28 novembro 2021

O meu reinado

Eu son o rei de min mesmo;
goberno o corazón
na libertá do vento e dos camiños.
Eu obedezo ás miñas propias leises
i os meus decretos sigo ao pé da letra.
Un cetro de solpores,
unha croa de nubes viaxeiras,
un manto avermellado
de soños i esperanzas
no limpo alborexar de cada día,
dame o poder lexítimo do pobo.
Represento aos calados,
interpreto aos que foron
voces da terra nai
nos antergos concellos da saudade.
Eu son un rei.
Un labrego do tempo dos sputniks.

Celso Emilio Ferreiro (1912–1979), poeta galego


Réplica do satélite Sputnik 1, o primeiro satélite artificial da Terra lançado em 1957

23 novembro 2021

Iliteracia feminina e pobreza


Vida Maria, um vídeo de animação 3D do cineasta brasileiro Márcio Ramos

21 novembro 2021

eu quero escrever coisas verdes


eu quero escrever coisas verdes
verdes
como as folhas desta floresta molhada
verdes
como teus olhos
que só a saudade deixa ver
verdes
como a menina duma trança só
que soletra em português sa-po sa-po
verdes
como a cobra esguia que me surpreendeu
naquela cubata sem outra história
verdes
como a manhã azul
que acaba de nascer

eu quero escrever coisas verdes

Arlindo Barbeitos (1940-2021), poeta angolano


Em Tempué, Luchazes, Moxico, Angola (Foto: Mauro Sérgio)

19 novembro 2021

Os Encantos do Rio


Os Encantos do Rio, um vídeo do cineasta indígena brasileiro Takumã Kuikuro

13 novembro 2021

Domingos António de Sequeira


Adoração dos Magos, 1828, óleo sobre tela de Domingos António de Sequeira (1768–1837). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

Se Domingos António de Sequeira só tivesse pintado um quadro e se esse quadro tivesse sido a Adoração dos Magos, tanto bastaria para que ele merecesse ser incluído na galeria dos maiores pintores europeus.

No quadro Adoração dos Magos, a composição das figuras é magistral, mas não é o mais importante. O mais importante é a luz, uma luz que vem do céu, difusa e no entanto ofuscante, uma luz que ilumina tudo e todos com uma clareza e uma suavidade incomparáveis. É uma luz divina, que deslumbra e acaricia ao mesmo tempo.

A Adoração dos Magos era um quadro que estava na posse de uma entidade particular. Eu não sei em que condições é que ele apareceu à venda por 600 mil euros. O que sei é que era do maior interesse que o quadro ficasse em Portugal, mas o Museu Nacional de Arte Antiga não tinha no seu orçamento uma verba tão avultada que permitisse a sua compra. Foi então lançada uma campanha de subscrição pública na Internet (chamada crowdfunding), sob o lema "Vamos Pôr o Sequeira no Lugar Certo". A campanha foi tão bem feita que resultou em pleno. Nunca uma obra de arte mobilizou tanta gente em Portugal, disposta a pagar tanto dinheiro por ela. O Museu Nacional de Arte Antiga reuniu mais de 750 mil euros no fim da campanha, em 30 de abril de 2016, e o quadro foi comprado.

Domingos António de Sequeira nasceu em Lisboa no ano de 1768, no seio de uma família modesta. Foi educado na Casa Pia de Lisboa e cedo revelou uma notável vocação artística. Aos 20 anos de idade conseguiu uma bolsa atribuída pela rainha D. Maria I e foi estudar para Roma. Quando voltou a Portugal, tornou-se pintor da corte e colaborou ativamente nas pinturas do Palácio da Ajuda, em Lisboa. Politicamente, apoiou, primeiro, as Invasões Francesas e, logo a seguir, a resistência anglo-lusa às tropas invasoras. Mais tarde, apoiou a Revolução Liberal de 1820 e, quando a situação política se inverteu, com a implantação do Absolutismo miguelista, teve que se exilar, primeiro em França e depois em Roma, onde acabou por falecer em 1837. Está sepultado na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma.


O Príncipe Regente Passando Revista às Tropas na Azambuja, 1803, óleo sobre tela de Domingos António de Sequeira (1768–1837). Palácio Nacional de Queluz, Queluz, Sintra, Portugal

Junot Protegendo a Cidade de Lisboa, 1808, óleo sobre tela de Domingos António de Sequeira (1768–1837). Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Portugal

Retrato do Conde de Farrobo, 1813, óleo sobre tela de Domingos António de Sequeira (1768–1837). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

Mariana Benedita Sequeira, c. 1822, óleo sobre tela de Domingos António de Sequeira (1768–1837). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

10 novembro 2021

Há dias morreu Nelson Freire, um pianista discreto mas insuperável


Concerto para Piano e Orquestra N.º 5 em mi bemol maior, op. 73, de Ludwig van Beethoven (1770–1827), pelo pianista brasileiro Nelson Freire (1944–2021), acompanhado pela Orquestra Nacional de Lille, dirigida pelo maestro francês Jean-Claude Casadesus

07 novembro 2021

Um poema sem sentido


O escritor inglês Lewis Carrol (1832-1898), autor do famoso livro Alice no País das Maravilhas, gostava muito de inventar palavras. Algumas destas palavras tinham um significado determinado, mas outras não significavam absolutamente nada. Lewis Carrol inventava-as por puro prazer.

No livro Alice do Outro Lado do Espelho, Lewis Carrol escreveu um poema inteiro que tem rima, tem métrica, tem ritmo, mas não quer dizer nada. Ou quererá dizer alguma coisa? É um poema recheado de palavras que não vêm em qualquer dicionário e não têm qualquer significado, mas o conjunto do poema tem uma sequência lógica e parece fazer sentido. O poema, supostamente escrito em inglês, é o seguinte:

JABBERWOCKY

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

“Beware the Jabberwock, my son!
The jaws that bite, the claws that catch!
Beware the Jubjub bird, and shun
The frumious Bandersnatch!”

He took his vorpal sword in hand:
Long time the manxome foe he sought—
So rested he by the Tumtum tree,
And stood awhile in thought.

And, as in uffish thought he stood,
The Jabberwock, with eyes of flame,
Came whiffling through the tulgey wood,
And burbled as it came!

One, two! One, two! And through and through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.

“And hast thou slain the Jabberwock?
Come to my arms, my beamish boy!
O frabjous day! Callooh! Callay!”
He chortled in his joy.

‘Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves,
And the mome raths outgrabe.

Como é que se traduz um poema destes para português? Será possível uma tal tradução ou será preferível deixar o poema na sua forma original?

Os diversos tradutores do livro decidiram criar eles próprios um poema que lhe possa equivaler. Das várias traduções publicadas, resultaram vários poemas
nonsense em suposto português que são muito diferentes uns dos outros, consoante o talento de cada tradutor. Dos poemas que encontrei na internet, o que me parece mais conseguido é da autoria do brasileiro Augusto de Campos, que é, ele mesmo, um poeta. A sua "tradução" é como segue:

JAGUADARTE

Era briluz. As lesmolisas touvas
roldavam e reviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.

“Foge do Jaguadarte, o que não morre!
Garra que agarra, bocarra que urra!
Foge da ave Fefel, meu filho, e corre
Do frumioso Babassura!”

Ele arrancou sua espada vorpal
e foi atrás do inimigo do Homundo.
Na árvore Tamtam ele afinal
Parou, um dia, sonilundo.

E enquanto estava em sussustada sesta,
Chegou o Jaguadarte, olho de fogo,
Sorrelfiflando através da floresta,
E borbulia um riso louco!

Um dois! Um, dois! Sua espada mavorta
Vai-vem, vem-vai, para trás, para diante!
Cabeça fere, corta e, fera morta,
Ei-lo que volta galunfante.

“Pois então tu mataste o Jaguadarte!
Vem aos meus braços, homenino meu!
Oh, dia fremular! Bravooh! Bravarte!”
Ele se ria jubileu.

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.


Supercalifragilisticexpialidocious, do filme Mary Poppins, de Robert Stevenson, com Julie AndrewsDick Van Dyke e The Pearlie Chorus

03 novembro 2021

Entrei no café com um rio na algibeira


Entrei no café com um rio na algibeira
e pu-lo no chão,
a vê-lo correr
da imaginação…

A seguir, tirei do bolso do colete
nuvens e estrelas
e estendi um tapete
de flores
a concebê-las.

Depois, encostado à mesa,
tirei da boca um pássaro a cantar
e enfeitei com ele a Natureza
das árvores em torno
a cheirarem ao luar
que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir
A melodia sem contorno
Deste acaso de existir
—onde só procuro a Beleza
para me iludir
dum destino.

José Gomes Ferreira (1900–1985)


(Foto: Paulo Videira da Costa)