Com o título em epígrafe, publiquei há dias um artigo que reproduzia, tão fielmente quanto possível, a narração de um diálogo ocorrido entre um guerrilheiro que foi feito prisioneiro e o comandante da força que o capturou, assim como a profunda perturbação que este diálogo provocou no espírito deste último.
Logo de seguida, retirei o artigo do blogue, porque achei (e continuo a achar) que não tenho o direito de expor outra pessoa em público sem a sua autorização, neste caso o comandante da força captora. Esta pessoa está viva e certamente não gostará de se ver assim exposta na Internet.
Continuo tentado, porém, a dar a conhecer a atitude exibida pelo guerrilheiro capturado. Para tal, eu poderia reescrever a narrativa, dando-lhe uma forma mais literária, digamos, em vez de tentar reproduzi-la literalmente, como fiz inicialmente. Mas não a reescrevo porque não tenho dotes de escritor. A reescrita resultaria de certeza num texto medíocre e, sobretudo, pouco convincente.
O guerrilheiro Didi existiu mesmo. A sua captura aconteceu mesmo. O diálogo ocorreu mesmo. O epílogo dos acontecimentos foi mesmo o que foi contado. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso, porque quem narrou estava demasiado abalado para poder inventar o que quer que fosse. Acabei por decidir publicar apenas alguns extratos da narrativa original, isto é, os extratos que não exponham o narrador, embora isso retire impacto à narrativa. Os extratos são os que se seguem.
Era um dia semelhante a muitos outros, num quartel do mato do Exército Português, algures em Angola antes de 1974. A dado momento, chegou uma coluna militar vinda de um outro quartel, comandada por um alferes miliciano. Depois de ter tratado dos assuntos que ali o haviam trazido, o alferes visitante sentou-se numa cadeira, a fim de descansar, matar a sede e conviver um pouco com dois ou três camaradas seus da companhia de caçadores ali aquartelada.
Com um ar extraordinariamente abatido, como nunca lhe tinha sido visto antes, o alferes visitante falou assim:
«Na última operação, o meu pelotão capturou um guerrilheiro. Vivo e armado. Foi trazido à minha presença e fiz-lhe um primeiro interrogatório.
«Comecei por lhe pedir para se identificar. Disse-me que era o guerrilheiro Didi, da 1ª Região Político-Militar do MPLA, de seu nome próprio fulano de tal. Perguntei-lhe quem era o seu comandante. Respondeu-me que era o Jacob Caetano "Monstro Imortal". Fiz-lhe mais algumas perguntas sobre o MPLA e sobre a guerra em geral. Respondeu-me só a algumas, não tendo revelado nada que nós já não soubéssemos. A outras perguntas recusou-se a responder e eu não insisti. A minha intenção, naquele momento, não era extrair-lhe informações, mas sim saber a razão pela qual ele nos combatia. Foi isso o que lhe perguntei a seguir.
«Com ar sereno e olhar firme, o Didi respondeu-me que combatia a opressão colonial, a miséria, a fome, o analfabetismo, o racismo, os maus tratos e as humilhações que os angolanos sofrem todos os dias na sua própria terra.
«(...) o Didi falou-me com ar calmo e de cabeça levantada. Tanto, que cheguei a duvidar que ele estivesse consciente da verdadeira situação em que se encontrava. Por isso lhe perguntei:
«-- Você imagina qual é o destino que lhe poderá estar reservado?
«-- Acho que sim, -- respondeu-me ele -- certamente vou ser torturado e vou acabar por ser morto.
«Fiquei impressionado com a resposta e não pude deixar de lhe notar:
«-- E você diz isso com essa serenidade toda... Não sente medo?
«O Didi respondeu-me:
«-- Claro que sinto medo. Estou morto de medo. Mas vou fazer o quê? Chorar? O que é que eu ganho com isso?
«Perguntei-lhe ainda:
«-- Quer dizer, então, que está pronto para morrer?
«E o Didi respondeu, sem vacilar, sem uma tremura na voz:
«-- Estou pronto para morrer. Morro pela liberdade do meu povo.»
Chegado a este ponto da sua narrativa, o alferes visitante contou que, apesar do turbilhão de sentimentos e de emoções de que foi tomado, ordenou que o guerrilheiro fosse levado prisioneiro para o quartel, onde o capitão mandou que fosse entregue à PIDE/DGS. Terrivelmente abatido, o alferes visitante exclamou:
«Tive na minha frente um herói! E eu permiti que ele fosse entregue à DGS. Sinto-me o mais desprezível dos vermes. Tenho nojo de mim mesmo.»
E rematou em voz baixa:
«A esta hora o Didi já deve estar morto.»