crianças de choro abafado,
bombas a rasgar sulcos nas veredas
por onde se arrastavam os corpos
queimados num sofrimento danado.
Quando a consciência salta o orvalho
por um lapso de tempo vi o inferno
com as bombas riscando os céus…
o rebentamento de efeito medonho
rasgou as palhotas com gente dentro
e o aniquilamento daquela sanzala
deixou-me preso à sequência da morte
com a garganta presa e sem fala.
Um cheiro intenso ataca as narinas
perde-se a seiva nas balas de fogo
e dilui-se o medo do alastramento
de tantas queimadas feitas à toa…
o absurdo de quem manda no jogo
está muito longe, talvez em Lisboa!
Enquanto José Régio foi sobretudo um escritor, que por vezes também pintava e desenhava, Júlio Reis Pereira tornou-se sobretudo artista plástico (assinando as suas obras como Júlio), que por vezes também escrevia poesia (com o pseudónimo de Saul Dias). Ambos os irmãos pertenceram a um movimento literário e artístico veiculado pela influente revista Presença, que se publicou em Coimbra entre 1927 e 1940 e na qual tiveram participação ativa.
Júlio licenciou-se em Engenharia Civil pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, ao mesmo tempo que frequentava o Curso Preparatório da Escola Superior de Belas-Artes do Porto, mas não concluiu os seus estudos artísticos. Contudo, foi como artista que Júlio mais se distinguiu, nos domínios da pintura, desenho, etc. Pertenceu à segunda geração modernista portuguesa.
Júlio passou muitos anos da sua vida em Évora, onde foi um entusiástico colecionador e defensor da olaria tradicional do Alentejo, nomeadamente dos barros de Estremoz. Em 1972 voltou para Vila do Conde, onde faleceu em 1983.
Chorosos versos meus desentoados,
Sem arte, sem beleza e sem brandura,
Urdidos pela mão da Desventura,
Pela baça Tristeza envenenados:
Vede a luz, não busqueis, desesperados,
No mudo esquecimento a sepultura;
Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados:
Não vos inspire, ó versos, cobardia
Da sátira mordaz o furor louco,
Da maldizente voz a tirania:
Desculpa tendes, se valeis tão pouco,
Que não pode cantar com melodia
Um peito de gemer cansado e rouco.
Pois nossas madres vam a Sam Simom
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos d'andar
com nossas madres, e elas entom
queimem candeas por nós e por si,
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos todos lá irám
por nos veer e andaremos nós
bailand'ant'eles fremosas em cós;
e nossas madres, pois que alá vam,
queimem candeas por nós e por si,
e nós, meninhas, bailaremos i.
Nossos amigos irám por cousir
como bailamos e podem veer
bailar [i] moças de bom parecer;
e nossas madres, pois lá querem ir,
queimem candeas por nós e por si,
e nós, meninhas, bailaremos i.
candeas - velas
punhemos - pugnemos, decidamos
i - aí
em cós - com vestuário leve
alá - lá
cousir - observar
EXPLICAÇÃO
Segundo esta cantiga de amigo, as moças tencionam ir com as suas mães à romaria de São Simão, em Vale de Prados (Macedo de Cavaleiros?), para dançarem, ligeiras, diante dos rapazes, enquanto as suas mães acendem piedosas velas ao santo.
Josefa de Ayala Figueira, que ficou conhecida como Josefa de Óbidos, nasceu no ano de 1630 em Sevilha, Espanha, fruto do casamento do pintor maneirista português Baltazar Gomes Figueira com a espanhola Catarina de Ayala Camacho Cabrera Romero. Aos 4 anos de idade, Josefa mudou-se para Portugal com os seus progenitores, que acabaram por se fixar em Óbidos, terra natal do seu pai. Em 1644, Josefa foi para Coimbra, a fim de se tornar freira no Convento de Santa Ana, mas este não foi o destino que ela mesma quis seguir. Ao fim de dois anos saiu do convento, conseguiu obter a sua emancipação legal e passou a ter uma vida economicamente independente, graças ao seu enorme talento.
Josefa de Óbidos pintou mais de cem quadros, que são valorizadíssimos e se encontram espalhados por diversas coleções públicas, religiosas e privadas, e faleceu na vila de Óbidos em 1684.
Após uma consulta a um oráculo, que lhe disse que um casamento viria a constituir a sua desgraça, Atalanta decidiu não se casar. No entanto, como era possuidora de grande beleza, ela era cortejada por muitos rapazes que pretendiam desposá-la. Sabendo que ninguém lhe conseguiria vencer numa corrida, Atalanta determinou então que todos os pretendentes teriam de competir com ela, afirmando que só casaria com aquele que a vencesse. Quem não o conseguisse, seria implacavelmente morto. Um após outro, todos os pretendentes foram sendo mortos pela lança de Atalanta, porque não conseguiam correr mais depressa do que ela.
Um dia, apresentou-se um pretendente chamado Hipomenes, que, tal como os outros, aceitou o repto. Sabendo de antemão que não iria conseguir vencer Atalanta, Hipomenes pediu ajuda a Afrodite, a deusa do Amor, que lhe deu três maçãs de ouro. Hipomenes participou na corrida com as três maçãs nas mãos. A meio da corrida, sentindo-se aflito para conseguir acompanhar a passada de Atalanta, Hipomenes largou a primeira maçã de ouro. Atalanta deteve-se para apanhar a maçã do chão, mas logo a seguir acelerou o passo e acabou por conseguir recuperar o seu atraso relativamente a Hipomenes. Este soltou então a segunda maçã, que voltou a provocar mais uma momentânea paragem de Atalanta para apanhá-la, mas a seguir a ninfa voltou a conseguir recuperar o seu atraso. Hipomenes largou finalmente a terceira maçã de ouro, que Atalanta voltou a apanhar, mas, como já estavam muito próximos da meta, foi Hipomenes quem ganhou a corrida, porque Atalanta já não conseguiu alcançá-lo a tempo.
É esta a história que o presente quadro, cheio de movimento, pretende contar.
Era um homem; vivia numa cidade e trazia navegações no mar, e depois foi ele e deu em decadência por se lhe perderem as navegações. Ele teve o seu pesar e não podia viver com aquela decência com que vivia no povoado e tinha umas terrinhas na aldeia e disse-lhes para a mulher e para as filhas: «Não temos remédio senão irmos para as nossas terrinhas; se vivemos com menos decência que até aqui somos pregoados dos nossos inimigos.»A mulher e uma filha aceitaram, mas as outras duas filhas começaram a chorar muito. E depois foram. A que tinha ido de sua vontade era a mais nova e chamava-se Bela‑Menina; cantava muito e era a que cozinhava e ia buscar erva para o gado, de pés descalços; as outras metiam-se no quarto e não faziam senão chorar. Quando o pai ia para alguma parte, as mais velhas sempre lhe pediam que lhes trouxesse alguma cousa e a mais nova não lhe pedia nada. Vai nisto veio-lhe uma carta dum amigo dizendo que as navegações que vinham aí, que tiveram notícia e que fosse vê-las.
O homem caminhou mais um criado saber das tais navegações; quando saiu, disseram as suas filhas mais velhas que se as navegações fossem as dele lhes levasse algumas cousas que lhe declararam. E ele disse à mais nova. «Ora todas me pedem que lhes traga alguma cousa, só tu não me pedes nada?» «Vou pedir-lhe tambem uma cousa; onde o meu pai vir o mais belo jardim, traga me a mais bela flor que lá houver». O pai foi e chegou a uma cidade e reconheceu que as navegações não eram dele e foi‑se embora com a bolsa vazia. Chegou a um monte e anouteceu-lhe; ele viu uma luz e dirigiu-se para ela a ver se encontrava quem o acolhesse. Chegou lá e viu uma casa grande e estropeou à porta; não lhe falaram; tornou a estropear; não lhe falaram. E disse ao moço: «Vai aí por o portal de baixo ver se vês alguém». O moço foi e voltou: «Vejo lá muitas luzes dentro e cavalos a comer e penso para lhe botar; mas não vejo ninguém».
Então o homem mandou meter o cavalo na cavalhariça e entraram para a cozinha. Acharam lá que comer e como a fome não era pequena, foram comendo muito. E nisto aí vem por essa casa adiante uma cousa fazendo um grande arruído, assim como umas cadeias que vinham a rastos pela casa adiante e depois chegou ao pé deles um bicho de rastos e disse-lhes: «Boas noites». E eles puseram-se a pé com medo, e disseram-lhe: «Nós viemos aqui por não acharmos abrigo nem que comer noutra parte; mas não vimos fazer mal a ninguém». «Deixai-vos estar e comei». Demorou-se um pouco o bicho e disse-lhes: «Ora ide-vos deitar que eu tambem cá vou para o meu curral». E começou-se a arrastar pela cozinha e foi. Ao outro dia o homem foi ao jardim que era o mais belo que tinha visto e disse: «Já que não posso levar nada para as minhas filhas mais velhas, quero ao menos levar a flor para a Bela‑Menina…» Estava a cortar a flor e nisto o bicho salta-lhe: «Ah ladrão! Depois de t’eu acolher em minha casa, tu vens-me colher o meu sustento, que eu não me sustento senão em rosas». E ele disse: «Eu fiz mal, fiz; mas eu tenho lá uma filha que me pediu que lhe levasse a mais bela flor que eu visse na viagem, e não podendo levar nada às outras filhas, queria ao menos levar a flor; mas se a quereis ela aí fica». «Não, levai-a e se me trouxerdes cá essa filha, ficais ricos». O homem caminhou e chegou a casa muito apaixonado por não trazer nada às outras filhas e não achar as navegações e pegou na flor e deu-a à Bela‑Menina.
A filha assim que viu a flor disse: «Oh que bela flor! Onde a achou meu pai?» O pai contou-lhe o que vira e a filha disse: «Oh meu pai eu quero ir ver». «Olha que o bicho fala e disse também que te queria ver». «Pois vamos». E foram. A filha assim que viu o tal bicho disse: «Oh pai eu quero cá ficar com este bicho, que ele é muito bonito». O pai teve a sua pena, mas deixou-a. Passado algum tempo, ela disse: «Oh meu bichinho! Tu não me deixas ir ver os meus pais?» E ele disse-lhe: «Não; tu não vais lá por ora; teu pai vem cá». O pai veio e disse ao bicho: «Eu queria levar a rapariga». «Não me leves daqui a rapariga, senão eu morro e tu vai ali àquela porta e abre-a e leva dali a riqueza que tu quiseres e casa as tuas filhas». O homem que mais quis?
Um dia o bicho disse à Bela‑Menina: «A tua irmã mais velha lá vem de se receber; tu queres vê-la?» «Quero». «Vai ali e abre aquela porta». Ela foi e viu vir a irmã com o noivo e os pais. «Agora deixa-me ir ver o meu cunhado». «Eu deixava, deixava; mas tu não tornas». «Torno; dá-me só três dias que eu em dia e meio chego lá e torno cá noutro dia e meio». «Se não vieres nestes três dias, quando voltares achas-me morto». Ela foi; no fim dos três dias ela veio, mas tardou mais um pouquito que os três dias; ela foi ao jardim e viu-o deitado como morto. Chegou ao pé dele: «Ai meu bichinho!» E começou a chorar. Ele caiu e ela disse: «Coitadinho está morto; vou dar-lhe um beijinho.» E deu-lhe um beijo, mas o bicho fez-se num belo rapaz. Era um príncipe encantado que ali estava e que casou com ela.
”
Conto popular recolhido em Ourilhe, Celorico de Basto, por Adolfo Coelho (1847-1919)
José Maria de Sousa Moura Girão nasceu em Lisboa em 1840, fez parte do chamado Grupo do Leão, que Columbano Bordalo Pinheiro retratou num quadro famoso que está no Museu do Chiado, trabalhou durante uma boa parte da sua vida como restaurador no Museu Nacional de Arte Antiga e faleceu, também em Lisboa, em 1916.