O quissange
Em Angola, este instrumento é chamado quissange, palavra derivada do quimbundo kisanji. Em Moçambique, ele tem o nome de mbira. Noutras partes de África recebe a designação de sanza, likembe e outros nomes ainda. É um instrumento tocado numa grande parte de África ao Sul do Sahara.
A estima e o gosto popular que testemunhei em Angola por este instrumento tradicional atinge o nível de uma verdadeira ternura. Para o camponês angolano e (quero crer) para o camponês africano em geral, o quissange não é um instrumento qualquer; é um amigo, um confidente, um companheiro, a quem ele confia as suas emoções, os seus sentimentos, as suas esperanças, os seus desejos, as suas mágoas.
O quissange tem em geral um som relativamente fraco. Não é, por isso, um instrumento que se costume tocar em conjunto com outros instrumentos, porque estes abafariam o seu som. É um instrumento de uso individual, que o africano toca quase sempre para si mesmo. Quando sente a tristeza ou a solidão, ou apenas para passar o tempo, o camponês africano pega no seu quissange e dedilha-o, cantando baixinho. Comunica assim ao quissange aquilo que lhe vai na alma e este faz-lhe companhia, transmitindo-lhe o seu som solidário. Como é um instrumento portátil, o quissange também pode ser tocado em viagem, para combater a solidão ou a saudade. É um amigo fiel, sempre pronto a escutar o seu tocador sem queixumes nem azedume. Na primeira gravação que apresento mais abaixo, pode-se ouvir o músico angolano Mário Rui Silva tocar um quissange e cantar muito baixinho, com uma voz quase imperceptível. É assim mesmo que o quissange é habitualmente usado. Isto mesmo é sugerido pela imagem que se segue e que é um desenho da autoria de Neves e Sousa.
Como se pode ver na fotografia do topo, o quissange é constituído essencialmente por uma base, à qual estão presas umas palhetas. É tocado premindo as palhetas com os polegares e deslizando estes para baixo ou para os lados, de forma a que as palhetas se soltem de repente e entrem assim em vibração.
A base dos quissanges é geralmente de madeira, que é quase sempre maciça, mas que pode ser também escavada de forma a conter uma cavidade de ressonância. As palhetas quase nunca são em número inferior a sete, são afinadas de acordo com uma escala tradicional, que é habitualmente pentatónica ou tritónica, e são quase sempre de ferro. Habitualmente existem umas argolas também de ferro presas às palhetas. Estas argolas têm como finalidade chocalhar em uníssono com a vibração das palhetas. Por vezes, o quissange propriamente dito é preso a uma calote de cabaça, para amplificar o som do instrumento, como se pode ver na fotografia que publico mais abaixo.
Se houver acesso a bambus, é possível fazer um quissange de bambu em dois minutos apenas. Para construi-lo, parte-se um pedaço de bambu em lascas e entrelaçam-se quase todas as lascas umas nas outras, cruzando-as, de forma a constituirem uma base quadrangular. A esta base prendem-se as lascas que sobrarem, de maneira a que venham a desempenhar o papel de palhetas. Toca-se como qualquer quissange. O som, embora fraco, é belíssimo. A elasticidade natural do bambu confere às palhetas um som suave e extraordinariamente melodioso.
Há muitos anos, vi num programa de televisão a demonstração de como se faz um quissange, em que as palhetas eram constituídas por pedaços de varetas de guarda-chuva! Se a memória não me falha, quem fez esse quissange foi Raul Indipwo, do Duo Ouro Negro, que tocou o instrumento depois de o ter feito.
Como disse, os materiais de que são feitos os quissanges são quase sempre a madeira, para a base, e o ferro, para as palhetas e as argolas. O ferro que os ferreiros africanos fazem é de excelente qualidade. A madeira pode ser obtida a partir de diversas árvores e é frequentemente decorada com motivos entalhados. Estes motivos são predominantemente geométricos, mas podem ser também figuras estilizadas de acordo com a tradição local.
Durante a minha estadia em Angola encontrei muitos quissanges, dos mais variados tamanhos e com sonoridades diversas. Os mais belos que vi eram, sem dúvida nenhuma, originários da actual República Democrática do Congo, antiga República do Zaire. Não consegui encontrar na Web imagens de quissanges que fossem tão belos como alguns dos instrumentos congoleses que tive nas mãos.
Escutem-se a seguir três gravações, que nos poderão dar a sentir um pouco da alma africana expressa através do quissange, que é talvez o mais africano dos instrumentos musicais.
Mário Rui Silva, de Angola, tocando quissange e cantando baixinho
Quissange tocado por Dumisani Mariare, do Zimbabwe
Música shona de quissange, também do Zimbabwe
Tocador de quissange de etnia luba. O instrumento está preso a uma cabaça, que serve como caixa de ressonância. (Foto retirada de Diamang)
Comentários: 6
Excelente informação, Denudado.
Há uns poucos anos visitei em Lisboa no Museu de Etnologia uma exposição chamada "Na ponta dos dedos", justamente sobre os lamelofones de Angola e Moçambique.
AQUI está um texto muito interessante referente a essa exposição que foi feita com base na longa investigação do etnomusicólogo austríaco Gerhard Kubik. Já agora, deixa-me aqui partilhar uma experiência engraçada que eu tive há muitos anos atrás com esta distinta figura da etnomusicologia africana: Na é poca a minha mãe era directora do Instituto de Línguas Nacionais de Angola. Estavamos nos anos 80 e o Kubik visitou-a no âmbito de uma pesquisa linguística. Então, ela convidou-o para almoçar em nossa casa. Qual não foi o meu espanto quando ele - já estávamos sentados à mesa - abre a sua sacola de pano de onde tira um kisanji. Tira as sandálias, ajoelha-se à minha frente, sentado sobre os calcanhares e diz: "- Antes de almoçar vou dedicar uma música à sua filha que trabalha em dança". (Lembro-me como se fosse hoje). E começa então a tocar e cantar uma bela melodia em língua gangela. Foi um momento que nunca mais esqueci, nem ele, pois há tempos liguei para ele para lhe pedir ajuda para a minha tese e ele lembrava-se de mim e também do episódio do kisanji.
Para terminar, queria dize-te que por vezes a mesma palavra entre grupos etno-linguísticos distintos, refere-se também à marimba ou malimba (instrumento que tem também outras designações).
No Brasil encontrei para o kisanji a designação de kalimba, com um formato ligeiramente diferente, mas sempre com a peça principal formada pelas lâminas metálicas.
Sobre esta bela foto de um tocador / bailarino luba, lembro-me de também eu ter sido por ela atraída, há já um bom tempo atrás. Aqui.
Beijo e bom fim de semana.
Amiga Phwo, muito obrigado pelo link para o texto sobre os lamelofones. O texto é realmente muito interessante. A exposição também deve ter sido muito interessante. Tenho pena de não a ter visitado.
Quanto ao facto de o nome mbira ser por vezes aplicado à marimba, julgo que eu próprio já ouvi isso. Creio que foi na série de programas "Danças e Instrumentos Tradicionais", de Moçambique, que a RTP África transmitiu ainda recentemente. Um ou dois dos entrevistados na série terão chamado mbira à marimba, embora o apresentador do programa sempre tivesse chamado timbila à marimba e mbira ao quissange. Provavelmente, mbira será o radical de timbila e as duas palavras, no fundo, serão equivalentes.
Já que falei nas marimbas ou timbilas, aqui te deixo uma gravação de uma orquestra de marimbas de Moçambique. As orquestras de marimbas do povo chopi são famosas, sobretudo as da localidade de Zavala.
Belíssimo o som desta orquestra de marimbas. Ainda há dias, falando com um colega moçambicano sobre estas orquestras, ele me dizia haver mais.
De repente lembrei-me de uma outra designação para este instrumento: njimba (em Ucokwe).
Obrigada por estes momentos, sem outras pretensões que não sejam a partilha sincera.
Bjs.
saber um pouco da cultura angolana e muito bom.gostei de saber um pouco desse instrumento
Saberia me dizer se existe algum mestre que confecciona kalimbas no Brasil? Grato
Lamento muito, mas não sei. Vivo em Portugal. Deve haver bastantes construtores de kalimbas no Brasil, sobretudo na Baía, mas não conheço nenhum. Grato pela sua visita.
Enviar um comentário