24 março 2011

Nanuk, o Esquimó

Nyla, esposa de Nanuk

Há muitos anos, assisti aqui no Porto a um ciclo de cinema mudo que me permitiu travar conhecimento com algumas das maiores obras-primas de toda a história do cinema. Vi então filmes cuja qualidade nunca foi ultrapassada até hoje, apesar da avançada tecnologia digital de que a indústria do cinema dispõe agora. A tecnologia, por mais avançada que possa ser, não consegue nunca substituir a criatividade, que até ver ainda só é uma característica do ser humano.

Entre os filmes apresentados no ciclo referido, contava-se Nanuk, o Esquimó (em inglês Nanook of the North), que foi realizado em 1922 por Robert J. Flaherty. Trata-se de um documentário sobre a vida de um caçador inuit (antigamente chamado esquimó) do Ártico Canadiano, a sua família e os seus companheiros.

O filme Nanuk, o Esquimó é considerado o primeiro documentário antropológico em longa metragem da história do cinema. O resultado é verdadeiramente brilhante, apesar de muitas das suas passagens terem sido encenadas, em vez de terem sido filmadas ao vivo. Não se pode esquecer que o equipamento cinematográfico daquele tempo era demasiado grande e pesado para que se pudessem fazer filmes do tipo cinéma vérité. Mesmo assim, há que reconhecer que o resultado é extraordinariamente convincente e que, no fundo, o realizador não traiu o seu propósito de dar a conhecer a duríssima vida de uma comunidade que vive sempre com a morte a rondar por perto, num dos ambientes mais duros e implacáveis a que a raça humana alguma vez conseguiu adaptar-se.

Para aguçar o apetite, observe o seguinte fragmento do filme e veja o que é que Nanuk traz dentro da sua canoa.




O filme completo, com legendas em inglês, pode ser visto aqui:

https://archive.org/details/NanookOfTheNorth-HD

21 março 2011

O guerrilheiro Didi


Com o título em epígrafe, publiquei há dias um artigo que reproduzia, tão fielmente quanto possível, a narração de um diálogo ocorrido entre um guerrilheiro que foi feito prisioneiro e o comandante da força que o capturou, assim como a profunda perturbação que este diálogo provocou no espírito deste último.

Logo de seguida, retirei o artigo do blogue, porque achei (e continuo a achar) que não tenho o direito de expor outra pessoa em público sem a sua autorização, neste caso o comandante da força captora. Esta pessoa está viva e certamente não gostará de se ver assim exposta na Internet.

Continuo tentado, porém, a dar a conhecer a atitude exibida pelo guerrilheiro capturado. Para tal, eu poderia reescrever a narrativa, dando-lhe uma forma mais literária, digamos, em vez de tentar reproduzi-la literalmente, como fiz inicialmente. Mas não a reescrevo porque não tenho dotes de escritor. A reescrita resultaria de certeza num texto medíocre e, sobretudo, pouco convincente.

O guerrilheiro Didi existiu mesmo. A sua captura aconteceu mesmo. O diálogo ocorreu mesmo. O epílogo dos acontecimentos foi mesmo o que foi contado. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso, porque quem narrou estava demasiado abalado para poder inventar o que quer que fosse. Acabei por decidir publicar apenas alguns extratos da narrativa original, isto é, os extratos que não exponham o narrador, embora isso retire impacto à narrativa. Os extratos são os que se seguem.



Era um dia semelhante a muitos outros, num quartel do mato do Exército Português, algures em Angola antes de 1974. A dado momento, chegou uma coluna militar vinda de um outro quartel, comandada por um alferes miliciano. Depois de ter tratado dos assuntos que ali o haviam trazido, o alferes visitante sentou-se numa cadeira, a fim de descansar, matar a sede e conviver um pouco com dois ou três camaradas seus da companhia de caçadores ali aquartelada.

Com um ar extraordinariamente abatido, como nunca lhe tinha sido visto antes, o alferes visitante falou assim:

«Na última operação, o meu pelotão capturou um guerrilheiro. Vivo e armado. Foi trazido à minha presença e fiz-lhe um primeiro interrogatório.

«Comecei por lhe pedir para se identificar. Disse-me que era o guerrilheiro Didi, da 1ª Região Político-Militar do MPLA, de seu nome próprio fulano de tal. Perguntei-lhe quem era o seu comandante. Respondeu-me que era o Jacob Caetano "Monstro Imortal". Fiz-lhe mais algumas perguntas sobre o MPLA e sobre a guerra em geral. Respondeu-me só a algumas, não tendo revelado nada que nós já não soubéssemos. A outras perguntas recusou-se a responder e eu não insisti. A minha intenção, naquele momento, não era extrair-lhe informações, mas sim saber a razão pela qual ele nos combatia. Foi isso o que lhe perguntei a seguir.

«Com ar sereno e olhar firme, o Didi respondeu-me que combatia a opressão colonial, a miséria, a fome, o analfabetismo, o racismo, os maus tratos e as humilhações que os angolanos sofrem todos os dias na sua própria terra.

«(...) o Didi falou-me com ar calmo e de cabeça levantada. Tanto, que cheguei a duvidar que ele estivesse consciente da verdadeira situação em que se encontrava. Por isso lhe perguntei:

«-- Você imagina qual é o destino que lhe poderá estar reservado?

«-- Acho que sim, -- respondeu-me ele -- certamente vou ser torturado e vou acabar por ser morto.

«Fiquei impressionado com a resposta e não pude deixar de lhe notar:

«-- E você diz isso com essa serenidade toda... Não sente medo?

«O Didi respondeu-me:

«-- Claro que sinto medo. Estou morto de medo. Mas vou fazer o quê? Chorar? O que é que eu ganho com isso?

«Perguntei-lhe ainda:

«-- Quer dizer, então, que está pronto para morrer?

«E o Didi respondeu, sem vacilar, sem uma tremura na voz:

«-- Estou pronto para morrer. Morro pela liberdade do meu povo.»

Chegado a este ponto da sua narrativa, o alferes visitante contou que, apesar do turbilhão de sentimentos e de emoções de que foi tomado, ordenou que o guerrilheiro fosse levado prisioneiro para o quartel, onde o capitão mandou que fosse entregue à PIDE/DGS. Terrivelmente abatido, o alferes visitante exclamou:

«Tive na minha frente um herói! E eu permiti que ele fosse entregue à DGS. Sinto-me o mais desprezível dos vermes. Tenho nojo de mim mesmo.»

E rematou em voz baixa:

«A esta hora o Didi já deve estar morto.»

20 março 2011

Sê bem-vinda, primavera

19 março 2011

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

António Gedeão (1906-1997), in Teatro do Mundo


(Fotograma do filme Ouvrières du Monde, de Marie-France Collard)

10 março 2011

O Pulo do Lobo

Início da cascata do Pulo do Lobo, no Rio Guadiana (Foto: Homem de Campos)

O Pulo do Lobo é uma bela e surpreendente cascata existente no Rio Guadiana, situada mais ou menos no local em que este rio entra no concelho de Mértola. O rio, que até aí vinha fluindo pachorrento, por entre as suaves ondulações que moldam a paisagem alentejana, entra subitamente numa zona rochosa e desnivelada. O rio é comprimido pela rocha e começa a saltar, de desnível em desnível, até passar todo ele por um estrangulamento que tem apenas um par de metros de largura, que é o Pulo do Lobo propriamente dito.

Passado o estrangulamento, o rio dá mais uns saltos e continua o seu curso, serpenteando através de um profundo canal de formas caprichosas, que a força das suas águas foi cavando ao longo dos tempos. É a chamada Corredoura, que se estende quase até à vila de Mértola.

O Pulo do Lobo visto do alto, seguido da Corredoura, à esquerda (Foto: Modesto de Mota)

O que mais atrai no Pulo do Lobo não é o desnível total da cascata, que é só de cerca de 15 a 20 metros. É a beleza das formas criadas na rocha pela força das águas. É a própria força das águas, em épocas em que o rio estiver caudaloso, que jorram em jatos fortíssimos e borbulham furiosamente. É a surpresa de, ao chegarmos, encontrarmos de repente um fenómeno cuja existência nada -- absolutamente nada -- faz prever na paisagem envolvente. É a beleza desta mesma paisagem alentejana, de montes, pastos e trigais. É o ar perfumado pelas humildes flores do campo. É o céu vibrantemente azul que tudo cobre. É, enfim, o facto de estarmos ali e desejarmos que aquele momento mágico não acabe nunca mais.

Mas o momento mágico tem de acabar. Mais tarde ou mais cedo temos de nos ir embora, com a nossa alma purificada pelo que ali sentimos e com o nosso corpo gritando de repente um apetite aberto pelo perfume do rosmaninho e do alecrim. Ansiamos almoçar, mas não uma comida qualquer. Ansiamos um almoço que seja o complemento da felicidade que acabámos de sentir naquele local. O que ansiamos almoçar, afinal, é um prato da gastronomia alentejana, que é única e incomparável. Não há outra gastronomia assim no mundo.

Proponho que se vá almoçar a Serpa, de preferência no coração desta vila. E proponho que se coma, por exemplo, um ensopado de borrego, daqueles a sério, confecionado à maneira dos ganhões do Alentejo e regado por um tinto local (também pode ser de Pias), que é um néctar dos deuses. Como entrada, ou então à sobremesa ou em qualquer outra ocasião, não se deve deixar de saborear o queijo de Serpa, acompanhado por loiro pão feito de trigo, também alentejano. Será um dia em cheio.

Pormenor da cascata do Pulo do Lobo (Foto: José Dionísio Ruivo Neca)

08 março 2011

Carnaval


Manhã de Carnaval, de Luis Bonfá e António Maria, por Nara Leão

04 março 2011

A Morte do Cisne

A bailarina russa Anna Pavlova (1881-1931), no bailado A Morte do Cisne

A Morte do Cisne é um curto bailado a solo, baseado no 13º andamento, "O Cisne", da suite O Carnaval dos Animais, que o compositor francês Camille Saint-Saëns compôs em 1886. O bailado foi criado pelo coreógrafo e bailarino russo Mikhail Fokine, a pedido da bailarina, também russa, Anna Pavlova, e foi estreado em 1905. Anna Pavlova dançou-o cerca de 4000 vezes! No vídeo que se segue, podemos vê-la dançar este bailado, tal como ficou registado em filme no ano de 1925. A música foi acrescentada posteriormente, já que o filme era mudo. Nele, Anna Pavlova sugere a agonia trágica de um cisne ferido de morte.



Muitas outras bailarinas interpretaram este bailado ao longo dos anos. Entre elas esteve outra russa, chamada Maya Plissetskaya, que o dançou praticamente até ao ano de 1990. Maya Plissetskaya executou-o de uma forma muito mais fluida e suave do que Anna Pavlova. Ao dramatismo que esta bailarina emprestava à peça, Maya Plissetskaya contrapôs o lirismo melancólico de um cisne que vai morrendo pouco a pouco. É isto o que se pode observar no vídeo que se segue, que nos mostra Maya Plissetskaya.



Recebi por email uma forte recomendação para visualizar no Youtube um determinado vídeo, que mostra A Morte do Cisne interpretada por um jovem brasileiro de 20 anos, chamado John Lennon da Silva (o padrinho dele merecia levar um tiro). No vídeo, o John Lennon brasileiro dança A Morte do Cisne como um jovem urbano que é, aplicando técnicas da street dance. O brilhante resultado é como se pode ver a seguir.