30 agosto 2020

Sonata "Ao Luar", de Beethoven


Sonata para Piano N.º 14 em dó sustenido menor, Op. 27, N.º 2 ("Ao Luar"), de Ludwig van Beethoven (1770–1827), pelo pianista chileno Claudio Arrau (1903–1991)

24 agosto 2020

Um poema do bispo D. Pedro Casaldáliga





A PAZ INQUIETA

Dá-nos, Senhor, aquela PAZ inquieta
Que denuncia a PAZ dos cemitérios
E a PAZ dos lucros fartos.

Dá-nos a PAZ que luta pela PAZ!
A PAZ que nos sacode
Com a urgência do Reino.
A PAZ que nos invade,
Com o vento do Espírito,
A rotina e o medo,
O sossego das praias
E a oração de refúgio.
A PAZ das armas rotas
Na derrota das armas.
A PAZ do pão da fome de justiça,
A PAZ da liberdade conquistada,
A PAZ que se faz “nossa”
Sem cercas nem fronteiras,
Que é tanto “Shalom” como “Salam”,
Perdão, retorno, abraço…
Dá-nos a tua PAZ,
Essa PAZ marginal que soletra em Belém
E agoniza na Cruz
E triunfa na Páscoa.

Dá-nos, Senhor, aquela PAZ inquieta,
Que não nos deixa em PAZ!

Pedro Casaldáliga (1928–2020), missionário catalão, bispo em S. Félix do Araguaia, Brasil, e um dos expoentes da Teologia da Libertação

17 agosto 2020

Crenças e superstições (que já não há?)


Ferradura pregada numa porta (Foto: Rafael Carvalho)


Para tirar as sardas — trovisco macho, sangue de toupeira, unto de cobra ribeirinha e vinagre puro.

Amassa-se tudo e põe-se na cara, ao deitar na cama, três noites a fio, mas só se lava a cara no fim dos três dias. É «remédio santo».


(…)


Remédio para a dor de cabeça — alecrim, rosmaninho, arruda, politaira, aipo, mentrastos e segurelha. É tudo bem pisado e posto na cova-do-ladrão ao deitar, dizendo-se em seguida:

Com Deus me deito,
Aqui neste leito,
Deito-me doente
E levanto-me escorreito.
Em louvor de Santa Maria,
Paz téco, aleluia.
— Amen.

Como aborrecer o vinho — pega-se numa cobra viva e afoga-se em meia canada de vinho. Se não for tempo de cobras, também remedeia uma enguia, mas a cobra é melhor.

Quando o bêbedo pedir vinho, dá-se-lhe deste. Ao cabo de 24 horas, nunca mais torna a fazê-lo.

Para o pão levedar depressa — pega-se nas calças de um homem (que não use ceroulas), viram-se do avesso e põem-se sobre a massa, com um rosário bento em cima. (De notar a analogia entre o símbolo da potência masculina e o crescimento da massa.)

Para tirar o pano da cara — esfrega-se bem a cara com cueiros ainda húmidos.

Para conservar a vista — esfrega-se os olhos com ovos ainda quentes e pouco limpos.

Para curar ougamentos1 — come-se atrás da porta um bolo quente, com azeite e alho, e enterra-se o que sobrar. Aliás, fica ougado o animal que o comer.

Para preservar do diabo as casas — prega-se em cada porta, postigo e janela, uma cruzinha de trovisco macho.

Mas neste arsenal, existem igualmente os acautelatórios. E assim, quem quiser «zombar de bruxas e feiticeiras» deve trincar e mastigar, todos os dias, ao levantar da cama, um bocado de alho verde.

E, finalmente, esta «receita» que poderá, eventualmente, ser útil a alguma leitora em transes semelhantes:

Para a moça fazer andar o rapaz sempre «à cordinha», até que ele se resolva a casar com ela — traga, numa bolsinha pregada no colete, sobre o peito esquerdo, um osso de cão, outro de gato e outro de defunto, com um bocadinho de terra do caixão do mesmo, três folhas de ruda (arruda), três de alecrim macho e um alho verde. Lave bem o corpo em cruz — desde as pontas dos dedos da mão direita até às pontas dos dedos do pé esquerdo — e das pontas dos dedos da mão esquerda até às pontas dos dedos do pé direito. Sirva depois ao dito cujo rapaz café ou chocolate, preparado com aquela água, e ovos fritos, partidos no cachaço dele. É receita magnífica e muito experimentada.

Fizemos a amostragem de um receituário que nos chegou, pelo menos do século XIX (mas com origem certamente mais remota) Disparates, infantilidades, crenças pueris. Instantâneos de certa vida portuense — cada um chame-lhe o que entender — são, também, componentes de outra face da personalidade tripeira que se desvenda. Sem nenhum propósito apologético. Sem nenhuma simpatia pelas práticas. (Mas com muita simpatia pelas pessoas que as praticavam. Com as suas razões: abandono, atraso cívico, dificuldades, analfabetismo, isolamento, más habitações, superstição. Mudámos assim tanto as causas do sofrimento e do subdesenvolvimento para nos rirmos delas? E será a crença nas virtudes de um pó ou de uma bisnaga, impostos pela TV, superior à crença nas mulheres de virtude? Vale mais a «crença» electrónica do que a crença nas palavras e nos gestos — que se crêem — mágicos?)


1 De ougar: palavra que significa «aguar», muito usada pelas camadas populares do Porto. O ougamento é o desejo de comer ou beber qualquer coisa (à mulher grávida, deve-se dar tudo o que lhe apetecer, para que ela «não ougue»).


Hélder Pacheco, Tradições Populares do Porto, 3.ª Edição, Editorial Presença, Lisboa, 1991


GLOSSÁRIO (segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020)

Cova-do-ladrão — Depressão entre o pescoço e a nuca.

Pano — Nódoa amarelada no rosto ou noutra parte do corpo.

14 agosto 2020

Carlos Reis


Milheiral, c. 1889, de Carlos Reis (1863–1940), óleo sobre tela, Reitoria da Universidade de Lisboa (depósito), Lisboa, Portugal

Carlos Reis foi um pintor português, nascido em Torres Novas em 1863 e falecido em Coimbra em 1940. Estudou na Escola de Belas Artes de Lisboa, primeiro, e na École des Beaux-Arts em Paris, depois. Foi sobretudo um pintor paisagista, fundador do grupo Ar Livre, e a sua obra insere-se na corrente do Naturalismo. Foi professor da disciplina de Paisagem na Escola de Belas Artes de Lisboa, assim como diretor do Museu Nacional de Belas-Artes e do Museu Nacional de Arte Contemporânea. Morou na Quinta dos Lagares d'El Rei, uma quinta histórica classificada como Imóvel de Interesse Público, que é propriedade privada e fica entre a Avenida Estados Unidos da América e a estação de caminho de ferro Roma-Areeiro, em Lisboa. O seu nome foi dado a um museu em Torres Novas, a sua terra natal, onde se encontram algumas obras suas.


Depois da Trovoada, 1891, de Carlos Reis (1863–1940), óleo sobre tela, Academia de Belas Artes, Lisboa, Portugal


As Engomadeiras, 1915, de Carlos Reis (1863–1940), óleo sobre tela, Museu de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal


Asas, 1932, de Carlos Reis (1863–1940), óleo sobre tela, Museu Municipal Carlos Reis, Torres Novas, Portugal


Aspeto de Jardim com Tocador de Viola, não datado, de Carlos Reis (1863–1940), óleo sobre tela, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Portugal

09 agosto 2020

COVID-19: o Brasil soma cem mil mortos e continua a somar


O carismático cacique (chefe tribal) Aritana Yawalapiti, do povo indígena brasileiro Yawalapiti, foi uma das muitas vítimas da pandemia COVID-19. Contraiu a doença na sua própria aldeia, no Parque Indígena do Xingu, de onde foi levado para a pequena cidade de Canarana, no Mato Grosso, onde não existiam condições para tratar o seu grave estado. De Canarana, o cacique Aritana foi então transportado para Goiânia, onde ficou internado num hospital após uma viagem de automóvel de mais de 700 km. Acabou por falecer no dia 5 de agosto de 2020. Quem o conheceu pessoalmente, elogia a sua sabedoria e o seu uso preferencial da diplomacia para a resolução de conflitos. Era um dos mais respeitados líderes indígenas de todo o Brasil (Foto: Renato Soares?)



MINHA HOMENAGEM AO QUERIDO ARITANA YAWALAPITI

Quando menino escutava a musica de abertura de uma novela em preto e branco chamada "Aritana". Achava fascinante os povos indígenas e sua luta para salvar a aldeia dos invasores. O tempo passou e um dia sentado na sala da casa de Orlando Villas Bôas, vejo entrar pela porta o grande cacique Aritana. Olhou para mim e sorriu. Eu falante que sou, emudeci de emoção e silenciei. Respirei fundo e fiz apenas uma pergunta: "Aritana, me leva para o Xingu?!"

Ele riu pois achou engraçado do jeito que eu falei. Orlando deu uma gargalhada e disse, "Leva ele e não traga de volta não!". Rimos e conversamos durante horas e naquele dia nasceu nossa amizade. Aritana foi um homem especial e amado por toda sua gente. Neste momento os peixes no rio Xingu choram, as onças na mata choram, os passarinhos deixaram de voar neste dia triste. Triste ficamos aqui na terra dos viventes. Minhas lentes e minhas maquinas se trancaram na escuridão pois sem a luz não há fotografia. Segue em paz sua jornada para o Ivati encontrar-se com os seus e contar novas historias.


Renato Soares, fotógrafo brasileiro



Existem índios isolados no Brasil, que também estão à mercê da pandemia COVID-19. O isolamento destes índios não é total. Eles podem nunca ter visto um branco ou um negro, mas contactam com índios de povos vizinhos, que já não vivem isolados e que podem transmitir-lhes a doença. É o caso do povo Yanomami (na imagem), em cujos territórios ainda habitam índios isolados e aonde a pandemia já chegou (Foto: Joédson Alves/EFE, na região de Surucucu, município de Alto Alegre, em Roraima, Brasil)

02 agosto 2020

Música popular de Zemba, município de Nambuangongo, Angola


Em 1972–73, a localidade de Zemba, situada na região dos Dembos, norte de Angola, era isto. À direita, com um formato aproximadamente quadrado, havia um quartel militar onde estava alojado um Comando de Batalhão, a respetiva Companhia de Comandos e Serviços, uma Companhia de Caçadores e um Pelotão de Morteiros. À esquerda, havia uma pequena sanzala com pouco mais de 100 habitantes, onde viviam as pessoas que tive o privilégio de gravar ao vivo (Foto: Fernando Vouga)

Quando terminei o meu serviço militar em Angola no ano de 1974, destruí quase tudo o que me pudesse evocar a guerra colonial em que tinha participado. Destruí quase todas as fotografias, cartas e diversos outros objetos, que atirei para o lixo. Mas não destruí duas cassetes áudio com gravações ao vivo feitas por mim, porque elas não evocavam a guerra. Antes eram expressões culturais das gentes que tive o gosto de conhecer e com as quais tive o enorme privilégio de conviver.

Uma das cassetes está completamente arruinada, incapaz de ser recuperada. Continha trechos de um genuíno batuque africano, em que também participei de modo completamente desastrado, aliás. Uma segunda cassete também se encontrava em estado lastimável. Sempre que eu tentava copiar o seu conteúdo para outra cassete ou para o computador, a sua fita partia-se e enrodilhava-se no mecanismo do gravador, estragando-se ainda mais do que já estava. Mesmo assim, consegui extrair três canções, uma delas em péssimo estado.

Agora, mais uma vez, tomando todos os cuidados a que fui capaz de recorrer, e rezando a todos os santinhos para que a fita não se voltasse a partir, consegui recuperar integralmente o seu conteúdo e passá-lo para o computador. Finalmente! As faixas das gravações ao vivo que só agora consegui recuperar são as que se ouvem a seguir.



Música popular de Zemba, município de Nambuangongo, província do Bengo, Angola. Cantada em quimbundo por Gabriel António, com acompanhamento à viola por Gabriel António e Gonçalo, e um coro constituído por Eusébio, Domingos e um habitante local não identificado. Gravada em cassete em dezembro de 1972 e recuperada em julho de 2020



Música popular de Zemba, município de Nambuangongo, província do Bengo, Angola. Cantada em quimbundo por Gabriel António, com acompanhamento à viola por Gabriel António e Gonçalo, maracas por Eusébio e um coro constituído por Eusébio, Domingos e um habitante local não identificado. Gravada em cassete em dezembro de 1972 e recuperada em julho de 2020



Música popular de Zemba, município de Nambuangongo, província do Bengo, Angola. Cantada em quimbundo por Gabriel António, com acompanhamento à viola por Gabriel António e Gonçalo, maracas por Eusébio e um coro constituído por Eusébio, Domingos e um habitante local não identificado. Gravada em cassete em dezembro de 1972 e recuperada em julho de 2020



Música popular de Zemba, município de Nambuangongo, província do Bengo, Angola. Cantada em quimbundo por Gabriel António, com acompanhamento à viola por Gabriel António e Gonçalo, maracas por Eusébio e um coro constituído por Eusébio, Domingos e um habitante local não identificado. Gravada em cassete em dezembro de 1972 e recuperada em julho de 2020