06 novembro 2024

A serpente


Covas do Rio, Serra de Arada ou de São Macário, São Pedro do Sul (Foto: José António Baltazar Aurélio)
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Pena, Serra de Arada ou de São Macário, São Pedro do Sul. Fotografia feita a partir da estrada de acesso, que é muito íngreme e perigosa (Foto: Inês Sequeira)
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Dizem os antigos que nos montes de Covas do Rio havia uma serpente muito, muito grande, que ia beber ao Rio de Bronhedo, onde nessa altura habitava gente. Como a serpente era descomunal as pessoas não se podiam defender dela, que ia comendo quem apanhava mais perto, quando lhe dava fome.

As pessoas tiveram tanto medo que fugiram, mas como gostavam tanto de morar ali, e o lugar é deveras bonito, iam dizendo:

— Que pena, que pena termos de sair daqui!

E foram construir as suas casas numa aldeia, no fundo de um vale de difícil acesso, onde a serpente não lhes conseguisse chegar com facilidade. Diz-se que, por isso, chamaram Pena ao lugar para onde fugiram. Mas alguns não quiseram ir para longe dali e ficaram em Covas do Rio, por isso tinham que levar, todos os dias, uma rês ao pé do rio, para a serpente não os comer a eles.

Certo dia, uma menina levava uma rês lá para o sítio onde a serpente ia beber; e ia a chorar com muito medo, quando encontrou um barbeiro, que andava a cortar as barbas de aldeia em aldeia. Então, o barbeiro perguntou-lhe porque é que ia a chorar e ela contou-lhe o que se estava a passar. O barbeiro disse-lhe que não chorasse mais, que ele havia de matar a serpente e quis saber por onde é que ela passava, quando ia beber ao rio. A menina mostrou-lhe o caminho e o barbeiro afiou bem muitas facas e colocou-as em jeito de escamas, de tal maneira que, nesse mesmo dia, quando a serpente desceu para ir beber ao rio, passou em cima das navalhas, mas não se cortou, só que quando voltou a subir, cortou se toda, o sangue corria pelo rio abaixo e ela morreu.

Ainda hoje lá se pode ver a cova da serpente e os restos das paredes das casas, que as pessoas tiveram de abandonar para salvarem as suas vidas.



Maria dos Anjos, lenda recolhida em Covas do Rio, concelho de São Pedro do Sul, por Isabel Pinho


Trecho do caminho que liga a aldeia da Pena à de Covas do Rio e a que chamam "caminho do morto que matou o vivo". Antes da abertura da estrada que liga a Pena ao alto de São Macário, este era o único caminho que estabelecia comunicação entre a Pena e o resto do mundo. Como na Pena não existia cemitério, os mortos eram levados ao longo deste caminho até Covas do Rio, para poderem ser enterrados. Numa ocasião em que era transportado um morto, o caixão resvalou e atingiu mortalmente um dos homens que o transportavam. Por isso se diz que o morto matou o vivo (Foto de autor desconhecido)
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04 novembro 2024

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas…

Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro…
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.

… Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?…

Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra…

É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar…
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão de voltar!…

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta, bem calada…

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada…

Alda Lara (1930–1962), poetisa angolana


Estrada rural na província de Benguela, Angola (Foto: Samuel Sambaly)

02 novembro 2024

Concerto para violino nº 1 de Haydn


Concerto n.º 1 em dó maior para violino e orquestra de cordas, n.º VIIa:1 do catálogo Hoboken, do compositor austríaco Joseph Haydn (1732–1809). Interpretação a cargo da violinista alemã Sarah Christian e de uma orquestra de cordas constituída por músicos da Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Bávara, sob a direção do maestro alemão Reinhard Goebel. Gravação realizada no Palácio de Nymphenburg, em Munique, Alemanha

31 outubro 2024

No outono

No outono,
Quando a vinha se ensanguenta
E as folhas caem com sono
Sobre a terra lamacenta,

O sol,
Ao romper a madrugada,
Derrama um frouxo arrebol
Num céu de cinza molhada.

O frio,
Que vem das serras distantes,
Semeia escamas brilhantes
Nas águas turvas do rio;

Murmura
A carvalheira plangente,
E a escassa luz do nascente
Não alumia, de escura.

Depressa,
O dia passa, embuçado…
E quando a noite começa,
Envolta em luto pesado,

A nossa melancolia
Diz-nos que a morte é um sono.
E a vida a imagem de um dia
Do outono!

João Saraiva (1866–1948)


Outono no Alto Douro (Foto de autor desconhecido)
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29 outubro 2024

Violinos


Violinos choram com os ciganos que se vão a Alandalus
Violinos choram pelos árabes que saem de Alandalus

Violinos choram por um tempo perdido que não volta
Violinos choram por uma pátria perdida que tem volta

Violinos incendeiam as matas de uma escuridão sem
[fronteiras
Violinos sangram os dentes farejando meu sangue nas
[veias

Violinos choram com os ciganos que se vão a Alandalus
Violinos choram pelos árabes que saem de Alandalus

Violinos são cavalos em cordas de miragem e água
[gemente
Violinos são campo de violetas selvagens ora perto ora
[distante

Violinos são animal fustigado por unha de mulher que o
[arranha e ele se afasta
Violinos são exército que ergue túmulos de mármore e
[alabastro

Violinos são o caos de um coração enlouquecido pelo
[vento do pé da dançarina
Violinos são bandos de pássaros que saltam de bandeira
[desaparecida

Violinos são queixas da seda enrugada na noite da
[apaixonada sozinha
Violinos são a voz de um vinho distante a cobrir um
[desejo antigo

Violinos me perseguem ali, aqui, para vingarem-se de
[mim
Violinos querem matar-me sempre e onde me virem

Violinos choram pelos árabes que saem de Alandalus
Violinos choram com os ciganos que se vão a Alandalus


Mahmoud Darwish (1941–2008), poeta palestiniano. Tradução de Michel Sleiman


Alandalus ou Al Andaluz — Nome dado ao território governado pelos árabes na Península Ibérica medieval


Violino feito em 1987 pelo conceituadíssimo luthier António Capela, de Anta, Espinho (Foto de autor desconhecido)

27 outubro 2024

Jorge Afonso


Anunciação, c. 1510, óleo sobre madeira de Jorge Afonso (c.1470–c.1540). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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Ascensão, c. 1515, óleo sobre madeira de Jorge Afonso (c.1470–c.1540). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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Jesus e o Centurião, de Jorge Afonso (c.1470–c.1540). Charola do Convento de Cristo, Tomar
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Adoração dos Pastores, 1515, de Jorge Afonso (c.1470–c.1540). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
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Jorge Afonso foi um dos mais destacados pintores portugueses do séc. XVI, o século de ouro da pintura em Portugal. Jorge Afonso foi nomeado pintor régio por D. Manuel I e confirmado na mesma função pelo rei D. João III.

Pela oficina de Jorge Afonso, em Lisboa, passaram alguns discípulos que vieram a tornar-se, eles também, grandes pintores do Renascimento português: Gregório Lopes, Cristóvão de Figueiredo, Gaspar Vaz, Grão Vasco, etc.

Entre outras obras, são atribuídos a Jorge Afonso os painéis da charola do Convento de Cristo, em Tomar, os do retábulo que estava no convento da Madre de Deus, em Lisboa, e que agora está no Museu Nacional de Arte Antiga e, muito provavelmente, os do retábulo do Convento de Jesus, em Setúbal.

25 outubro 2024

A mulher-cobra


(Foto de autor desconhecido)

Era uma vez uma aldeia onde toda a gente vivia bem, tinham campos e hortas, criação de porcos e galinhas, vacas e outros animais, mas era gente muito agarrada, na dava nada a ninguém.

Um dia chegou lá uma pobre mulher, muito magrinha e muito esfarrapadinha, a pedir. Batia a uma porta, nada. Batia a outra, também nada. Até que chegou à casa mais rica e como na lhe dessem nada de comer pediu que ao menos lhe deixassem dormir no palheiro. Assim foi. Ficou a dormir no palheiro, de dia saía p’ró campo e à noite voltava. Ninguém sabia o que ela andava a fazer, mas começou a ficar mais gordinha.

Ora, ao mesmo tempo, nunca mais as galinhas punham ovos e começaram a desaparecer galinhas e pintos dos galinheiros e também bacorinhos dos chiqueiros, umas vezes num lado, outras vezes no outro. Não foi preciso mais nada para deitarem culpas à tal mulher.

Ela negava tudo, chorava e jurava que não era ela. Mas não acreditaram e puseram-na na rua. Foi-se embora, nunca mais ninguém a viu, mas os animais continuaram a desaparecer na mesma.

Então as pessoas começaram a guardar os animais dentro de casa e os mais ricos dentro dos armazéns. Mesmo de dentro do armazém desapareciam galinhas, pintos e patos todas as noites. Os donos revistaram tudo muito bem e descobriram um buraco não muito grande, escavado na porta do armazém. Lá muito de noite foram à porta e pregaram uma tábua a tapar o buraco.

No dia seguinte, quando abriram a porta, o que haviam de ver? Saltou-lhes uma grande cobra, muito gorda, com a barriga inchada, a acometer contra eles. Deram-lhe com um grande varapau e depois de muita pancada a cobra deu um grande grito e transformou-se na tal mulher. Disse-lhes que estava encantada e andava a correr o seu fadário, mas que eles tinham redobrado o tempo da sua pena e que havia de vingar-se. Aí, deu um grande salto e atirou-se contra eles com umas grandes garras estendidas, parecia uma fera. Os homens fugiram espavoridos.

Passado isto, quando as pessoas dali iam vender coisas ao mercado, se saíam de casa ainda de noite e sozinhas, às vezes apareciam mortas nos caminhos, estranguladas. Deitaram as culpas à mulher-cobra. O que é que haviam de fazer? Pensaram que era melhor deixarem coisas de comer no caminho à saída da terra, e assim foi. Deixavam o comer à noitinha e no dia seguinte, nada. Tinha desaparecido tudo. Nunca mais ninguém apareceu morto. Passou muito tempo, foram sete anos, até que um dia de manhãzinha viram na estrada a comida que lá tinham posto na véspera e ao lado a pele duma grande cobra, tão grande que metia pavor.

Então a mulher-cobra desapareceu de vez e nunca mais lá voltou. Bendito e louvado, o meu conto acabou.



Conto popular narrado por Maria Manuela do Serro Mateus, da Mexilhoeira Grande, Portimão, e recolhido por Margarida Tengarrinha (1928–2023)

23 outubro 2024

Mia madre velida

Mia madre velida,
vou-m'a la bailia
do amor.

Mia madre loada,
vou-m'a la bailada
do amor.

Vou-m'a la bailia
que fazem em vila
do amor.

[Vou-m'a la bailada
que fazem em casa
do amor.]

Que fazem em vila
do que eu bem queria
do amor.

Que fazem em casa
do que eu muit'amava
do amor.

Do que eu bem queria;
chamar-m'-am garrida
do amor.

Do que eu muit'amava;
chamar-m'-am perjurada
do amor.

Cantiga de amigo de D. Dinis (1261–1325), rei de Portugal e trovador


GLOSSÁRIO

velida - bela, formosa
bailia - baile
loada - louvada
chamar-m'-am - chamar-me-ão



NOTAS

1 — D. Dinis exprime as palavras de uma donzela, que anuncia à sua mãe que vai ao baile, na vila, em casa do seu amado, mesmo sabendo que talvez seja criticada por isso.

2 — A estrofe que está entre parêntesis retos falta nos manuscritos originais, mas foi possível inseri-la com poucas probabilidades de erro, dada a forma paralelística da composição.

3 — A métrica do verso «chamar-m'-am perjurada» é excessiva. Por isso, alguns especialistas substituíram a palavra «perjurada» por «jurada», com o sentido de prometida, noiva. Porém, nos manuscritos está de facto grafada a palavra «perjurada», que significa falsa, alguém que cometeu perjúrio. Como a palavra «garrida», na estrofe anterior, parece ter um tom ligeiramente reprovador para a donzela, há quem seja da opinião de que talvez «perjurada» seja mesmo a palavra correta.



Ma Madre velida, cantiga de amigo do rei D. Dinis (1261–1325) e da qual só se conhece o poema, musicada e cantada por José Mário Branco (1942–2019)

21 outubro 2024

Suite Alentejana N.º 1, de Luís de Freitas Branco


Suite Alentejana N.º 1, de Luís de Freitas Branco (1890–1955), pela Orquestra do Estado Húngaro dirigida por Gyula Németh

19 outubro 2024

Jazz: The Kid from Red Bank


The Kid from Red Bank, de Neil Hefti, por Count Basie & His Orchestra, com Count Basie (piano); Joe Newman, Thad Jones, Wendell Cully e Snooky Young (trompetes); Benny Powell, Henry Coker e Al Grey (trombones); Marshall Royal e Frank Wess (saxofones alto); Eddie Davis e Frank Foster (saxofones tenor); Charlie Fowlkes (saxofone barítono); Freddie Green (guitarra); Eddie Jones (contrabaixo); Sonny Payne (bateria). Gravado em Nova Iorque a 21 e 22 de outubro de 1957

16 outubro 2024

Apontamentos sobre redes neuronais


(Desenho de autor desconhecido)

A chamada inteligência artificial (IA), de que tanto se tem falado recentemente, não existe no vácuo nem flutua no ciberespaço ou no que lhe quiserem chamar. Ela existe no nosso mundo, que é real, e por isso funciona em máquinas reais, isto é, em gigantescas redes de computadores especializados, que ocupam edifícios e edifícios inteiros, espalhados pelo mundo e cheios de equipamento até ao telhado, e que consomem imensa energia elétrica, apesar da miniaturização conseguida pela indústria de semicondutores.

A intenção que preside ao desenvolvimento da IA consiste em fazer máquinas que emulem por meios eletrónicos o funcionamento do cérebro humano, e até que o ultrapassem, por exemplo na velocidade de "raciocínio". Isto não se consegue com processadores semelhantes aos que até agora têm estado — e continuarão a estar — no "coração" dos nossos computadores, telemóveis, "smart TV" e outros dispositivos digitais (processadores chamados CPU ou "central processing units"), nem mesmo com processadores gráficos (chamados GPU ou "graphics processing units"), mas sim com recurso a redes neuronais artificiais, criadas especificamente para o efeito. As redes neuronais artificiais (há quem lhes chame neurais) são redes de processadores, batizados de "neurónios", que são bastante simples na sua arquitetura interna, mas que são em grande quantidade, os quais comunicam uns com os outros de maneira a formarem uma densa rede de trocas de informações. O que se pretende, ao construir redes neuronais artificiais, é imitar as redes de neurónios que compõem um sistema nervoso biológico, como o dos seres humanos. Porém, existem muitas diferenças.

Os circuitos biológicos presentes no sistema nervoso dos organismos vivos funcionam por meio de fluxos de iões, que são átomos ou moléculas com carga elétrica positiva ou negativa, por terem eletrões a mais ou a menos. Os iões são movimentados de dentro das células para fora e vice-versa, ou então são retidos nas células ou fora delas para utilização ulterior, quando houver oportunidade para isso.

Por seu lado, e tal como o nome indica, a eletrónica, seja ela digital ou analógica, funciona por meio de fluxos de eletrões, que são partículas subatómicas com carga elétrica negativa, que se fazem movimentar de um lado para o outro sob a forma de correntes elétricas, ou então são armazenadas sob a forma de cargas elétricas para ulterior utilização, em dispositivos chamados condensadores, no Brasil capacitores.

Esta comparação entre circuitos biológicos e circuitos eletrónicos, tal como está descrita, é demasiado simplista, é verdade que sim, mas o que importa sublinhar é o que estes circuitos têm em comum: a utilização de cargas elétricas como veículos de processamento e comunicação, independentemente de estas cargas serem iónicas ou eletrónicas.

Em cima, um desenho esquemático de uma célula nervosa ou neurónio, geralmente constituída por um corpo celular (à esquerda), onde está alojado o núcleo da célula e que tem um conjunto de ramificações, chamadas dendrites, que recebem os sinais elétricos vindos de uma ou mais células vizinhas; o corpo celular prolonga-se por uma fibra chamada axónio (ao meio) que propaga os sinais de um extremo da célula para o outro; na outra extremidade (à direita) o axónio ramifica-se e transmite os sinais recebidos a uma ou mais células a jusante. O contacto entre duas células nervosas distintas é chamado sinapse, que pode ser de dois tipos, sendo o tipo mais comum o que está representado no desenho maior, em baixo. Neste desenho de baixo, vê-se que os iões envolvidos na transmissão dos sinais (neurotransmissores) passam de uma terminação do axónio de uma célula a montante, para uma dendrite da célula a jusante, através de um reduzidíssimo espaço de separação (a fenda sináptica), onde as trocas de iões se efetuam. Os iões envolvidos nesta troca são predominantemente iões de sódio, potássio e cloro, mas também há outros iões envolvidos, com destaque para os iões de cálcio (Desenhos de autor desconhecido)
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A célula de base de um sistema nervoso é chamada neurónio. Um feixe de neurónios é um nervo, enquanto um grande emaranhado de neurónios pode ser um cérebro. Os neurónios comunicam uns com os outros através de terminais chamados sinapses.

Quase todas as células, sejam elas nervosas ou não, estão envolvidas por uma membrana, exceto no caso das amibas, que são seres unicelulares sem membrana. A membrana de uma célula protege-a das agressões exteriores, mas não é totalmente impermeável. Possui pequeníssimos poros, através dos quais a célula efetua trocas de iões com o exterior. No caso dos neurónios, concretamente, estes comunicam através de poros existentes nas suas sinapses com as células suas vizinhas, células vizinhas estas que podem ser outros neurónios, podem ser células musculares (a jusante) ou então células sensoriais, que transformam a luz, o som, o paladar, o olfacto, o tacto, etc. em impulsos elétricos (a montante).

Se aproximarmos um dedo de uma chama, por exemplo, as células receptoras da dor que estão no dedo enviam um sinal de alarme, que o sistema nervoso comunica ao cérebro. Este, ao interpretar o sinal recebido como sendo de dor, envia de volta um sinal às células musculares envolvidas no movimento do braço, para que estas retirem imediatamente o dedo da chama. Entretanto, as células olfativas poderão comunicar ao cérebro a sensação de cheiro a carne assada… Enquanto tudo isto acontece, as células do cérebro associadas à memória registam o incidente como tendo sido desagradável (no mínimo), e o cérebro começa a evitar a proximidade do fogo, porque passa a achar que ele é perigoso. O cérebro aprende mais uma lição.

Como se verifica pelo exemplo dado, o órgão principal de um sistema nervoso biológico é o cérebro, que sente, comanda, memoriza, deduz e decide. O cérebro é um emaranhado extremamente complexo de milhares de milhões de neurónios, cada um dos quais possui milhares de sinapses! Tudo dentro do espaço de um crânio! Como se poderá replicar um órgão tão extraordinário num equivalente artificial? Não pode. Ainda por cima, falta considerar outros aspetos que também envolvem o cérebro e que também fazem parte da inteligência humana: os sentimentos, as emoções, a intuição, a criatividade, os afetos, etc. O que se tem tentado fazer, é procurar replicar, por meios eletrónicos, algumas das características dedutivas e indutivas do raciocínio presente num cérebro biológico.

Um esquema de rede neuronal artificial, em que as camadas de neurónios aparecem representadas na vertical, como é habitual fazer-se. Cada círculo representa um neurónio artificial e cada traço representa uma sinapse artificial. Esta rede neuronal, em particular, tem seis camadas de neurónios, mas poderia ter mais, muitas mais ou até menos: uma camada de entrada (coluna de neurónios à esquerda), quatro camadas escondidas (colunas de neurónios intermédias) e uma camada de saída (coluna de neurónios à direita). (Desenho de autor desconhecido)
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Com vista a emular o funcionamento de um sistema nervoso biológico baseado em processos eletroquímicos, foi inventada a rede neuronal artificial baseada na eletrónica, como já se disse. A principal razão para o uso da eletrónica consiste na extrema miniaturização que a indústria de chips conseguiu atingir, da qual nenhuma outra tecnologia sequer se aproxima. Há outras vantagens para o uso da eletrónica, sendo uma das mais importantes a velocidade de processamento conseguido pelos chips. É incomparavelmente mais rápido processar informação por meios eletrónicos do que por meios iónicos. Por muito poderoso que um sistema nervoso biológico seja — e de facto é — ele é incrivelmente lento no envio e tratamento dos sinais elétricos veiculados por iões. Demoram um tempo considerável as movimentações de iões de dentro para fora duma célula e inversamente, também de um lado de uma sinapse para o outro, e ainda por cima existem fenómenos de despolarização elétrica presentes num tipo de neurónios (chamados "mielínicos") que os inibe de funcionar durante um período de tempo da ordem dos 3 milissegundos após a passagem de um impulso elétrico. Para um sistema eletrónico, 3 milissegundos são uma eternidade.

Os sinais presentes nas células de um sistema nervoso biológico são constituídos por sequências de impulsos elétricos. Todos estes impulsos têm aproximadamente a mesma forma e a mesma amplitude. O interior de um neurónio biológico em repouso encontra-se a uma diferença de potencial, relativamente ao meio envolvente, que é da ordem dos -70 mV (0,07 Volts negativos); diz-se então que a célula está polarizada. Quando passa um impulso pela célula, o interior desta atinge momentaneamente uma diferença de potencial de cerca de +30 mV (0,03 Volts positivos) relativamente ao exterior; então diz-se que a célula ficou despolarizada. Na passagem de -70 mV para +30 mV, a variação total de potencial é da ordem dos 100 mV, que é uma barbaridade, porque a membrana é extremamente fina. De facto, a membrana é sujeita a uma diferença de potencial tão extrema, que esta equivale à aplicação de vários milhares de Volts entre os dois lados de uma folha de papel! Se aplicássemos esta diferença de potencial a uma folha de papel, ela não resistiria, romper-se-ia instantâneamente e o papel acabaria por se desfazer em fumo. Pois uma membrana celular tem características dielétricas (isoladoras) tais, que é capaz de resistir sem se danificar!

A amplitude dos impulsos transmitidos por um neurónio biológico não é importante para a informação por eles veiculada. O que é importante é a frequência dos impulsos, isto é, a quantidade de impulsos que passam pelo neurónio num determinado período de tempo. Forneçamos um exemplo do que acontece: se quisermos agarrar um objeto com força, o nosso cérebro irá emitir uma sequência de impulsos dirigida aos músculos da nossa mão, para que estes fiquem contraídos e mantenham o objeto agarrado; a partir do momento em que o cérebro deixar de emitir impulsos aos músculos, estes ficam relaxados e o objeto cai ao chão. Outro exemplo: um clarão luminoso irá levar o nervo ótico a enviar para o cérebro uma sequência de impulsos; o cérebro entenderá então que está a ver um clarão; assim que o nervo ótico deixar de enviar impulsos, o cérebro perceberá que se restabeleceu a escuridão.

Para os sinais usados nas redes neuronais artificiais, por outro lado, é a amplitude dos sinais que é importante e não a sua frequência. Na generalidade dos sistemas eletrónicos digitais, a amplitude dos sinais só pode tomar o valor 0 (habitualmente correspondente a 0 Volts) e o valor 1 (habitualmente correspondente à tensão com que o circuito é alimentado, que pode ser de 3V, 2V, 5V ou outro valor). Nas redes neuronais artificiais, porém, os sinais veiculados através das sinapses (que ligam dois neurónios de diferentes camadas) não só podem tomar os valores 0 e 1, como podem tomar qualquer valor intermédio, por exemplo 0,7. Este valor, a que se convencionou chamar "peso", é um valor atribuído pelo próprio neurónio a cada um dos sinais que receber. Quanto maior for o peso, maior será a importância do sinal. Se o peso atribuído for bastante pequeno, isso quererá dizer que o sinal terá uma influência desprezível sobre o resultado e por isso poderá ser descartado. Um sinal que estiver abaixo de um dado limiar, portanto, passa automaticamente a zero e não conta para nada.

De um modo geral e como ponto de partida, os neurónios da camada de entrada só poderão tomar os valores 0 ou 1 (que podem ser arbitrários ou não), os quais virão a ser modificados a jusante para valores intermédios com a atribuição de pesos. Os sinais presentes nos neurónios da camada de saída também são arredondados para 0 ou 1, conforme estiverem abaixo ou acima de um dado limiar, quanto mais não seja porque a rede neuronal está inserida num sistema digital.

Uma rede neuronal extremamente simples, com uma camada de entrada contendo três neurónios, uma camada escondida também com três neurónios e uma camada de saída só com um neurónio. Às sinapses, que estão representadas por setas, são atribuidos os respetivos pesos, de w1 a w9 (Desenho de autor desconhecido)
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Antes de poderem desempenhar uma função útil, as redes neuronais artificiais passam por uma série de sessões de treinos, até que os seus resultados correspondam ao que se pretende delas, como o reconhecimento de padrões, por exemplo. No fim dos treinos, os neurónios memorizam os valores dos pesos que passarão a atribuir a cada sinapse. Não vamos entrar em pormenores sobre o modo como a rede chegou a estes resultados (em rigor, ninguém consegue saber o que realmente se passa nas camadas escondidas), nem sobre os tipos de arquitetura que uma rede pode tomar, pois tudo depende da utilização que se quiser fazer da rede. Dizemos apenas que, após as sessões de treinos, a rede passou a "saber" como deverá processar a informação nova que a partir daí lhe for apresentada.

Nós vivemos na era da informação. Os sistemas de inteligência artificial que atualmente existem são mastodônticas redes neuronais. Além disso, memorizam uma aterradora quantidade de dados, que são imagens (fixas e em movimento), textos, sons e tudo o mais que for considerado potencialmente útil ou vantajoso do ponto de vista económico. Tudo isto é reunido e memorizado em data centres, com vista a ser trabalhado pela IA, com resultados que são tão surpreendentes que até parecem milagre. É o que fazem o popular ChatGPT e os sistemas de IA da Google, da Microsoft, da Apple, da Meta, etc. Estamos a falar de sistemas que enchem edifícios e edifícios inteiros de equipamento e que consomem uma quantidade astronómica de energia. Só para dar uma ideia do gigantismo que a IA já atingiu, lembremos que a Google pretende construir pequenas centrais nucleares, só para alimentar a sua insaciável IA! Este crescimento não pode continuar indefinidamente. Um limite terá que aparecer mais tarde ou mais cedo, dê lá por onde der.

A inteligência artificial está na moda, sem dúvida. As pessoas recorrem a ela para os mais diversos fins e sentem-se satisfeitíssimas com os resultado obtidos. A presente euforia em relação à IA leva-as a julgar que estão na presença de uma forma de inteligência infalível e que tem respostas para tudo, porque acham que os computadores não erram. Puro engano. A IA é, pelo menos, tão falível como os seres humanos que a criaram. Ela até sofre, por vezes, de "alucinações" e debita respostas disparatadas, sem pés nem cabeça. Não se pode confiar cegamente na inteligência artificial. É preciso manter um espírito crítico, sempre e em todas as circunstâncias. No dia em que a humanidade deixar de pensar, porque julga que as máquinas pensam melhor do que ela, transformar-se-á numa imensa multidão de seres estúpidos, sem moral, sem honra e sem dignidade. Eu sei que isso não vai acontecer, mas... mais vale prevenir do que remediar.

09 outubro 2024

Concerto para Violino n.º 1 de Max Bruch


Concerto para Violino e Orquestra N.º 1 em Sol Menor, op. 26, do compositor alemão Max Bruch (1838–1920), pelo violinista Yehudi Menuhin (1916–1999) e a Orquestra Sinfónica da Rádio de Berlim dirigida pelo maestro Ferenc Fricsay (1914–1963)

07 outubro 2024

Kalinka


Kalinka, canção russa da autoria de Ivan Larionov, pelo tenor Yevgeny Belyaev e o Coro Alexandrov do Exército Vermelho, da União Soviética

Tal como não era legítimo identificar o povo português com o regime do ditador Salazar, também não é legítimo identificar o povo russo com o regime do ditador Putin. Os tiranos passam e os povos ficam.

Kalinka é o nome em russo de um arbusto ornamental, que em português se chama folhado ou viburno.


Kalinka e Raz Kalinka, duas danças russas pelo Grupo Infantil de Dança Folclórica Kalinka, de Moscovo

05 outubro 2024

A Cruz de Portugal


Num dos seus lados, a Cruz de Portugal mostra Cristo crucificado

Cruz de Portugal é o nome de um cruzeiro existente em Silves, junto da saída da cidade no sentido de São Bartolomeu de Messines. Está classificado como monumento nacional e é um cruzeiro cheio de mistérios.

Praticamente nada se sabe a respeito da Cruz de Portugal que, a avaliar pelo seu estilo gótico flamejante, deve datar do séc. XV. Este cruzeiro é feito de calcário branco, que é uma rocha que não existe em todo o Algarve e muito menos em Silves, onde a pedra é vermelha, como se pode claramente ver no castelo ou na Sé da cidade. Então, das duas uma: ou a Cruz de Portugal foi levada já feita para Silves, ou foi levada para Silves a pedra em bruto, a fim de ser trabalhada no local. De qualquer modo, não se sabe de onde é que foi levada a pedra ou a cruz já feita, não se sabe quem foi que a transportou para Silves, não se sabe quem foi que a esculpiu, não se sabe quem foi que a encomendou nem para quê, não se sabe, sequer, por que razão lhe puseram o nome de Cruz de Portugal. Podiam chamar-lhe Cruz do Algarve, por exemplo, mas não, chamam-lhe Cruz de Portugal. Uma cruz cheia de mistérios.

O estado em que se encontra a Cruz de Portugal é lastimável. A passagem dos séculos deixaram-lhe marcas profundas, que nunca mais vão poder ser apagadas. Mesmo assim, ela ali está em Silves, ao ar livre, protegida por um simples telheiro e um simples gradeamento, que afinal nada protegem. Até admira que a cruz ainda não tenha sido alvo de algum ato de vandalismo. Se um dia tal acontecer, então já será tarde demais.


A Cruz de Portugal vista do lado contrário ao de Cristo crucificado, representando Nossa Senhora com Jesus ao morto ao colo, uma Pietà (Foto de autor desconhecido)

03 outubro 2024

Uma sonatina de Luís Costa


Sonatina para Flauta e Piano, op. 23, do compositor português Luís Costa (1874–1960), pelo flautista Luís Meireles e o pianista Eduardo Resende, também portugueses

30 setembro 2024

O Jovem Vitorioso


O Jovem Vitorioso, estátua grega de bronze com cobre embutido, datada de 300 a 100 A.C., de autor desconhecido. Esta estátua representa provavelmente um jovem atleta acabado de ser coroado como vencedor duma prova nos Jogos Olímpicos da Antiguidade. J. Paul Getty Museum, Villa Collection, Malibu, Califórnia, Estados Unidos da América
(Clicar na imagem para ampliá-la)

28 setembro 2024

Guerra

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da vida com os sentidos.

Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.

Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos
de gritar contra os muros que há na Terra.

São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.

Grandes barcos os levam, lentamente…

Natércia Freire (1919–2004)


Transporte por barco de militares portugueses para a Guerra Colonial (Foto de autor desconhecido)

25 setembro 2024

O índio — ontem, hoje e amanhã


Trecho de um filme realizado em 1953 por Jorge Ferreira, sobre os primeiros contactos, estabelecidos pelos irmãos indigenistas brasileiros Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas, com o povo Txucarramãe, que é um dos povos que fazem parte do grupo étnico Kayapó e que vive no sul do estado do Pará, Brasil

23 setembro 2024

Naturalidade

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.

Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável… Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli (1932–1997), poeta moçambicano branco


Veleiro tradicional. Inhambane, Moçambique (Foto: Karina Weijers)

21 setembro 2024

Paul Gonsalves, uma lenda do jazz


Paul Gonsalves (1920–1974), saxofonista norte-americano de ascendência cabo-verdiana (Foto de autor desconhecido)

Paul Gonsalves (escrito com S e não com Ç, porque o Ç não existe na língua inglesa) foi um saxofonista norte-americano, filho de um casal de imigrantes de Cabo Verde. Nasceu em Brockton, Massachussets, no ano de 1920, e faleceu em Londres, Inglaterra, em 1974.

Paul Gonsalves tocava na orquestra de jazz de Duke Ellington, quando protagonizou um dos mais galvanizadores solos de saxofone de toda a história do jazz. Aconteceu no Festival de Jazz de Newport, em Rhode Island, no ano de 1956, num tempo em que as grandes orquestras de jazz (as chamadas big bands) iam desaparecendo umas atrás das outras, porque os gostos do público tinham mudado e a manutenção de orquestras com muitos músicos se tornou economicamente insustentável. Perante estas condições, a grande orquestra de Duke Ellington também estava condenada a desaparecer a curto prazo. Foi então que Paul Gonsalves protagonizou em Newport um extraordinário solo de saxofone tenor, que empolgou o público até ao delírio e salvou a orquestra e a própria carreira de Duke Ellington, que afirmou: «Nasci em 1956, no Festival de Newport».

No vídeo que se segue, o solo de Paul Gonsalves começa aos 4 minutos e 5 segundos e termina aos 10 minutos e 25 segundos. Salvo algumas imagens estáticas, que correspondem a fotografias feitas na ocasião, as imagens do vídeo não se referem à atuação da orquestra no Festival de Newport de 1956, porque esta atuação não foi filmada. Só existem gravações sonoras e fotografias.


Diminuendo and Crescendo in Blue, de Duke Ellington, pelo saxofonista Paul Gonsalves e a Orquestra de Duke Ellington, ao vivo no Festival de Jazz de Newport em 1956