16 outubro 2024

Apontamentos sobre redes neuronais


(Desenho de autor desconhecido)

A chamada inteligência artificial (IA), de que tanto se tem falado recentemente, não existe no vácuo nem flutua no ciberespaço ou no que lhe quiserem chamar. Ela existe no nosso mundo, que é real, e por isso funciona em máquinas reais, isto é, em gigantescas redes de computadores especializados, que ocupam edifícios e edifícios inteiros, espalhados pelo mundo e cheios de equipamento até ao telhado, e que consomem imensa energia elétrica, apesar da miniaturização conseguida pela indústria de semicondutores.

A intenção que preside ao desenvolvimento da IA consiste em fazer máquinas que emulem por meios eletrónicos o funcionamento do cérebro humano, e até que o ultrapassem, por exemplo na velocidade de "raciocínio". Isto não se consegue com processadores semelhantes aos que até agora têm estado — e continuarão a estar — no "coração" dos nossos computadores, telemóveis, "smart TV" e outros dispositivos digitais (processadores chamados CPU ou "central processing units"), nem mesmo com processadores gráficos (chamados GPU ou "graphics processing units"), mas sim com recurso a redes neuronais artificiais, criadas especificamente para o efeito. As redes neuronais artificiais (há quem lhes chame neurais) são redes de processadores, batizados de "neurónios", que são bastante simples na sua arquitetura interna, mas que são em grande quantidade, os quais comunicam uns com os outros de maneira a formarem uma densa rede de trocas de informações. O que se pretende, ao construir redes neuronais artificiais, é imitar as redes de neurónios que compõem um sistema nervoso biológico, como o dos seres humanos. Porém, existem muitas diferenças.

Os circuitos biológicos presentes no sistema nervoso dos organismos vivos funcionam por meio de fluxos de iões, que são átomos ou moléculas com carga elétrica positiva ou negativa, por terem eletrões a mais ou a menos. Os iões são movimentados de dentro das células para fora e vice-versa, ou então são retidos nas células ou fora delas para utilização ulterior, quando houver oportunidade para isso.

Por seu lado, e tal como o nome indica, a eletrónica, seja ela digital ou analógica, funciona por meio de fluxos de eletrões, que são partículas subatómicas com carga elétrica negativa, que se fazem movimentar de um lado para o outro sob a forma de correntes elétricas, ou então são armazenadas sob a forma de cargas elétricas para ulterior utilização, em dispositivos chamados condensadores, no Brasil capacitores.

Esta comparação entre circuitos biológicos e circuitos eletrónicos, tal como está descrita, é demasiado simplista, é verdade que sim, mas o que importa sublinhar é o que estes circuitos têm em comum: a utilização de cargas elétricas como veículos de processamento e comunicação, independentemente de estas cargas serem iónicas ou eletrónicas.

Em cima, um desenho esquemático de uma célula nervosa ou neurónio, geralmente constituída por um corpo celular (à esquerda), onde está alojado o núcleo da célula e que tem um conjunto de ramificações, chamadas dendrites, que recebem os sinais elétricos vindos de uma ou mais células vizinhas; o corpo celular prolonga-se por uma fibra chamada axónio (ao meio) que propaga os sinais de um extremo da célula para o outro; na outra extremidade (à direita) o axónio ramifica-se e transmite os sinais recebidos a uma ou mais células a jusante. O contacto entre duas células nervosas distintas é chamado sinapse, que pode ser de dois tipos, sendo o tipo mais comum o que está representado no desenho maior, em baixo. Neste desenho de baixo, vê-se que os iões envolvidos na transmissão dos sinais (neurotransmissores) passam de uma terminação do axónio de uma célula a montante, para uma dendrite da célula a jusante, através de um reduzidíssimo espaço de separação (a fenda sináptica), onde as trocas de iões se efetuam. Os iões envolvidos nesta troca são predominantemente iões de sódio, potássio e cloro, mas também há outros iões envolvidos, com destaque para os iões de cálcio (Desenhos de autor desconhecido)
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A célula de base de um sistema nervoso é chamada neurónio. Um feixe de neurónios é um nervo, enquanto um grande emaranhado de neurónios pode ser um cérebro. Os neurónios comunicam uns com os outros através de terminais chamados sinapses.

Quase todas as células, sejam elas nervosas ou não, estão envolvidas por uma membrana, exceto no caso das amibas, que são seres unicelulares sem membrana. A membrana de uma célula protege-a das agressões exteriores, mas não é totalmente impermeável. Possui pequeníssimos poros, através dos quais a célula efetua trocas de iões com o exterior. No caso dos neurónios, concretamente, estes comunicam através de poros existentes nas suas sinapses com as células suas vizinhas, células vizinhas estas que podem ser outros neurónios, podem ser células musculares (a jusante) ou então células sensoriais, que transformam a luz, o som, o paladar, o olfacto, o tacto, etc. em impulsos elétricos (a montante).

Se aproximarmos um dedo de uma chama, por exemplo, as células receptoras da dor que estão no dedo enviam um sinal de alarme, que o sistema nervoso comunica ao cérebro. Este, ao interpretar o sinal recebido como sendo de dor, envia de volta um sinal às células musculares envolvidas no movimento do braço, para que estas retirem imediatamente o dedo da chama. Entretanto, as células olfativas poderão comunicar ao cérebro a sensação de cheiro a carne assada… Enquanto tudo isto acontece, as células do cérebro associadas à memória registam o incidente como tendo sido desagradável (no mínimo), e o cérebro começa a evitar a proximidade do fogo, porque passa a achar que ele é perigoso. O cérebro aprende mais uma lição.

Como se verifica pelo exemplo dado, o órgão principal de um sistema nervoso biológico é o cérebro, que sente, comanda, memoriza, deduz e decide. O cérebro é um emaranhado extremamente complexo de milhares de milhões de neurónios, cada um dos quais possui milhares de sinapses! Tudo dentro do espaço de um crânio! Como se poderá replicar um órgão tão extraordinário num equivalente artificial? Não pode. Ainda por cima, falta considerar outros aspetos que também envolvem o cérebro e que também fazem parte da inteligência humana: os sentimentos, as emoções, a intuição, a criatividade, os afetos, etc. O que se tem tentado fazer, é procurar replicar, por meios eletrónicos, algumas das características dedutivas e indutivas do raciocínio presente num cérebro biológico.

Um esquema de rede neuronal artificial, em que as camadas de neurónios aparecem representadas na vertical, como é habitual fazer-se. Cada círculo representa um neurónio artificial e cada traço representa uma sinapse artificial. Esta rede neuronal, em particular, tem seis camadas de neurónios, mas poderia ter mais, muitas mais ou até menos: uma camada de entrada (coluna de neurónios à esquerda), quatro camadas escondidas (colunas de neurónios intermédias) e uma camada de saída (coluna de neurónios à direita). (Desenho de autor desconhecido)
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Com vista a emular o funcionamento de um sistema nervoso biológico baseado em processos eletroquímicos, foi inventada a rede neuronal artificial baseada na eletrónica, como já se disse. A principal razão para o uso da eletrónica consiste na extrema miniaturização que a indústria de chips conseguiu atingir, da qual nenhuma outra tecnologia sequer se aproxima. Há outras vantagens para o uso da eletrónica, sendo uma das mais importantes a velocidade de processamento conseguido pelos chips. É incomparavelmente mais rápido processar informação por meios eletrónicos do que por meios iónicos. Por muito poderoso que um sistema nervoso biológico seja — e de facto é — ele é incrivelmente lento no envio e tratamento dos sinais elétricos veiculados por iões. Demoram um tempo considerável as movimentações de iões de dentro para fora duma célula e inversamente, também de um lado de uma sinapse para o outro, e ainda por cima existem fenómenos de despolarização elétrica presentes num tipo de neurónios (chamados "mielínicos") que os inibe de funcionar durante um período de tempo da ordem dos 3 milissegundos após a passagem de um impulso elétrico. Para um sistema eletrónico, 3 milissegundos são uma eternidade.

Os sinais presentes nas células de um sistema nervoso biológico são constituídos por sequências de impulsos elétricos. Todos estes impulsos têm aproximadamente a mesma forma e a mesma amplitude. O interior de um neurónio biológico em repouso encontra-se a uma diferença de potencial, relativamente ao meio envolvente, que é da ordem dos -70 mV (0,07 Volts negativos); diz-se então que a célula está polarizada. Quando passa um impulso pela célula, o interior desta atinge momentaneamente uma diferença de potencial de cerca de +30 mV (0,03 Volts positivos) relativamente ao exterior; então diz-se que a célula ficou despolarizada. Na passagem de -70 mV para +30 mV, a variação total de potencial é da ordem dos 100 mV, que é uma barbaridade, porque a membrana é extremamente fina. De facto, a membrana é sujeita a uma diferença de potencial tão extrema, que esta equivale à aplicação de vários milhares de Volts entre os dois lados de uma folha de papel! Se aplicássemos esta diferença de potencial a uma folha de papel, ela não resistiria, romper-se-ia instantâneamente e o papel acabaria por se desfazer em fumo. Pois uma membrana celular tem características dielétricas (isoladoras) tais, que é capaz de resistir sem se danificar!

A amplitude dos impulsos transmitidos por um neurónio biológico não é importante para a informação por eles veiculada. O que é importante é a frequência dos impulsos, isto é, a quantidade de impulsos que passam pelo neurónio num determinado período de tempo. Forneçamos um exemplo do que acontece: se quisermos agarrar um objeto com força, o nosso cérebro irá emitir uma sequência de impulsos dirigida aos músculos da nossa mão, para que estes fiquem contraídos e mantenham o objeto agarrado; a partir do momento em que o cérebro deixar de emitir impulsos aos músculos, estes ficam relaxados e o objeto cai ao chão. Outro exemplo: um clarão luminoso irá levar o nervo ótico a enviar para o cérebro uma sequência de impulsos; o cérebro entenderá então que está a ver um clarão; assim que o nervo ótico deixar de enviar impulsos, o cérebro perceberá que se restabeleceu a escuridão.

Para os sinais usados nas redes neuronais artificiais, por outro lado, é a amplitude dos sinais que é importante e não a sua frequência. Na generalidade dos sistemas eletrónicos digitais, a amplitude dos sinais só pode tomar o valor 0 (habitualmente correspondente a 0 Volts) e o valor 1 (habitualmente correspondente à tensão com que o circuito é alimentado, que pode ser de 3V, 2V, 5V ou outro valor). Nas redes neuronais artificiais, porém, os sinais veiculados através das sinapses (que ligam dois neurónios de diferentes camadas) não só podem tomar os valores 0 e 1, como podem tomar qualquer valor intermédio, por exemplo 0,7. Este valor, a que se convencionou chamar "peso", é um valor atribuído pelo próprio neurónio a cada um dos sinais que receber. Quanto maior for o peso, maior será a importância do sinal. Se o peso atribuído for bastante pequeno, isso quererá dizer que o sinal terá uma influência desprezível sobre o resultado e por isso poderá ser descartado. Um sinal que estiver abaixo de um dado limiar, portanto, passa automaticamente a zero e não conta para nada.

De um modo geral e como ponto de partida, os neurónios da camada de entrada só poderão tomar os valores 0 ou 1 (que podem ser arbitrários ou não), os quais virão a ser modificados a jusante para valores intermédios com a atribuição de pesos. Os sinais presentes nos neurónios da camada de saída também são arredondados para 0 ou 1, conforme estiverem abaixo ou acima de um dado limiar, quanto mais não seja porque a rede neuronal está inserida num sistema digital.

Uma rede neuronal extremamente simples, com uma camada de entrada contendo três neurónios, uma camada escondida também com três neurónios e uma camada de saída só com um neurónio. Às sinapses, que estão representadas por setas, são atribuidos os respetivos pesos, de w1 a w9 (Desenho de autor desconhecido)
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Antes de poderem desempenhar uma função útil, as redes neuronais artificiais passam por uma série de sessões de treinos, até que os seus resultados correspondam ao que se pretende delas, como o reconhecimento de padrões, por exemplo. No fim dos treinos, os neurónios memorizam os valores dos pesos que passarão a atribuir a cada sinapse. Não vamos entrar em pormenores sobre o modo como a rede chegou a estes resultados (em rigor, ninguém consegue saber o que realmente se passa nas camadas escondidas), nem sobre os tipos de arquitetura que uma rede pode tomar, pois tudo depende da utilização que se quiser fazer da rede. Dizemos apenas que, após as sessões de treinos, a rede passou a "saber" como deverá processar a informação nova que a partir daí lhe for apresentada.

Nós vivemos na era da informação. Os sistemas de inteligência artificial que atualmente existem são mastodônticas redes neuronais. Além disso, memorizam uma aterradora quantidade de dados, que são imagens (fixas e em movimento), textos, sons e tudo o mais que for considerado potencialmente útil ou vantajoso do ponto de vista económico. Tudo isto é reunido e memorizado em data centres, com vista a ser trabalhado pela IA, com resultados que são tão surpreendentes que até parecem milagre. É o que fazem o popular ChatGPT e os sistemas de IA da Google, da Microsoft, da Apple, da Meta, etc. Estamos a falar de sistemas que enchem edifícios e edifícios inteiros de equipamento e que consomem uma quantidade astronómica de energia. Só para dar uma ideia do gigantismo que a IA já atingiu, lembremos que a Google pretende construir pequenas centrais nucleares, só para alimentar a sua insaciável IA! Este crescimento não pode continuar indefinidamente. Um limite terá que aparecer mais tarde ou mais cedo, dê lá por onde der.

A inteligência artificial está na moda, sem dúvida. As pessoas recorrem a ela para os mais diversos fins e sentem-se satisfeitíssimas com os resultado obtidos. A presente euforia em relação à IA leva-as a julgar que estão na presença de uma forma de inteligência infalível e que tem respostas para tudo, porque acham que os computadores não erram. Puro engano. A IA é, pelo menos, tão falível como os seres humanos que a criaram. Ela até sofre, por vezes, de "alucinações" e debita respostas disparatadas, sem pés nem cabeça. Não se pode confiar cegamente na inteligência artificial. É preciso manter um espírito crítico, sempre e em todas as circunstâncias. No dia em que a humanidade deixar de pensar, porque julga que as máquinas pensam melhor do que ela, transformar-se-á numa imensa multidão de seres estúpidos, sem moral, sem honra e sem dignidade. Eu sei que isso não vai acontecer, mas... mais vale prevenir do que remediar.

09 outubro 2024

Concerto para Violino n.º 1 de Max Bruch


Concerto para Violino e Orquestra N.º 1 em Sol Menor, op. 26, do compositor alemão Max Bruch (1838–1920), pelo violinista Yehudi Menuhin (1916–1999) e a Orquestra Sinfónica da Rádio de Berlim dirigida pelo maestro Ferenc Fricsay (1914–1963)

07 outubro 2024

Kalinka


Kalinka, canção russa da autoria de Ivan Larionov, pelo tenor Yevgeny Belyaev e o Coro Alexandrov do Exército Vermelho, da União Soviética

Tal como não era legítimo identificar o povo português com o regime do ditador Salazar, também não é legítimo identificar o povo russo com o regime do ditador Putin. Os tiranos passam e os povos ficam.

Kalinka é o nome em russo de um arbusto ornamental, que em português se chama folhado ou viburno.


Kalinka e Raz Kalinka, duas danças russas pelo Grupo Infantil de Dança Folclórica Kalinka, de Moscovo

05 outubro 2024

A Cruz de Portugal


Num dos seus lados, a Cruz de Portugal mostra Cristo crucificado

Cruz de Portugal é o nome de um cruzeiro existente em Silves, junto da saída da cidade no sentido de São Bartolomeu de Messines. Está classificado como monumento nacional e é um cruzeiro cheio de mistérios.

Praticamente nada se sabe a respeito da Cruz de Portugal que, a avaliar pelo seu estilo gótico flamejante, deve datar do séc. XV. Este cruzeiro é feito de calcário branco, que é uma rocha que não existe em todo o Algarve e muito menos em Silves, onde a pedra é vermelha, como se pode claramente ver no castelo ou na Sé da cidade. Então, das duas uma: ou a Cruz de Portugal foi levada já feita para Silves, ou foi levada para Silves a pedra em bruto, a fim de ser trabalhada no local. De qualquer modo, não se sabe de onde é que foi levada a pedra ou a cruz já feita, não se sabe quem foi que a transportou para Silves, não se sabe quem foi que a esculpiu, não se sabe quem foi que a encomendou nem para quê, não se sabe, sequer, por que razão lhe puseram o nome de Cruz de Portugal. Podiam chamar-lhe Cruz do Algarve, por exemplo, mas não, chamam-lhe Cruz de Portugal. Uma cruz cheia de mistérios.

O estado em que se encontra a Cruz de Portugal é lastimável. A passagem dos séculos deixaram-lhe marcas profundas, que nunca mais vão poder ser apagadas. Mesmo assim, ela ali está em Silves, ao ar livre, protegida por um simples telheiro e um simples gradeamento, que afinal nada protegem. Até admira que a cruz ainda não tenha sido alvo de algum ato de vandalismo. Se um dia tal acontecer, então já será tarde demais.


A Cruz de Portugal vista do lado contrário ao de Cristo crucificado, representando Nossa Senhora com Jesus ao morto ao colo, uma Pietà (Foto de autor desconhecido)

03 outubro 2024

Uma sonatina de Luís Costa


Sonatina para Flauta e Piano, op. 23, do compositor português Luís Costa (1874–1960), pelo flautista Luís Meireles e o pianista Eduardo Resende, também portugueses

30 setembro 2024

O Jovem Vitorioso


O Jovem Vitorioso, estátua grega de bronze com cobre embutido, datada de 300 a 100 A.C., de autor desconhecido. Esta estátua representa provavelmente um jovem atleta acabado de ser coroado como vencedor duma prova nos Jogos Olímpicos da Antiguidade. J. Paul Getty Museum, Villa Collection, Malibu, Califórnia, Estados Unidos da América
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28 setembro 2024

Guerra

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.

Grandes barcos os levam, lentamente…

Natércia Freire (1919–2004)


Transporte por barco de militares portugueses para a Guerra Colonial (Foto de autor desconhecido)

25 setembro 2024

O índio — ontem, hoje e amanhã


Trecho de um filme realizado em 1953 por Jorge Ferreira, sobre os primeiros contactos, estabelecidos pelos irmãos indigenistas brasileiros Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas, com o povo Txucarramãe, que é um dos povos que fazem parte do grupo étnico Kayapó e que vive no sul do estado do Pará, Brasil

23 setembro 2024

Naturalidade

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável… Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli (1932–1997), poeta moçambicano branco


Veleiro tradicional. Inhambane, Moçambique (Foto: Karina Weijers)

21 setembro 2024

Paul Gonsalves, uma lenda do jazz


Paul Gonsalves (1920–1974), saxofonista norte-americano de ascendência cabo-verdiana (Foto de autor desconhecido)

Paul Gonsalves (escrito com S e não com Ç, porque o Ç não existe na língua inglesa) foi um saxofonista norte-americano, filho de um casal de imigrantes de Cabo Verde. Nasceu em Brockton, Massachussets, no ano de 1920, e faleceu em Londres, Inglaterra, em 1974.

Paul Gonsalves tocava na orquestra de jazz de Duke Ellington, quando protagonizou um dos mais galvanizadores solos de saxofone de toda a história do jazz. Aconteceu no Festival de Jazz de Newport, em Rhode Island, no ano de 1956, num tempo em que as grandes orquestras de jazz (as chamadas big bands) iam desaparecendo umas atrás das outras, porque os gostos do público tinham mudado e a manutenção de orquestras com muitos músicos se tornou economicamente insustentável. Perante estas condições, a grande orquestra de Duke Ellington também estava condenada a desaparecer a curto prazo. Foi então que Paul Gonsalves protagonizou em Newport um extraordinário solo de saxofone tenor, que empolgou o público até ao delírio e salvou a orquestra e a própria carreira de Duke Ellington, que afirmou: «Nasci em 1956, no Festival de Newport».

No vídeo que se segue, o solo de Paul Gonsalves começa aos 4 minutos e 5 segundos e termina aos 10 minutos e 25 segundos. Salvo algumas imagens estáticas, que correspondem a fotografias feitas na ocasião, as imagens do vídeo não se referem à atuação da orquestra no Festival de Newport de 1956, porque esta atuação não foi filmada. Só existem gravações sonoras e fotografias.


Diminuendo and Crescendo in Blue, de Duke Ellington, pelo saxofonista Paul Gonsalves e a Orquestra de Duke Ellington, ao vivo no Festival de Jazz de Newport em 1956

19 setembro 2024

A Praia


A Praia, óleo sobre tela de João Vaz (1859–1931). Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa
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João Vaz foi um destacado pintor do Naturalismo português, aluno de Tomás da Anunciação e de Silva Porto. Certamente que o facto de ter nascido em Setúbal (cidade que tem diante de si um vasto espelho de água, que é o estuário do Rio Sado), levou João Vaz a dar uma grande importância à presença da água em muitas das suas pinturas. Mesmo quando a água não é o motivo principal de um quadro seu, este não teria sequer razão de ser, se a água não estivesse presente nele. Exemplo eloquente deste facto é a sua obra "A Praia", onde a presença do mar é determinante para a atmosfera lavada e mesmo quase líquida, que inunda o quadro e nos conduz o olhar paras as três figuras contrastantes, a negro, que penosamente carregam sargaço ao longo de um areal que parece não ter fim. Quem pintou um quadro assim só podia ser um grande artista.

17 setembro 2024

A Furna de Frei Matias


Entrada da Furna de Frei Matias, na encosta da montanha do Pico que está voltada para a ilha do Faial, no concelho da Madalena, ilha do Pico, Açores (Foto: Anna e Tobi)

Nos finais do século quinze, quando a ilha do Pico era ainda desconhecida dos povoadores das outras ilhas, veio do reino um ermitão que, para fazer vida santa, escolheu viver na despovoada ilha do Faial.

Estava ali sozinho todo o Inverno e, só no Verão, quando pessoas da Terceira vinham ao Faial visitar as suas terras e gados, o ermitão via outros seres humanos.

Um dia de Inverno, ao pôr-do-sol, estando o bom homem em oração, reparou que sobre o mar, onde antes só havia um denso nevoeiro, aparecia uma ponte luminosa. Vagarosamente, sobre ela vinha a Virgem Maria, vestida de longas roupas, alvas como a neve, e fazia-lhe gestos de chamamento.

Naquela noite o ermitão esteve sobressaltado e, no dia seguinte, dirigiu toda a sua atenção para o lugar onde na tarde anterior tivera tão suave, mas estranha visão. Sobre o espelho azul prateado do mar nada viu, durante o dia inteiro. Porém, ao entardecer, quando se dirigia para a cabana, que lhe servia de abrigo da chuva e do frio da noite, viu desabrochar do denso nevoeiro a mesma visão. Pediu a Deus que lhe explicasse aquele mistério e, durante a noite, ouviu uma voz que lhe dizia:

— Meu filho, aquela donzela que além vês é Nossa Senhora. Chama-te para que entres com Ela no Reino dos Céus. Mostra a tua confiança em Deus, constrói um barco e parte ao encontro da Mãe do Senhor.

Com grande entusiasmo, na manhã seguinte, Frei Matias foi para a praia e começou a fazer uma barca que forrou de pele de porco. Trabalhou muito durante meses, forrou-a de couro e não quis ajuda dos que entretanto tinham vindo da Terceira ver as suas fazendas.

Uma manhã, depois de ajoelhar na praia e rezar, fez-se ao mar, perseguindo a maravilhosa visão. A meio do canal, levantou-se uma tempestade. O barquinho oscilava e rangia, mas o fradinho continuava sorridente.

Uma vez, em que um raio caiu perto, o ermitão desesperou e clamou por Deus. Então a ponte luminosa e a Virgem desapareceram e o barco foi atirado contra a costa de uma ilha que o frade nunca tinha visto, porque estava envolta em nuvens densas. Era a ilha do Pico.

Ao chegar ao Pico, Frei Matias não pôde voltar para trás porque o seu barco de pele de porco tinha ficado desfeito.

Andou algum tempo para o interior da ilha até que encontrou uma furna coberta de lindas estalactites e foi aí que se abrigou do frio da noite e das tempestades que assolavam a ilha e aí viveu o resto dos seus dias.

Mais tarde esta parte da ilha do Pico foi povoada e, durante muitos anos, os pastores afirmavam que, à noite, depois de recolherem os seus gados, viam, lá longe, o bom fradinho com um facho na mão à procura de Nossa Senhora para o conduzir ao Céu.

Assim o primeiro descobridor da ilha do Pico foi a Virgem Santa e o segundo, aquele santo ermitão que deu o nome à furna que lhe serviu de abrigo — a Furna de Frei Matias.



Lenda recolhida por Ângela Furtado-Brum nas Lajes do Pico, Açores


A entrada da Furna de Frei Matias vista de dentro para fora, no concelho da Madalena, ilha do Pico, Açores (Foto: Anna e Tobi)

13 setembro 2024

Namoro


Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas
Sua pele macia — era sumaúma…
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce — como o maboque…
Seus seios, laranjas — laranjas do Loge
seus dentes… — marfim…
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
«Por ti sofre o meu coração»
Num canto — SIM, noutro canto — NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou

Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro…
E ela disse que não.

Levei à avó Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu…
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fábrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficámos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos…
falei-lhe de amor… e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,
como um mona-ngamba.
Procuraram por mim
«— Não viu… (ai, não viu…?) não viu Benjamim?»
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso às moças mais lindas do Bairro Operário

Tocaram uma rumba — dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: «Aí, Benjamim!»
Olhei-a nos olhos — sorriu para mim
pedi-lhe um beijo — e ela disse que sim.


Viriato da Cruz (1928–1973), poeta angolano


GLOSSÁRIO

jambo — nome de frutos comestíveis de diversas espécies; neste caso, certamente Viriato da Cruz se referia a um fruto de origem hindustânica, também chamado jamelão, que adquire uma cor negra quando maduro

maboque — fruto comestível e sumarento, do tamanho e cor de uma laranja, casca dura e polpa agridoce

Loge — o mesmo que Vale do Loge, região produtora de laranjas muito doces e sumarentas, na província do Uíge

quimbanda — curandeiro, adivinho, praticante de magia branca

mona-ngamba — trabalhador forçado



Namoro, poema de Viriato da Cruz e música de Fausto Bordalo Dias, numa interpretação de Fausto

11 setembro 2024

Elmar Oliveira, um violinista luso‑americano


Mazurka N.º 2, do compositor polaco Henryk Wieniawski (1835–1880), pelo violinista norte-americano Elmar Oliveira e o pianista chinês Tao Lin

09 setembro 2024

O Moscóforo


O Moscóforo (portador de bezerro), 570–550 A.C., escultura de mármore de autor desconhecido. Museu da Acrópole, Atenas, Grécia
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O Moscóforo é uma escultura grega arcaica do tipo kouros, que representa um homem com um bezerro às costas, provavelmente para ser sacrificado aos deuses. Esta estátua está muito danificada e foi encontrada na Acrópole no meio de uma pilha de destroços, resultantes das destruições provocadas pelos persas em 480 A.C. Também faltam os olhos, que consistiriam em pequenas pedras de cor.

05 setembro 2024

Manhã de setembro


Matinée de septembre, 1912, óleo sobre tela do pintor francês Paul Chabas (1869–1937). Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Estados Unidos da América
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Apesar de o nome deste quadro se referir a uma manhã de setembro, ele não foi pintado em setembro, mas sim em três verões sucessivos. O cenário representado é o do Lago de Annecy, Haute-Savoie, França. A pose encolhida da modelo, assim como o ambiente brumoso que o artista criou a envolvê-la, transmitem-nos uma sensação de manhã fria de setembro. Quase sentimos um arrepio ao ver esta jovem com os pés metidos na água, que adivinhamos gelada.

Este quadro esteve exposto em Paris sem qualquer controvérsia e até foi premiado. A seguir, foi levado para os Estados Unidos, onde foi considerado indecente, por mostrar uma mulher nua. O escândalo que o quadro provocou na conservadora América acabou por se revelar uma excelente promoção e o quadro ficou famoso. Fizeram-se várias edições de reproduções impressas dele, que se venderam muito bem.

03 setembro 2024

Marques de Oliveira


Retrato de Manuel Teixeira Gomes, 1881, óleo sobre tela de João Marques de Oliveira (1853–1927). Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto
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Praia de Banhos, Póvoa de Varzim, 1884, óleo sobre tela de João Marques de Oliveira (1853–1927). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Autorretrato, c. 1915–1920, óleo sobre madeira de João Marques de Oliveira (1853–1927). Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto
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João Marques de Oliveira foi um destacado pintor realista português, nascido no Porto em 1853 e falecido na mesma cidade em 1927. Foi introdutor do Naturalismo em Portugal juntamente com o pintor António Carvalho da Silva, que adotou o nome de Silva Porto, por ser também natural do Porto.

Marques de Oliveira começou por estudar na Academia Portuense de Belas Artes, onde frequentou as disciplinas de Desenho Histórico, Arquitetura Civil e Perspetiva, primeiro, e fez o curso completo de Pintura Histórica, depois. Foi com uma pensão do Estado para Paris, juntamente com o seu colega Silva Porto, a fim de estudar na Escola Nacional de Belas Artes francesa, onde travou conhecimento com os movimentos naturalista e impressionista. Aproveitou a oportunidade para viajar também pelos Países Baixos, Bélgica e Itália.

Depois de concluir os seus estudos no estrangeiro, Marques de Oliveira regressou a Portugal, onde continuou a dedicar-se à pintura e participou ativamente na realização de diversas iniciativas que visavam o progresso das Artes no nosso país.

Em 1881, aconteceu uma reforma das Academias de Belas Artes do Porto e de Lisboa, do que resultou a criação de duas Escolas de Belas Artes, uma em cada cidade, com vocação para o ensino superior artístico. Marques de Oliveira, que era docente da Academia Portuense de Belas Artes, tornou-se então professor da Escola de Belas Artes do Porto, da qual chegou a ser diretor. Abandonou a sua longa carreira de 45 anos ao serviço do ensino artístico em 1926 e um ano depois faleceu, com 74 anos de idade.

Paralelamente à sua atividade docente, durante a qual empreendeu várias reformas do ensino na sua escola, Marques de Oliveira produziu numerosas obras pictóricas de grande qualidade artística, com particular destaque para a pintura ao ar livre, as quais se encontram disseminadas por muitas coleções públicas e privadas.

31 agosto 2024

A Cova do Gigante


Em primeiro plano, vê-se a elevação alongada chamada Cova do Gigante, que faz lembrar a sepultura de um gigante. Pelo vale que se vê em segundo plano, estende-se a vila de Arruda dos Vinhos, que conserva um caráter rural bastante vincado, apesar de ficar quase às portas de Lisboa (Foto de autor desconhecido)

Canta o povo que há muito, muito tempo, deambulava pelos matagais e serras de Arruda dos Vinhos um severo gigante. Era tão grande como perverso e aterrorizava todas as povoações da região.

Como esta terra sempre foi de bom pão e bom vinho, os agricultores tinham de andar, de sol a sol, na lida da terra, ora com a enxada, ora com os bois. Mas ai de algum se era descoberto pelo gigante... Num repente saltava-lhe em cima e... lavrador e bois eram devorados, sem piedade nem dá. E depois, com ar de gozo, apanhava o arado e palitava com ele os dentes. Era um horror! O que acontecia nesta região naquela altura fazia com que a população nunca andasse descansada. Quando alguém saía à rua, o medo quase o fazia desfalecer, principalmente àqueles cujas famílias já haviam sofrido com os ataques do gigante.

Mas, certo dia, no fim de uma tarde de chuva e trovoada, quando o fogo dos relâmpagos iluminava os céus, mesmo no momento em que o gigante se preparava para deitar as garras a uma pobre velhinha que de joelhos já rezava pela sua alma, caiu um raio do céu e fulminou a terrível fera.

A população festejou de alegria, mas um problema surgiu: como remover aquele avantajado corpanzil?

Então o povo, radiante, resolveu que cada um que tivesse na família uma vítima da fera maldita deitava um cesto de terra sobre o seu corpo pestilento.

E tão numerosas tinham sido as vítimas, e tantos foram os cestos acartados e despejados sobre o moribundo gigante, que o outeiro foi crescendo, crescendo e para sempre ali ficou com a forma de uma campa que cobre um corpo acabado de sepultar.



Lenda recolhida em Arruda dos Vinhos por Jorge da Cunha


A elevação chamada Cova do Gigante, em Arruda dos Vinhos, vista segundo uma outra perspetiva (Foto: Ricardo Braz Frade)

28 agosto 2024

Mia irmana fremosa

Mia irmana fremosa, treides comigo
a la igreja de Vigo u é o mar salido
e miraremos las ondas.

Mia irmana fremosa, treides de grado
a la igreja de Vigo u é o mar levado
e miraremos las ondas.

A la igreja de Vigo u é o mar levado
e verrá i, mia madre, o meu amado
e miraremos las ondas.

A la igreja de Vigo u é o mar salido
e verrá i, mia madre, o meu amigo
e miraremos las ondas.

Martim Codax (séc. XIII), jogral galego


GLOSSÁRIO
treides - vinde
u - onde
salido - saído, agitado
levado - levantado
verrá - virá
i - aí



Cantiga de amigo Mia irmana fremosa, poema e música de Martim Codax (séc. XIII), pela soprano alemã Regina Kabis e o Ensemble A Chantar

25 agosto 2024

Sigamos, pois, com confiança


Adeamus ergo cum fiducia, Lição 8ª das Matinas de Sexta-Feira Santa, do compositor português Luciano Xavier dos Santos (1734–1808), pela soprano Mariana Castello-Branco e o organista Nuno Oliveira