30 janeiro 2021

Música de Angola


Canto tradicional, por um grupo de senhoras do Bailundo, província do Huambo

Manuelé, por Sabu Guimarães

Malalanza ("Laranjas"), por Carlos Burity

Nvula Ieza Kiá ("A Chuva Já Chegou") e Humbiumbi (nome de uma ave de penas negras), duas canções de Filipe Mukenga, pelos cantores brasileiros Gilberto Gil e Djavan

27 janeiro 2021

Já não posso ser contente

Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.

Prazeres que tenho visto
Onde se foram, que é deles,
Fora-se a vida com eles
Não ma vira agora nisto,
Vejo-me andar entre a gente
Como coisa esquecida,
Eu triste, outrem contente,
Eu sem vida, outrem com vida.

Vieram os desenganos,
Acabaram os receios;
Agora choro meus danos,
E mais choro bens alheios;
Passou o tempo contente,
E passou tão de corrida,
Que me deixou entre a gente
Sem esperança de vida.

Diogo Bernardes (c. 1530 – c. 1594)



(Foto de autor desconhecido)

23 janeiro 2021

O Teorema de Pitágoras a três dimensões




"Num triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos", afirma o Teorema de Pitágoras, em que a hipotenusa é o lado do triângulo oposto ao ângulo reto e os catetos são os dois lados contíguos a este ângulo, formando-o. Este teorema foi proposto e demonstrado por Pitágoras, matemático e filósofo grego que viveu entre o ano 570 A.C. e o ano 495 A.C.

Um triângulo retângulo é uma figura geométrica a duas dimensões, que pode ser desenhada numa folha de papel. Se em vez de tomarmos um triângulo retângulo, tomarmos uma figura correspondente a três dimensões, o Teorema de Pitágoras será também válido? A resposta é sim. A demonstração do Teorema de Pitágoras a três dimensões já foi feita por processos analíticos há muito tempo. Na verdade, o Teorema de Pitágoras é válido para tantas dimensões quantas quisermos, o que é um exercício puramente teórico, porque o universo em que nos movemos só tem três dimensões espaciais.

Então o Teorema de Pitágoras a três dimensões como é? Como se demonstra? O vídeo acima faz a demonstração do Teorema de Pitágoras no espaço tridimensional, não por meios analíticos, mas por meios puramente geométricos. Talvez esta tenha sido a primeira vez que uma tal demonstração tenha sido feita por alguém. O seu autor é Luis Teia, um astrofísico português doutorado e investigador na Universidade de Manchester. No fim da sua demonstração, Luis Teia apresenta-nos, como brinde, uma descoberta que entretanto fez e que é completamente inesperada e surpreendente.

19 janeiro 2021

Os meus heróis

Prezo os símbolos, o rasto e os sinais
da minha nostalgia portuguesa.
Mas os meus heróis verdadeiros não vêm na história;
não têm monumentos nas praças domingueiras
nem dias feriados a lembrar-lhes o nome.
São heróis dos dias úteis da semana:
levantam-se antes do sol e recolhem apenas
quando a noite se fecha nos seus olhos.
Lavram a terra, o mar, e são jograis
colhendo a virgindade pudica da vida.
Sobem aos andaimes, descem às minas
e comem entre dois apitos convulsivos
um caldo de lágrimas antigas.
São os construtores do meu país, à espera!
Mouros no trabalho e cristãos na esperança;
famintos do futuro, como se a madrugada
fosse seara imensa apetecida
onde o sol desponta nas espigas
sobre o casto silêncio da montanha

António Arnaut (1936–2018), fundador do Serviço Nacional de Saúde


Campo de trigo com ciprestes, de Vincent van Gogh (1853–1890) 

17 janeiro 2021

Música popular portuguesa recolhida por Armando Leça


Na Loja do Mestre André, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Felgueiras, Douro Litoral 

O seu nome verdadeiro era Armando Lopes, mas adotou o pseudónimo de Armando Leça por ter nascido em Leça da Palmeira, Matosinhos, em 1893. Foi pai de duas grandes personalidades da cultura portuguesa: Óscar Lopes e Mécia de Sena.

Armando Leça foi compositor e etnomusicólogo, e foi um pioneiro na recolha, sistematização e divulgação da música popular portuguesa de raiz, tendo percorrido o país incansavelmente. Por isso, Armando Leça chamava-se a si próprio "músico caminheiro". O seu exemplo foi logo seguido por outros, como Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, José Alberto Sardinha, Tiago Pereira, etc. Armando Leça faleceu em Vila Nova de Gaia em 1977.


Chora a Videira, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Besteiros, Amares, Minho 

Santa Combinha, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Cambra, Vouzela, Beira Alta 

Estalado, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Coimbra, Beira Litoral 

Videira, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Teixoso, Covilhã, Beira Baixa 

Eu Sou um Rapaz Pimpão, gravação recolhida por Armando Leça (1893-1977) em Baleizão, Beja, Baixo Alentejo 

13 janeiro 2021

Amigo, entendo que non ouvestes

Amigo, entendo que non ouvestes
poder d'alhur viver e veestes
a mia mesura, e non vos val ren,
ca tamanho pesar me fezestes,
  que jurei de vos nunca fazer ben.

Quisera-me eu non aver jurado,
tanto vos vejo viir coitado
a mia mesura. Mais que prol vos ten?
Ca, u vos fostes sen meu mandado,
  jurei que nunca vos fezesse ben.

Por sempre sodes de mi partido
e non vos á prol de seer viido
a mia mesura, e gran mal m'é en,
ca jurei, tanto que fostes ido,
  que nunca jamais vos fezesse ben.

Cantiga de amigo de João Baveca, provavelmente jogral do séc. XIII

GLOSSÁRIO

alhur — algures, noutro lugar
mesura
 — cortesia, generosidade
rem (em frases negativas) — nada
prol/proe — proveito
u — quando
mandado — consentimento, acordo

EXPLICAÇÃO

Compreendendo que o seu amigo não conseguiu estar muito tempo longe dela, e regressa agora a contar com a sua generosidade, a donzela diz-lhe que é talvez um pouco tarde: pois, quando ele partiu contra a sua vontade, jurou nunca mais lhe conceder os seus favores. E agora, embora tendo dó dele, custa-lhe quebrar essa jura.

Por sempre serdes de mi partido, / nom vos há prol de seer viido / a mia mesura, e gram mal m'é en — porque estais sempre longe, não vos adianta ter vindo apelar à minha generosidade, e isso aflige-me muito.



09 janeiro 2021

Robots dançarinos



As imagens deste vídeo são reais. A empresa norte-americana Boston Dynamics é líder mundial no desenvolvimento de robots. Neste vídeo, é verdadeiramente espantosa a forma como os robots humanoides, sobretudo, conseguem manter o equilíbrio, quaisquer que sejam os movimentos que façam.

A Boston Dynamics quis dar-nos um vídeo divertido, mas mais do que divertido, ele parece-me assustador. Quem consegue pôr robots a dançar desta maneira, consegue pô-los a fazer outras coisas menos inocentes. E isto é só o começo do começo. Imagine-se o que poderá fazer um robot, que seja dotado de "inteligência artificial" com capacidade de aprendizagem em tempo real, mas esteja desprovido de sentimentos como máquina que é.

07 janeiro 2021

Pensamentos esdrúxulos



Por alguma razão estás sempre nua no meu pensamento.

O meu pensamento, artista de haute couture inversa, revela a beleza do tecido vivo da tua pele. A tua nudez como beleza desnuda prova que toda a criação humana é supérflua, e que a verdade das coisas está sempre subjacente a todo o artifício.

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A suprema lucidez torna evidente que é preciso ajudar a realidade a ir ao encontro das nossas ilusões.

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Ah a tentação de uma rosa sobre o muro! Hirsuta a roseira eriçada de espinhos. Rapina a mão a tentar colhê-la. A mão e a rosa. A beleza e a líbido — o mais sublime conflito da natureza.

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Quando os nossos corpos se unem, não sei quem possui quem. Não é o sabre que possui a bainha mas sim a bainha que possui o sabre.

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O que aprendi na guerra contraria a ordem natural das coisas. Só é possível ser corajoso se se sentir medo do perigo.

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Ignorar um perigo não é coragem, é cobardia. O evitamento e a negação são fugas para enfrentar o medo. A maior cobardia é o medo de ter medo.

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Os estúpidos nunca são corajosos, a experiência diz-lhes que são sempre os outros a morrer.

A estupidez pode chegar a esse nível cognitivo, e não é de estranhar que escolham para seus líderes quem tenha o mesmo nível intelectual. Frequentemente, admiram quem ostente a bravata quase sempre inútil de se expor ao perigo ignorando o inimigo, apenas porque não o veem, e confundem essa imbecilidade com coragem. Pobres dos que lutam lado a lado com soldados desses, melhor fora praticarem hara-kiri.

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Em África não odiávamos o inimigo, combatíamos por um estranho instinto do cumprimento do dever.

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Do chão do corredor do Hospital Militar da Beira vê-se o mundo de baixo para cima.

O condutor da ambulância a fazer street racing e o soldado por cima de mim a esvair-se em sangue. Agora ali parece que dorme, sereno. As pessoas passam e ignoram-no porque o sangue dele está todo sobre mim.

O mundo visto de baixo para cima torna as caras cómicas. Os pés, esses, passam rentes à minha cabeça. Às vezes, a indiferença das pessoas é interrompida pela visão de um soldado todo coberto de sangue e com o lençol murcho onde devia estar a perna esquerda.

“Olha-me este paradoxo!” Diz uma cara cómica para outra cara cómica, apontando para o meu emblema hippie e a outra cara cómica ganha agora também um ar estúpido.

“Um símbolo da paz num ferido de guerra.” Depois da explicação, a cara estúpida, agora com ar filosófico, olhando o medalhão de madeira feito por um artista de arte cava maconde.

Finalmente as duas caras olhando, como se eu não estivesse lá, como fazemos nos zoos, por acharmos que os animais não ficam ofendidos por serem tratados como pessoas que desprezamos.

O convívio constante com o drama e a tragédia leva as pessoas à insensibilidade por fadiga de compaixão.

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A mãe do meu amigo morto na Guiné:

— No te enxergo baim Manelzito, mas alembro-me baim da tua cara. Mas nã tenho uma luz da cara do mê Tó. Afirmo-me baim no retrato dele mas só veijo uma névoa. Alembro-me de toda a gente e do mê rico filho não. Porque me lo há de Deus ter levado e naim a lembrança da cara dele me deixô?

E eu procurando palavras para lhe dizer, palavras que ainda ninguém inventou para explicar as coisas estupidamente cruéis desta vida.

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Sorrio ao ouvir dizer que os ex-combatentes evitam falar da guerra. Esta é a confusão habitual entre silêncio e surdez. Nós vimos falando da guerra em altos berros, pá, tu é que estás surdo!

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Se salvaste a vida de uma pessoa és de certo um herói, se salvaste a vida a 100 pessoas deves ser apenas uma enfermeira.

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Hoje pensei que não iria falar de Deus. Ter pensado nisto prova que Deus existe, pelo menos enquanto conceito, e é omnipotente, mas também prova que precisa do nosso pensamento para isso.

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Guardo nítida a forma da tua silhueta frente ao mar. Uma ligeira dormência que sempre sucede a um esforço demorado guardou essa imagem no diretório dos meus sonhos.

O meu cansaço teve hoje outra origem, mas ao olhar a janela do quarto de hotel que dá para a aridez da cidade, é o mar que vejo e a tua silhueta que percebo nítida… e a certeza de te ter amado toda a noite.

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Tocas-me, e há uma alteração em todo o meu ser e uma perspectiva de prazer irrecusável e irreversível.

O chão transforma-se em caminho mal começamos a andar nele.

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Não devemos confiar nos otimistas, eles contentam-se com copos meio cheios. Já os pessimistas, que os veem meio vazios, tenderão a enchê-los.

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O que há de verdadeiramente perigoso no amor, é que trazemos para viver connosco precisamente quem pode dar cabo da nossa vida.

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Hoje estou tao calmo como dois cisnes deslizando nas águas lisas de um lago. Acalmam-me o silêncio e a solidão, porque sei que do outro lado da parede, do outro lado da rua, do outro lado do mundo tu estás disponível para mim.

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A rosa obsessiva sobre o muro. A mão inquieta. A escada que sobes de glúteos inocentemente provocatórios. Que culpa tenho eu, Rosa, que culpa tenho eu?


mcbastos, Elo, mensário da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, setembro–outubro de 2020

03 janeiro 2021

João Cristino da Silva


Autorretrato de João Cristino da Silva (1829–1877), óleo sobre tela de 1854, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

João Cristino da Silva foi um pintor lisboeta, nascido em Alfama no ano de 1829. Foi um dos mais destacados pintores portugueses do Romantismo, corrente dominante no séc. XIX, e privilegiou a pintura de paisagens. Era uma pessoa irreverente e de temperamento nervoso, estado de espírito que se foi agravando com o passar dos anos e que acabou por determinar o seu internamento no estabelecimento psiquiátrico de Rilhafoles, em Lisboa (mais tarde chamado Hospital Miguel Bombarda, já desativado), onde faleceu em 1877. Foi o iniciador de uma dinastia de artistas plásticos e arquitetos que continuaram a utilizar o nome de Cristino da Silva. Quando se fala de Cristino da Silva, portanto, convém especificar de qual se trata. Este foi o João.

João Cristino da Silva pintou cerca de trezentos quadros, o mais famoso dos quais se chama "Cinco Artistas em Sintra". Trata-se de uma pintura a óleo sobre tela, onde estão representados cinco artistas plásticos diante de grandes rochedos, que o título da obra diz serem em Sintra. Sentado, com uma perna estendida e pintando um quadro, está Tomás da Anunciação. Rodeando-o, está um pequeno grupo de habitantes locais, que observam com curiosidade o seu ato de pintar. Neste grupo fica documentada a indumentária saloia do séc. XIX. Atrás de Tomás da Anunciação está o pintor Francisco Metrass, de chapéu preto na cabeça. Mais à direita, e separados dos restantes retratados, estão o escultor Vítor Bastos, também de chapéu preto na cabeça, o próprio João Cristino da Silva e, sentado, José Rodrigues. Esfumado na distância, junto à borda esquerda do quadro, está o Palácio da Pena, representado de forma bastante imaginativa e dramática.


Cinco artistas em Sintra, 1855, óleo sobre tela de João Cristino da Silva (1829–1877), Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

01 janeiro 2021

Nesta hora

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo
É preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
– Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.



Sophia de Mello Breyner Andresen (1919–2004)