24 junho 2025

Moura Girão


A Galinha e os Pintos ou Uma Família, 1884, óleo sobre tela de Moura Girão (1840–1916). Sociedade Nacional de Belas-Artes, Lisboa
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Um Galo, 1885, óleo sobre madeira de Moura Girão (1840–1916). Museu de José Malhoa, Caldas da Rainha
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Paisagem Campestre, 1897, aguarela sobre papel de Moura Girão (1840–1916). Coleção particular
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O pintor naturalista português Moura Girão confessou um dia que gostava tanto de animais, que se sentia incapaz de comer uma asa de frango ou arroz de cabidela. Não duvidaremos desta afirmação nem por um momento, se virmos a quantidade de obras suas que representam, sobretudo, galos, galinhas e pintainhos. Moura Girão também pintou outros animais e outros temas, mas os galos e outros galináceos avultam na sua obra de forma claramente destacada.

José Maria de Sousa Moura Girão nasceu em Lisboa em 1840, fez parte do chamado Grupo do Leão, que Columbano Bordalo Pinheiro retratou num quadro famoso que está no Museu do Chiado, trabalhou durante uma boa parte da sua vida como restaurador no Museu Nacional de Arte Antiga e faleceu, também em Lisboa, em 1916.

19 junho 2025

Rapsódia Sueca N.º 1 de Alfvén


Rapsódia Sueca N.º 1, op. 19, do compositor sueco Hugo Alfvén (1872–1960), pela Orquestra Sinfónica Islandesa dirigida pelo maestro finlandês Petri Sakari

A Rapsódia Sueca N.º 1, de Hugo Alfvén, foi por este compositor chamada Midsommarvaka, palavra composta por Midsommar (="meio do verão") e vaka (="vigília"). Em português, esta palavra poderá ser traduzida de uma forma muito livre por "Noite de São João", pois ela se refere às festas do solstício de verão, que são de origem pagã e têm lugar um pouco por toda a Europa por alturas do dia de São João.

Várias considerações se poderiam fazer a propósito destas festas, assim na Suécia como em Portugal e na Europa em geral, a começar pela sua designação. A palavra sueca para o solstício de verão, que ocorre em 21 ou 22 de junho, é midsommar (em inglês midsummer), que quer dizer "meio do verão", mas o calendário diz-nos que no hemisfério norte o solstício de junho corresponde ao início do verão e não ao seu meio.

No norte da Europa há uma enorme diferença entre o verão e o inverno em termos de duração dos dias e das noites: enquanto no solstício de inverno a noite é longuíssima e o dia curtíssimo, no de verão sucede o contrário. Nas regiões situadas a norte do Círculo Polar Ártico, então, brilha o sol à meia-noite no solstício de verão, enquanto no de inverno o sol nem chega a nascer. Em resultado desta enorme variação na duração dos dias e das noites, considerava-se que o verão era a estação do ano que tinha as noites mais curtas e os dias mais compridos: começava em 1 de maio, atingia o seu apogeu no solstício e acabava no fim de julho.

Quando a vida dos povos europeus estava estreitamente ligada à Natureza, a sucessão das estações do ano e a sua influência na vida das pessoas tinham uma importância transcendente. Como eram pagãs, as pessoas acreditavam que era dos bons ou dos maus humores dos deuses e dos espíritos que dependiam as boas ou as más colheitas, a multiplicação ou não das cabeças de gado, as fúrias ou as calmarias dos mares que lhes davam o peixe, a saúde ou as doenças dos filhos que geravam, etc. Por isso, as pessoas procuravam afastar os espíritos maléficos e cair nas boas graças das divindades benéficas, recorrendo à magia, à superstição, às rezas, às oferendas, aos sacrifícios, à feitiçaria, etc. Os momentos mais propícios a tais práticas eram, sobretudo, os solstícios, tanto o do inverno, que acontece em dezembro, como o do verão, que ocorre em junho, porque são marcas reconhecíveis de uma viragem na sucessão das estações do ano e portanto na evolução da própria vida.

Reconhecendo a importância que tais crenças e tais práticas representavam para os povos, a Igreja procurou incorporá-las na sua própria liturgia. Em vez de as combater, a Igreja cristianizou as festividade pagãs dos solstícios, associando o solstício de inverno ao nascimento de Cristo, o Salvador, que é celebrado em 25 de dezembro, e o solstício de verão a São João Batista, o santo que anunciou a vinda próxima de Cristo e que é evocado no dia 24 de junho.

Enquanto a cristianização do solstício de inverno foi quase total, através das festividades tradicionais do Natal, na cristianização do solstício de verão muitas das antigas práticas e tradições pagãs resistiram até aos nossos dias, talvez porque a Igreja as tenha associado ao santo errado. São João Batista foi um santo austero, que vivia no deserto, se vestia de peles de animais, fazia jejuns e se alimentava de gafanhotos. Um santo assim dificilmente poderia ser associado a um tempo de sol, de calor e de esperança em colheitas abundantes. São João Batista foi tudo menos um santo alegre, rapioqueiro e até um pouco maroto, que é como a tradição o representa nas festividades do solstício de verão.

São João p’ra ver as moças
Fez uma fonte de prata;
As moças não vão a ela,
São João todo se mata.
(Quadra popular portuguesa)

A importância do solstício do verão é tão grande para os povos europeus, que quase todos eles o celebram. Ainda por cima, existem claras afinidades nas celebrações dos diversos povos do continente, que foram certamente fruto das muitas invasões e conquistas que a Europa sofreu ao longo dos séculos e dos milénios. Uma das afinidades mais evidentes na celebração do solstício de verão é a do uso do fogo. Aqui no Porto, por exemplo, é verdade que já ninguém salta a fogueira na noite de São João, como sucedia no passado, mas são lançados para o ar milhares de balões coloridos, impulsionados por uma mecha a arder. Paralelamente, na Finlândia, que fica no extremo oposto da Europa, acendem-se grandes fogueiras nas margens dos incontáveis lagos que existem no país. Isto anda tudo ligado, como se vê. Todos são europeus.

Na Suécia, as festividades do solstício de verão também tinham lugar na noite que antecede o dia de São João, tal como sucede em Portugal. Na década de 50 do século passado, porém, resolveram eliminar o feriado, passando as festividades para a noite de sexta-feira para sábado que estiver mais próxima do São João. Por isso, este ano, na Suécia, o Midsommarvaka calha na noite do dia 20 para 21 de junho.

15 junho 2025

Virgem com o Menino


Virgem com o Menino, imagem de marfim de finais do séc. XIII, de autor anónimo, esculpida num dente de elefante. Museu do Louvre, Paris, França
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13 junho 2025

Vila Flor


A Igreja Matriz de Vila Flor (Foto: Pedro Domingues)
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Vila Flor, apesar de ser sede de concelho, é uma vila pequena, onde quase tudo está praticamente ao alcance da mão. Estendemos um braço e tocamos na chamada "Fonte Romana", que de facto não é romana, porque no tempo dos romanos Vila Flor nem sequer existia. Voltamos a estender um braço e tocamos no Arco de D. Dinis, que é um arco ogival de pedra, erguido no ar quase sem sustentação e é o que resta da antiga muralha da vila, mandada construir pelo Rei-Lavrador. Estendemos outra vez um braço e tocamos no Museu Berta Cabral, que nunca cheguei a visitar e sobre o qual, por isso, não estou em condições de opinar. De novo estendemos um braço e tocamos na Igreja Matriz, que só por si justifica plenamente uma deslocação até Vila Flor.


Pormenor da fachada principal da Igreja Matriz de Vila Flor (Foto de autor desconhecido)
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A Igreja Matriz de Vila Flor é dedicada a São Bartolomeu e foi construída no séc. XVIII, em substituição de uma outra que anteriormente teria existido no mesmo local e que se teria desfeito em ruínas. O melhor que a igreja atual tem para mostrar não está no seu interior, mas sim cá fora, à vista de toda a gente. É verdade que lá dentro há altares com talha dourada barroca de excelente qualidade artística. Porém, o que realmente me enche a alma na Igreja Matriz de Vila Flor é o seu exterior, com particular destaque para a fachada principal. Dizem os entendidos que a igreja é barroca e a sua fachada tem elementos maneiristas. Até poderia ser ao contrário ou não ser nada disto, porque o estilo é o que menos importa. O que importa é a grande e original beleza que esta fachada tem. Aposto que em nenhuma outra parte do mundo encontramos uma fachada assim. Uma vez vista, nunca mais se esquece.


Portal lateral da Igreja Matriz de Vila Flor (Foto: Paula Noé)
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A chamada "Fonte Romana" de Vila Flor seria uma fonte banal se não lhe estivesse associado um mirante do séc. XVI, com uma abóbada de tijolo assente em colunelos de pedra. Com que finalidade terão feito este mirante, se a vista que se tem dele não é ampla? A mim, parece-me que este mirante foi feito para que as pessoas tivessem uma sombra que as abrigasse da torreira do sol, quando levavam o seu gado à fonte e aguardavam que ele matasse a sede. Vila Flor fica no coração da Terra Quente transmontana e os seus verões são verdadeiramente sufocantes. Qualquer sombra, por mais pequena que seja, é sempre bem-vinda em Vila Flor.


A "Fonte Romana" de Vila Flor (Foto: Pedro Domingues)
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Como Vila Flor fica na Terra Quente, a agricultura que à sua volta se pratica é do tipo mediterrânico, com amendoais, olivais, vinhedos, pomares, etc. Basta subir ao santuário de Nossa Senhora da Assunção, junto a Vilas Boas, ou descer ao fertilíssimo Vale da Vilariça, para nos encontrarmos rodeados por uma paisagem que é completamente diferente da da vizinha Terra Fria, caracterizada por castanheiros e campos de centeio. Em Vila Flor, quase poderíamos dizer que nos encontramos em pleno Algarve, em vez de Trás-os-Montes.


O Arco de D. Dinis, em Vila Flor (Foto: Aníbal Gonçalves)
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09 junho 2025

Alimento il mio proprio tormento


Alimento il mio proprio tormento, da oratória La Morte d'Abel, do compositor português (de ascendência italiana por parte do pai) Pedro António Avondano (1714–1782), baseada num libreto do italiano Pietro Metastasio (1698–1782). Interpretação da soprano portuguesa Sandra Medeiros e da orquestra barroca Divino Sospiro, de Lisboa, sob a direção do maestro italiano Massimo Mazzeo

05 junho 2025

Acabamos sempre por esquecer tudo


Acabamos sempre por esquecer tudo.

O tempo gera a traição do abandono
e a memória não passa de disfarce.

O que fomos
o que vimos
o que fizemos
o que nos fizeram,
esquecemos tudo.

Acabamos sempre por esquecer tudo.

Esvaem-se os anos e os corpos
na escuridão que nos persegue.
Mantemos os olhos maquinalmente abertos
mas já nada vemos
do que passou
do que foi.
Já nada persiste.

Restam, talvez, algumas sombras disformes
um ou outro eco mecânico
palavras despidas
o sonho
o pesadelo
um nevoeiro acre e sem fundo…

Esquecemos tudo
nas oportunistas mãos do vácuo,
irmão incestuoso da morte.

Como foi possível esquecer-te, João Cabral?
E tu, Miguel,
e tu, Lourenço,
e tu, povo angolano,
e tu, soldado da minha guerra?!

Os vermes parasitam nossas recordações
cantando hinos de decomposição.

Onde estão o medo, os soluços, o desespero, a
[raiva?!
Onde estão os mortos, os vivos, as vítimas, os
[algozes?!

Quase não acredito no que já esqueci.

Mário Brochado Coelho (1939–2023) in Cinco passos ao sol, Edições Afrontamento, Porto, 1991


Militares portugueses em operações nas proximidades da fronteira do rio Cuango em 1973. Quimbele, Uíge, Angola (Foto: Henrique J. C. de Oliveira)
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01 junho 2025

In the Mood


In the Mood, por Glenn Miller and His Orchestra, com Clyde Hurley, Leigh Knowles e Dale McMickle nos trompetes, Glenn Miller, Al Mastren e Paul Tanner nos trombones, Hal McIntyre em saxofone alto, Harold Tennyson em clarinete, saxofone alto e saxofone barítono, Wilbur Schwartz em clarinete e saxofone alto, Tex Beneke e Al Klink em saxofones tenores, Richard Fisher na guitarra, Rowland Bundock no contrabaixo, Chummy McGregor no piano e Maurice Purtill na bateria. Gravado em 1939

30 maio 2025

A Fonte da Juventude


A Fonte da Juventude, 1546, óleo sobre madeira de tília de Lucas Cranach, o Velho (14721553), Gemäldegalerie Berlin, Berlim, Alemanha
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27 maio 2025

Veloso Salgado


Retrato de Mrs. Hirsch, c.1934, óleo sobre tela de Veloso Salgado (1864–1945), Museu Nacional Soares dos Reis, Porto
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Amor e Psique, 1891, óleo sobre tela de Veloso Salgado (1864–1945), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute, 1898, óleo sobre tela de Veloso Salgado (1864–1945), Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa
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O pintor José Maria Veloso Salgado nasceu em Ourense, na Galiza, em 1864. Com dez anos de idade mudou-se para Lisboa, onde ficou aos cuidados de um tio materno. Este tio era dono de uma litografia, onde Veloso Salgado começou a trabalhar e onde teve os seus primeiros contactos com a produção artística no domínio das artes gráficas.

Entre 1883 e 1885, Veloso Salgado frequentou a Academia de Belas-Artes de Lisboa. Em 1887 naturalizou‑se português e concorreu a uma bolsa de estudo do Estado, para completar a sua formação no estrangeiro. Conseguiu que esta bolsa lhe fosse atribuida e foi para Paris. Depois de ter concluído os seus estudos na capital francesa e antes de regressar a Portugal, Veloso Salgado ainda teve estadias mais ou menos curtas, mas muito proveitosas, na Bretanha, no extremo nordeste de França e em Florença. Pintou, realizou exposições, venceu concursos e ganhou prémios.

Em 1895, Veloso Salgado regressou a Portugal e tornou-se professor da Escola de Belas-Artes de Lisboa, onde lecionou até 1937. O artista viveu no n.º 35 da Rua da Quintinha, em Lisboa, onde existe uma placa a assinalar este facto, e faleceu em 1945.

Veloso Salgado foi um artista muito prolífico e dele ficaram numerosas obras, de entre as quais podemos destacar as pinturas alusivas a acontecimentos marcantes da história de Portugal, assim como outras evocativas das Artes e das Ciências, que se encontram disseminadas por muitas instituições públicas e privadas, nomeadamente a Assembleia da República, a Sociedade de Geografia de Lisboa, a Universidade do Porto, o Palácio da Bolsa também no Porto, o Museu Militar de Lisboa, etc.

24 maio 2025

Ribalta

Às vezes é tão tarde, querido amigo,
Que uma nesga de céu nos bate à porta,
Que a gente nem a ouve… Ou já está morta,
Ou nem tem porta por não ter abrigo…

Não quer entrar e conversar comigo?
Venha daí se o que eu disser lhe importa,
Quero mostrar-lhe os frutos duma horta
Que cozinhei num fogo muito antigo…

É que a conversa, amigo, faz-nos falta,
Tanta quanta nos faz o pão prà boca
Ou a canção que anima e junta a malta

Esta é a minha casa, a minha toca,
O meu pequeno palco e a ribalta
Da minha velha Musa ousada e louca.

21.05.2025 — 21:30h

Maria João Brito de Sousa, in poetaporkedeusker
(Desenho de Ahmad Safarudin)

22 maio 2025

O Auriga de Delfos



Auriga de Delfos é o nome de uma escultura grega de bronze, com 1,82 metros de altura, feita por volta do ano 470 A.C. (antes de Cristo) e descoberta em 1896 num antigo santuário dedicado a Apolo, em Delfos, Grécia. Encontra-se presentemente no Museu Arqueológico de Delfos.

O Auriga de Delfos representa um condutor de carros puxados por cavalos (um auriga), que terá vencido uma corrida de carros nos Jogos Pítios. Estes jogos eram os segundos jogos mais importantes de toda a Grécia Antiga, logo a seguir aos Jogos Olímpicos, e realizavam-se de quatro em quatro anos em Delfos. Esta escultura devia representar um auriga a conduzir o seu carro durante a volta triunfal de consagração, como vencedor, no fim de uma corrida, com as rédeas dos cavalos seguras na sua mão direita, ainda suado, mas já com a respiração normalizada.


O Auriga de Delfos é uma escultura representativa de um estilo intermédio na arte da Grécia Antiga, chamado Estilo Severo, que fez a transição entre o Estilo Arcaico, hirto e rígido, e o Estilo Clássico, harmonioso e natural. Nesta obra em concreto, a parte da túnica que do peito desce até aos pés, verticalmente e sem qualquer sugestão de movimento, é representativa do Estilo Arcaico. O resto da escultura, cheio de naturalidade e harmonia, já representa o Estilo Clássico, mostrando um auriga vencedor, altivo e orgulhoso do seu feito, mas sereno e contido nas emoções de acordo com o ideal clássico expresso na frase «Tudo com perfeita moderação».

A estátua do Auriga de Delfos não devia limitar-se a representar apenas o auriga propriamente dito, mas também devia ser complementada por um conjunto de outras esculturas, também elas de bronze, das quais resta muito pouco: as do carro que o auriga conduzia, as dos cavalos que estavam atrelados ao carro e, provavelmente, as de um ou dois tratadores dos cavalos. De todo este conjunto, quase só sobreviveu até aos nossos dias a estátua do próprio auriga, à qual falta apenas o braço esquerdo. No restante, ela apresenta-se-nos espantosamente completa e é verdadeiramente admirável do ponto de vista do engenho e da arte.


Também a qualidade técnica desta escultura de bronze é notável. Ela foi feita por moldagem, segundo o método da cera perdida, através do qual é possível reproduzir com total fidelidade os mais pequenos pormenores que estiverem presentes no molde. Este método dá bons resultados em esculturas de pequena dimensão, mas não em esculturas grandes como esta, que deve ter sido fundida em partes separadas, as quais no fim devem ter sido unidas umas às outras por soldadura. Seja como for, o resultado final é admirável.

Admirável também é a técnica usada para a representação dos olhos, que estão incrustados no bronze da estátua. Os olhos são feitos de calcedónia, que é uma variedade de quartzo translúcido. O aspeto gorduroso da calcedónia presta-se bem à representação da esclerótica, que é a parte branca dos olhos. A íris e a pupila foram obtidas por processos químicos cuidadosamente aplicados a zonas específicas da calcedónia. O resultado é espantoso: os olhos do auriga parecem ter vida! Só lhes falta pestanejar.


Por fim, não podemos deixar de reparar nos pés do auriga, que são de um realismo que impressiona. São uns pés maltratados, de alguém que costumava andar descalço.

Não há dúvida de que a estátua do Auriga de Delfos é uma das mais importantes esculturas de toda a arte da Grécia Antiga. É a estátua de alguém que viveu há dois mil e quinhentos anos e, no entanto, apresenta-se-nos impressionantemente humano. Parece que está vivo e respira, aqui e agora neste século XXI depois de Cristo. É um milagre que só a Arte com A maiúsculo consegue realizar.


17 maio 2025

Oh Angola dor mansa e bruta

oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente

desandando
em gargalhada teimosa
e
pé de dança atrevido
para
loucura de abismo

a compasso
de marimbas guitarras eléctricas
e
minas

oh Angola
dor mansa e bruta
de menina
descuidada e contente

Arlindo Barbeitos (1940–2021), poeta angolano


(Foto de autor desconhecido)

15 maio 2025

Dança das Horas


Dança das Horas, um bailado da ópera La Gioconda, do compositor italiano Amilcare Ponchielli (1834–1886), numa coreografia do romeno Gheorghe Iancu, interpretada pela bailarina italiana Letizia Giuliani, o bailarino espanhol Ángel Corella e o corpo de ballet da Ópera de Paris

13 maio 2025

O caçador de ausências


(Foto de autor desconhecido)


(…)

O miúdo falou que Florinha fugira de casa, numa noite dessas. Diz-se que ela se entranhara na floresta, deambulando sem destino. Ainda lhe seguiram o rasto até à curva do rio. Depois, subitamente, nenhuma pegada, nenhum vestígio, nenhuma gota. Mal soube da fuga, Vasco ordenou que todos espalhassem vigília e desgrenhassem capins e arvoredos. Enlouquecido passou o mato a pente fino. Pobre homem: abanava a árvore para cair fruto, mas quem tombou foi serpente. A solidão se enroscou, definitiva, no seu viver. E o homem se azedou a pontos de se raivar contra tudo e todos. Quem sabe tinha sido boa fortuna eu ter falhado encontrar-me com esse Vasco? Com certeza, ele me receberia a tiro de espingarda…

Assim, com saco vazio e alma magra eu me fiz ao mato, ensaiando um arrastoso regresso. Trazia comigo o meu nenhum dinheiro, bolso enchido de sopro. Um céu triste me enevoava. Pela primeira vez, chamava lembranças e a Florinha não comparecia. Estranhei, com suspeição. Porque ela se tinha retirado da sua ausência?

Meu sobressalto tinha razão. Porque, sem saber, um contrabandoleiro me tinha seguido desde a cidade. O malandro sabia, por certo, que eu ia colectar um montante. Tomando-me por um zé-alguém, o bandido me emboscou. Saltou de um penhasco, sombra encostando-se-me no corpo. Foi espetando nariz no meu hálito enquanto encostava o cano da espingarda no meu pé. Olhei para baixo, em respeito do medo.

De repente, o valor das minhas partes inferiores se desenhou, superior, ante o meu juízo. Cada pé sustenta mais que uma perna, meio corpo, meia vida. Um pé suporta o passado, outro dá apoio ao futuro. Aquele pé que o matulão me ameaçava, eu sabia, aquele pé dava sustento ao meu futuro.

– Esse, não. Lhe peço, dispare no outro pé.

A mão do mautrapilho procurou encosto no meu ombro. Era gozo de tocar-me? Ou seria o gosto de me ver liquedesfazer em tremuras? Eu já fazia descontos na minha vivência, mais vazado que o saco que tremia em meu regaço. Corajoso é o que esquece de fugir? Pois, imóvel fiquei até que se escutou o formidável rugido, clamor de cavernosos dentes. Cruz em peito, credo na boca! O que seria um tal escarcéu? E eis que um leopardo se subitou entre os ramos das árvores. E soou o disparo, tangenciando o instante. Tombei no meio de gritaria. Que se passara? O bandido, tomado de susto, disparou em seu próprio corpo. Tudo se passou em fracção de um «oh» e, no rebuliço, ainda acreditei ver um dedo maiúsculo voando, avulsamente pelo ar. Mas eu já me desencadeara dali, correndo tanto que os quilómetros se juntaram às léguas. Em pulos e tropeços, a distância me foi escudando.

Mas, contudo e porém. Mordido por ter cão, mordendo por não o ter. E eu me salvava de balázio para me perder na escura selva. Salvei-me da boca, metia-me no dente? Olhei em volta e o verde me enleava, pegajoso. Dormi com o relento, lençolei-me com o infinito da estrela. Pensava que era noite de passagem. Mas rodopiei mais noites às voltas, zarantolo. Assisti às quatro estações da lua. Comi raiz, masquei folha, trinquei casca, cuspi-me a mim. Beberiquei orvalhos, na cafeteira da madrugada.

Já eu tinha perdido contas às manhãs quando ao despertar me rasgou um susto. Focinhando em meu rosto estava o leopardo. Minha alma caiu de joelhos, me entreguei a meu próprio fim. O felino achegou-se e estacou a rasar-me o corpo. Olhei seus olhos e estremeci até às lágrimas: ali estavam, serenos e espantosos, os olhos de quem eu nunca me curara de ter amado.

Florinha!

E mesmo debaixo de tontura entreguei meu rosto, meu pescoço ao afago. Tanto que não senti nem dente, nem sangue. Os outros dizem que foi milagre o bicho não consumar em mim sua matadora vocação. Só eu guardo meus secretos motivos.

(…)




Mia Couto, escritor moçambicano. Trecho do conto O Caçador de Ausências, págs. 120 a 122 do livro O Fio das Missangas, Editorial Caminho, Lisboa, 2004

10 maio 2025

José Malhoa


Os Bêbados ou Festejando o S. Martinho, 1907, óleo sobre tela de José Malhoa (1855–1933), Museu de José Malhoa, Caldas da Rainha
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O Fado, 1910, óleo sobre tela de José Malhoa (1855–1933), Museu de Lisboa. Em exposição no Museu do Fado, Lisboa
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Praia das Maçãs, 1918, óleo sobre madeira de José Malhoa (1855–1933), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Outono, 1919, óleo sobre madeira de José Malhoa (1855–1933), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa
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Atelier do Artista, 1893–1894, óleo sobre tela de José Malhoa (1855–1933), Museu de Arte de São Paulo, Brasil
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José Malhoa foi, sem qualquer contestação, um dos pintores portugueses mais importantes da transição do séc. XIX para o séc. XX. Toda a sua formação artística decorreu exclusivamente em Portugal, pois, tendo concorrido a duas bolsas para poder completar os seus estudos no estrangeiro, foi preterido em ambas, em consequência de um outro concorrente ter metido "cunha" e ter ganho os concursos. Descobertas as fraudes, os concursos foram anulados e as bolsas canceladas.

Pode-se dizer, com toda a propriedade, que José Malhoa foi o mais português de todos os pintores portugueses dos últimos séculos. Toda a sua vasta obra é um caleidoscópio de gentes e de paisagens de Portugal no seu tempo: camponeses, rufiões, burgueses, pastores, prados, campos, jardins, praias, etc.

Nascido nas Caldas da Rainha em 1855, José Vital Branco Malhoa estudou na Real Academia de Belas-Artes de Lisboa, onde obteve sempre primeiros prémios, e em 1881 passou a dedicar-se exclusivamente à pintura. Permaneceu largas temporadas em Figueiró dos Vinhos, que era o seu refúgio predileto, e foi em Figueiró dos Vinhos que faleceu no ano de 1933. Está sepultado no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

04 maio 2025

Julga-me a gente toda por perdido


Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.

Luís de Camões (1524–1580)



01 maio 2025

Nom sei hoj', amigo, quem padecesse


Nom sei hoj', amigo, quem padecesse
coita qual padesco que nom morresse,
senom eu coitada, que nom nacesse,
        porque vos nom vejo com'eu queria;
e quisesse Deus que m'escaecesse
        vós que vi, amig[o], em grave dia.

Nom sei, amigo, molher que passasse
coita qual eu passo que já durasse,
que nom morress[e] ou desasperasse,
        porque vos nom vejo com'eu queria;
e quisesse Deus que me nom nembrasse
        vós que vi, amig[o], em grave dia.

Nom sei, amigo, quem o mal sentisse
que eu senço, que o sol encobrisse,
senom eu coitada, que Deus maldisse,
        porque vos nom vejo com'eu queria;
e quisesse Deus que nunca eu visse
        vós que vi, amig[o], em grave dia.

Cantiga de amigo do rei D. Dinis (1261–1325)


GLOSSÁRIO
coita — sofrimento, mágoa
padesco — padeço
escaecesse — esquecesse
grave — infeliz, desgraçado
nembrasse — lembrasse
senço — sinto



Ah, Quisesse Deus, por Amália Rodrigues (1920–1999), que interpreta uma cantiga de amigo do rei D. Dinis (1261–1325), adaptada ao português moderno por Natália Correia (1923–1993). Música de Fontes Rocha (1926–2011), porque a música original de D. Dinis se perdeu

29 abril 2025

Branca-Flor


(Foto de autor desconhecido)


Era de uma vez um rei que era muito jogador e tinha por costume jogar com o seu criado particular. Um dia em que já tinha perdido muito ao jogo, jogou a própria coroa e o criado ganhou-a. Vendo-se o criado de posse da coroa não cabia em si de contente, mas pouco tempo lhe durou o contentamento, pois quando ele menos o esperava, vieram duas pombas e roubaram-lhe a coroa, levando-a nos bicos.

Contou o criado isto ao rei e este disse-lhe: — «Se tu fores capaz de me restituires a coroa dar-te-ei a minha filha em casamento.»

Chamava-se a filha do rei Branca-flor e tanto ela como a rainha sua mãe eram feiticeiras. A mãe podia fazer quanto quisesse desde a madrugada até á meia noite e Branca-flor podia usar dos seus poderes de noite e de dia.

Quando Branca-flor soube da perda da coroa, transformou-se numa pomba e fugiu do palácio, com tenção de voltar só quando seu pai a tivesse de novo em seu poder.

Partiu o criado do rei em busca das pombinhas que tinham levado a coroa e como passasse muito tempo sem as encontrar foi ter ao reino da chuva para ver se ali lhe davam notícias delas. Chegado lá, encontrou uma velhinha que lhe disse ser mãe da chuva, e como ele lhe dissesse o que pretendia, mandou-o entrar para casa e esperar que viesse a filha. Passados poucos momentos chegava ela e disse logo: — «Senhora mãe, aqui entrou gente pois cheira-me a sangue humano.» Respondeu-lhe a mãe: — «Não te enganas, minha filha; está aqui um criado do rei que deseja que lhe digas se viste duas pombinhas que levavam uma coroa real nos bicos.» Respondeu a chuva: — «Não as vi, mas talvez o meu compadre vento as visse, pois esse quase sempre entra em toda a parte.»

Foi o criado ter ao reino dos ventos; esperou que o rei dos ventos entrasse em casa e logo sentiu o grande barulho que ele fazia. Da mesma forma que a chuva, assim ele respondeu, acrescentando mais: — «A mim tapam-me todos os buracos e janelas, por isso nada sei dessas pombas, mas o sol com certeza há de saber, pois as aves gostam todas muito do sol.»

Partiu o criado para o reino do sol e nestas viagens iam-se passando anos, pois ele tinha de atravessar ares e nuvens para ver se encontrava o que desejava. Chegado ao reino do sol logo este lhe apareceu e lhe disse: — «As pombas que procuras estão no reino dos pássaros; agora estão elas fazendo os seus ninhos dentro da coroa que te roubaram; monta no meu cavalo e parte para lá; espera que as pombas saiam, tira a coroa e logo o rei dos pássaros te oferecerá as suas asas para te conduzir ao palácio do rei teu amo.»

Montou o criado no cavalo do sol e tudo se passou como ele tinha dito. Chegado ao palácio do rei com a coroa, disse-lhe o rei: — «Não te posso já dar a minha filha, porque ela anda encantada numa pomba, mas se tu quiseres casar com ela hás de primeiro fazer o que te vou ordenar. Vês aquele campo que está em frente deste palácio?» — «Vejo, real senhor.» — «Pois bem; ordeno-te que de hoje até amanhã o vás semear de trigo, e que o faças crescer, que o ceifes, lhe tires a farinha, cozas o pão e mo apresentes aqui pronto.»

Foi-se o criado muito triste por lhe parecer impossível fazer tantas cousas; eis que de repente lhe apareceu Branca-flor e lhe disse: — «Sei de tudo que meu pai te ordenou; não te dê cuidado que tudo se há de arranjar.» De repente achou-se o campo semeado de trigo, daí a pouco tempo foi ceifado por Branca-flor e pelo criado; depois prepararam o trigo para ser moído, amassaram o pão e cozeram-no. Branca-flor ordenou ao criado que levasse os tabuleiros de pão a seu pai e fosse sempre apregoando: — «Quem quer pão quente, quem quer pão quente!»

Maravilhou-se o rei quando viu tudo prnto e perguntou ao criado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.» — «Pois bem; já que tiveste tanto poder, não te darei minha filha sem que tu me tragas para perto do meu palácio aquelas grandes pedreiras que se avistam acolá ao longe.»

Foi-se o criado muito triste e logo lhe apareceu Branca-flor e lhe disse: — «Nada te dê cuidado, mas que meu pai nunca saiba que sou eu que te valho.»

Pela manhã quando o rei acordou achou o palácio rodeado das pedreiras; então perguntou ao criado: — «Por aqui andou Branca-flor?» — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.» Disse-lhe então o rei: — «Ainda te não dou minha filha sem que primeiro tragas o mar para a frente do meu palácio.»

Apareceu Branca-flor ao criado e disse-lhe: — «Toma este vidro que contém sangue que eu agora mesmo tirei deste braço; irás derramando gotas dele em volta do palácio e logo verás o mar rodeá-lo; tem porém, muita cautela não deites nenhuma gota de sangue em ti, porque ser-te-á isso muito perigoso.»

Andou o criado durante a noite deitando o sangue em volta do palácio e ao mesmo tempo via que o mar crescia, e quando ia a amanhecer, já o palácio formava uma ilha e Branca-flor mandava prender os navios às janelas do palácio.

O criado quando andava deitando o sangue esqueceu-se da recomendação de Branca-flor e chegou o sangue a um dedo e logo este lhe caiu.

De madrugada, quando o rei acordou, viu feito tudo que tinha ordenado ao criado e então a rainha disse-lhe: — «Não é possivel que deixasse de andar por aqui Branca-flor. Veio o criado e respondeu: — «Nem eu vi Branca-flor, nem ela me viu a mim.»

Vendo o rei que nada já podia ordenar que não fosse feito, disse ao criado: — «Casarás com minha filha logo que ela volte ao palácio.»

Nesse mesmo instante Branca-flor a voltar. Então o rei perguntou-lhe se era da vontade dela casar com o seu criado particular, e ela respondeu que sim. Casaram mesmo nesse dia e Branca-flor perdeu o encanto, mas não o poder de feiticeira.

Quando os noivos foram à noite para se deitar, reparou Branca-flor que sobre o seu leito estava suspensa por um cabelo uma espada desembainhada, então disse ela ao seu marido: — «Vês esta espada? — «Vejo.» — É a prova de que meu pai nos quer matar; é preciso fugir, mas não o podemos fazer antes da meia noite e nem depois, porque até à meia noite pode minha mãe usar do seu poder de feiticeira e saberia para onde íamos, e ao dar da meia noite, virá meu pai matar-nos. Não devemos, pois, ao dar meia noite ter já fugido, mas devemos partir então. Vai aparelhar os cavalos que andam tanto como o pensamento e ninguém nos poderá alcançar; se fôssemos nos que andam tanto como o vento, era mau, porque não andam tanto como os outros.»

Enganou-se o criado e aparelhou os cavalos que andavam tanto como o vento e Branca-flor sem reparar nisso, partiu mais ele à hora que estava destinada.

Quando o rei foi ao quarto deles para os matar, viu que tinha sido logrado e então a rainha disse-lhe: — «Antes da madrugada não partas, porque estou sem o meu poder; mas logo que amanheça, manda aparelhar os cavalos que andam como o pensamento e eu farei com que tu alcances os fugitivos.»

Partiu o rei de madrugada e logo avistou os noivos muito ao longe e Branca-Flor também avistou seu pai e então disse a seu marido: — «Meu pai segue-nos, já o avisto ao longe; mas não te dê cuidado; os cavalos se transformem em terra, os arreios numa horta, eu numa alface muito repolhuda e tu serás o hortelão; meu pai há de perguntar-te: viram por aqui Branca-Flor? e tu responderás: se quer alface é a 20 réis cada uma.»

No mesmo instante tudo se transformou como Branca-Flor tinha ordenado. Chegou o rei e perguntou ao hortelão por Branca-Flor e ele deu a resposta que ela lhe tinha ensinado. Renovou o rei a pergunta e o hortelão dando sempre a mesma resposta.

Caminhou o rei para diante sempre em busca dos fugitivos e estes, quando viram que ele já ia longe, transformaram-se outra vez no que eram e partiram, sempre correndo. Quando iam já muito longe tornaram a avistar o rei e então disse Branca-Flor: — «Lá vejo outra vez o meu pai, mas não te dê cuidado isso; que os cavalos se transformem numa ermida; os arreios em altar, eu numa santa e tu serás o sacristão, que estarás à porta a tocar à missa.»

Logo tudo se transformou e o sacristão foi para a porta da ermida tocar à missa. Chegou o rei e perguntou: — «Viste por aqui Branca-Flor?» — «Se quer ouvir missa, estou a tocar a ela.» — «Não pergunto por missa, mas sim por Branca-Flor e por seu marido, que deviam ter passado por aqui a cavalo.» O sacristão respondia sempre o mesmo.

Entrou o rei na ermida; viu a santa e pareceu-lhe que ela se assemelhava a Branca-Flor, mas como nada mais soubesse partiu novamente em busca dela.

A ermida, o altar, a santa e o sacristão tornaram outra vez ao que eram e partiram correndo sempre com receio de serem encontrados. Mas o rei, que não descansava, avistou-os novamente e ela então disse ao marido: — «Que os cavalos se façam num mar, os arreios num barco, tu no barqueiro e eu serei uma tainha, que andarei saltando em volta do barco.»

Chegou o rei e perguntou ao barqueiro: — «Viste por aqui Branca-Flor? — «Se quer embarcar agora, é maré.» E a tainha sempre saltando, ora no bordo do barco, ora na água.

Vendo o rei que nada tinha conseguido do que buscava, voltou para o palácio a contar tudo à rainha e esta disse-lhe: — «Olha, a horta que tu viste eram os cavalos e os arreios; o hortelão o teu genro e a alface Branca-Flor. A ermida, que viste, eram outra vez os cavalos, a santa Branca-Flor e o sacristão o marido dela. O barco, o barqueiro e a tainha eram tambem eles; mas eu vou já lá, pois agora estou com todos os meus poderes, que são maiores do que os da nossa filha e veremos como isto há de ser.»

Foi a rainha à borda do mar e encontrou ainda tudo como o rei lhe tinha dito e então disse: — «Volte tudo ao que era e já que não posso mais sobre minha filha ordeno-lhe que se esqueça inteiramente de que é casada e que seu marido se esqueça também dela e que nunca mais se tornem a lembrar do que passaram.»

No mesmo instante tudo se cumpriu: esqueceram-se inteiramente um do outro. Branca-Flor voltou para a casa de seu pai e o marido foi correr terras. Passaram-se anos sem que se lembrassem mais um do outro e neste tempo morreu a rainha e o rei, e Branca-Flor como se visse só resolveu casar-se. Estava já destinado o dia para a boda quando ao marido de Branca-Flor foram dizer o que estava sucedendo e ele então começou a recordar-se do que tinha passado e resolveu partir para o palácio, onde Branca-Flor estava para casar.

No caminho encontrou um casal de pombas que lhe contaram mais por miúdo tudo o que estava para suceder e se ofereceram para o auxiliar em tudo que ele precisasse.

Chegado que foi ao palácio de Branca-Flor, ofereceu-se para criado e foi logo aceite, pois como a princesa estava para casar precisava de criados.

Estavam já todos à mesa, príncipes, princesas e mais pessoais reais que tinham sido convidados para assistir ao casamento e os noivos na cabeceira da mesa, ricamente vestidos e com muitas jóias e brilhantes. O novo criado tinha preparado um grande bolo para a noiva e andava servindo à mesa; à sobremesa partiu-se o bolo e logo sairam de dentro um pombo e uma pomba que se foram banhar num vaso de água que estava no centro da mesa e depois de banhados colocaram-se ao lado de Branca-Flor e o pombo perguntou à pomba: — «Olha lá, não te lembras quando teu pai perdeu a coroa ao jogo e tu a ganhaste e depois vieram duas pombas e a roubaram? Respondeu a pomba: — «Não me lembra nada.» E assim o pombo foi recordando à pomba tudo quanto Branca-Flor tinha passado e mais o marido; e ao passo que a pomba dizia que se ia recordando, ia-se Branca-Flor recordando de tudo e no fim do jantar levantou-se da mesa e disse: — «Recordo-me de tudo e, se ainda vive meu marido que venha, pois só a ele quero.»

Nisto fugiram os pombos e o criado que andava a servir à mesa perguntou a Branca-Flor se o conhecia; ela então, dando-lhe um abraço, disse: — «Só tu serás meu esposo e a coroa de meu pai, que também já te pertenceu, será outra vez tua, pois tu serás o rei destes estados.»

Retirou-se o segundo noivo de Branca-Flor muito triste, mas louvando a resolução dela.



Conto popular recolhido em Coimbra por Adolfo Coelho (1847-1919)

27 abril 2025

A batalha de Alcácer-Quibir em música


Puestos están frente a frente, um romance em castelhano, provavelmente de Miguel Leitão de Andrada (1553–1630), que participou na bataha de Alcácer-Quibir e sobreviveu, por Teresa Salgueiro e o Lusitânia Ensemble

   Puestos estan frente a frente
Los dos valerosos campos;
Uno es del Rei Maluco,
Otro de Sebastiano el lusitano.
   Moço animoso y valiente,
Robusto, determinado,
Aunque de poca experiencia
Y no bien aconsejado
El lusitano.
   Quando los Moros sin cuento
Su hueste la van cercando
Que pera uno de los suyos
Son mais deziocho tantos.
   Ardiendo em fuego su pecho
Rabia por ponerlos mano,
Piensa que todos son nada,
Manda a pelea echarbando el lusitano.
   Brama que envistan los moros
Y el exercito contrario;
Ya se van llegando cerca
A ellos (dize) Santiago el lusitano.
   Dispara la artilharia,
La nuestra mal disparando,
Lluevem balas, llueven muertes,
Saetas y mosquetazos.
   Empuxan picas los moros,
Ya huyen rotos rodando,
Los ventureros victoria
Pregonan con grande aplauso.
   Que mataron el Maluco,
Y lo ha llevado el diablo,
Porque junto a su litera
Lo passaron de un balazo.
   Y en la mora artilharia
Dos banderas se lian ganado,
Con victoria tan pujante,
Que semejó a milagro.
   Pero por peccados nuestros
La gozamos poço espacio;
Que a socorrer retroguardia
La delantera ha parado.
   Que por los lados ya todos
Es vanguardia nuestro campo.
Y con sangre de los muertos,
Está hecho un grande lago.
   Todo lo anda el buen Rey.
Dando muertes muy gallardo,
La espada tinta de sangre,
Lança rota, y sin cavallo.
   Que el suyo passado el pecho
Ya no puede dar un passo,
A George d'Albuquerque pide
Le dé su rucio rodado.
   Daselo de buena gana,
Y el-Rey cavalga de un salto,
Mirale el-Rey como jaze,
De espaldas casi espirando.
   Mas le dize que se salve,
Pues todo es roto en pedaços,
Y el-Rey se vá a los moros,
A los moros Sebastiano el lusitano,
   Busca la muerte en dar muertes,
Busca muerte Sebastiano el lusitano,
Diziendo: Aora es la hora,
Que un bel morir, tuta la vita honora. (*)

(•) Palavras que este Rey trazia dantes na boca, e costumava dizer muitas vezes.

in Miscelanea, de Miguel Leitão de Andrada, Nova Edição Correcta, Imprensa Nacional, Lisboa, 1867

25 abril 2025

Poemarma

Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês.

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua.

Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas.
E até se partir uma não faz mal:
antes de muletas que de asas eternas.

Que o poema assalte esta desordem ordenada
que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!
Que faça ginástica militar aplicada
e não vá como vão todos para França.

Que o poema fique. E que ficando se aplique
a não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo, o desejo de achar.

E que o poema diga: o longe é aqui
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
Ah que o poema chegue ao pé de ti
e te diga ao ouvido o que é preciso.

Que o poema actue directamente sobre o real
nem que por vezes seja só o poeta em movimento.
Ah que o poema para ser original
transforme em braços e acção o pensamento.

Que ponha sinos a tocar dentro das rosas
e seja mais que rosa flor de cacto.
Que o poema saiba ver dentro das coisas
a mão do homem feita poema em acto.

Que o poema me dispa de tudo o que não presta
e me transforme na sua própria acção.
Nem quero outra glória nem quero outra festa:
morrer como Guevara na Bolívia da canção.

Só tu, povo fardado de ganga azul
poderás dar-me a glória ou recusar-ma.
Aí vai o meu poema
a minha taça do rei de Tule
aí vai para ser arma!

Manuel Alegre