26 julho 2020

O achado da bolsa


O ator Jim Carrey representando o papel do avarento Ebenezer Scrooge em A Christmas Carol (Foto: Walt Disney Pictures)



Havia um mercador muito rico, e assim como cada dia se lhe iam acrescentando suas riquezas, assim nele se lhe ia multiplicando tanta avareza, que em outra cousa não trazia o sentido senão em ajuntar dinheiro. Este estando um dia vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cruzados em ouro, que havia vendido, e deitou-os em uma bolsa, e despois de recolher seu fato se foi para sua casa entesourar. Indo pelo caminho fazendo suas contas com a imaginação, lhe acertou a cair a bolsa, e até que chegou a casa a não achou menos. Esteve para perder o juízo juntamente com a bolsa. Com grande dor e paixão se foi ao duque, que era senhor daquela cidade, e lhe pediu que mandasse sua excelência em seu nome apregoar que quem achasse uma bolsa com quatrocentos cruzados em ouro, que os trouxesse diante dele, que lhe daria quarenta cruzados de achado. Foi dado o pregão pela cidade, e sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem tinha achado a bolsa, que era uma mulher viúva, muito pobre e virtuosa. E ouvindo dizer, que davam quarenta cruzados de achado foi mui leda, entendendo que ficar com a bolsa seria infernar sua alma. Assim com esta determinação se foi diante do duque e lhe pôs em sua mão a bolsa que havia achado assim e da maneira que o mercador a havia perdido. Vendo o duque a pobreza desta mulher, e que era digna de ser grandemente favorecida, logo mandou chamar o mercador e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não faltava mais que cumprir sua promessa àquela mulher honrada que a havia achado. Folgou em extremo o avarento mercador, porém achegou-lhe à alma o ver que havia de dar os quarenta cruzados que tinha prometido de achado, e assim imaginou logo naquele instante um ardil para os não dar, e foi que tomou a bolsa e vazou o dinheiro em uma mesa que ali estava, e contou-o, e posto que o achasse certo, contudo isso revirando para a mulher que o havia achado, lhe disse:

— Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezianos, que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.

A boa velha afrontada e corrida, lhe disse:

— De maneira, senhor, que credes de mim que vos havia de furtar o vosso dinheiro! Quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la aqui, senão não querer eu o alheio?

Não deixava o mercador de gritar e dar vozes dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o achado que tinha prometido. O duque, conhecendo a malícia do mercador e tudo aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que prometera, entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher tanta era a maldade do avarento mercador, imaginou que a maior pena que podia dar a um homem tão ruim como aquele era fazer que com seu engano se ofendesse a si mesmo, e a esta causa, virando-se para ele, lhe disse:

— Vinde cá; se isto é assi como dizeis, porque me não declarastes que a bolsa levava mais esses escudos de ouro? Ora eu tenho entendido que vós sois tal que quereis fazer o alheio vosso, e que esta bolsa que essa mulher honrada achou não é vossa, pois nela faltam esses ducados venezianos que dizeis; antes essa bolsa que se achou sem dúvida nenhuma é uma que esse próprio dia perdeu um meu criado com esta mesma soma de dinheiro que essa tem, e pois sendo assim como é, a mim e não a vós pertence.

E dizendo isto, virou-se para onde estava a velha, e lhe disse:

— Boa mulher, pois que achastes esta bolsa com estes cruzados de ouro, eu vos faço graça dela com o dinheiro que tem.

Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o duque dizia; antes arrependido de não haver cumprido a palavra que prometera se foi para sua casa chorar seu desastre.


Gonçalo Fernandes Trancoso (c.1520–1596), Contos e Histórias de Proveito e Exemplo

20 julho 2020

Música geladinha


Longyearbyen, na ilha de Spitzbergen, arquipélago de Svalbard, Noruega, de onde é transmitida a Arctic Outpost Radio (Foto: HylgeriaK)

Recentemente, tornou-se viral nas redes sociais a descoberta online, feita por Nuno Markl, daquela que deverá ser a estação de rádio mais setentrional do mundo. Chama-se Arctic Outpost Radio e localiza-se na ilha de Spitzbergen, em Svalbard, que é um arquipélago norueguês situado em pleno Oceano Ártico, mais ou menos a meio caminho entre o extremo norte da Lapónia e o Polo Norte. Além de estar presente online durante 24 horas por dia, a Arctic Outpost Radio transmite em ondas médias em 1270 kHz, a partir dos seus estúdios em Longyearbyen, a capital do arquipélago.

A Arctic Outpost Radio transmite unicamente música antiga, de entre os anos 1902 e 1958. E que música! Quase me atrevo a dizer que não há outra rádio no mundo que nos dê uma tão grande música. A Arctic Outpost Radio, de Svalbard, é uma rádio para ouvir e voltar a ouvir, vezes sem conta. O seu site tem o seguinte endereço:

https://www.aor.am/.



Base Esperança, na Antártida Argentina, de onde é transmitida a Radio Nacional Arcángel San Gabriel (Foto: Andrew Shiva)

No outro extremo do planeta fica a estação de rádio LRA36, Radio Nacional Arcángel San Gabriel, que emite a partir da base Esperança, na Antártida Argentina. A LRA36 é a rádio mais meridional do mundo. Transmite em ondas curtas na frequência de 15476 kHz, o que faz dela uma das rádios mais procuradas pelos entusiastas das ondas curtas. Teoricamente, pelo menos, poderá ser possível em Portugal sacar do "éter" os seus tangos, ainda que em muito más condições, por certo, mesmo com um bom aparelho de rádio, uma excelente antena e uma distância considerável de qualquer fonte de interferência.

A LRA36 tem uma programação própria, feita lá mesmo, na base Esperança, durante um ou dois pares de horas por dia apenas. É durante este período de tempo que emite em ondas curtas. De resto, está presente online durante 24 horas por dia. Quando não transmite a sua programação própria, a LRA36 dá-nos uma emissão proveniente de Buenos Aires ou de alguma outra cidade argentina.

Para escutarmos a LRA36, Radio Nacional Arcángel San Gabriel, poderemos abrir, por exemplo, a seguinte página:

http://www.radios.com.br/play/39834.

17 julho 2020

A mais recente imagem obtida pelo Hubble


Galáxia NGC 2775, situada a 67 milhões de anos-luz, tal como foi fotografada pelo telescópio espacial Hubble (Foto: ESA/Hubble & NASA, J. Lee and the PHANGS-HST Team; Acknowledgment: Judy Schmidt (Geckzilla))

O telescópio espacial Hubble está a chegar ao fim da sua vida. Completou vinte anos de órbita em volta da Terra, desde que foi lançado para o espaço em 24 de abril de 1990, o que em termos tecnológicos é quase uma eternidade. O Hubble é tão antigo, que já devia ter sido desligado e transformado em sucata espacial, mas a comunidade internacional tomou-se de amores por ele e movimentou-se no sentido de lhe dar mais um pouco de fôlego, até que o seu sucessor, o telescópio espacial James Webb, esteja em condições de pegar no seu testemunho e procurar levar muito mais longe ainda, e com muito mais pormenor ainda, a nossa visão do Universo.

O que o telescópio espacial Hubble nos mostrou ao longo dos seus vinte anos de existência é absolutamente assombroso. Este telescópio revolucionou, no mais completo sentido do termo, o nosso entendimento do Universo. Nunca ninguém tinha visto, ou sequer imaginado, imagens tão impressionantes como as que o Hubble obteve, algumas das quais se podem ver nesta página, por exemplo, e muitíssimas mais podem ser encontradas na Internet.

Pois agora, como uma espécie de "canto do cisne", o telescópio Hubble presenteou-nos com a imagem reproduzida acima, a de uma deslumbrante galáxia situada à distância de 67 milhões de anos-luz e fotografada na constelação do Caranguejo. É uma galáxia tão longínqua, que a sua luz demorou 67 milhões de anos a chegar à Terra. Os astrónomos puseram a esta galáxia o nome científico de NGC 2775.

O telescópio espacial James Webb está pronto para ser lançado para o espaço, o que deverá acontecer em Março de 2021, se tudo correr bem. Que surpresas nos reservará ele?

14 julho 2020

A Fábrica dos Sons, de António Victorino d'Almeida


A Fábrica dos Sons para Orquestra e Narrador, op. 45, de António Victorino d'Almeida, pela Orquestra Sinfónica "Tonkünstler" da Baixa Áustria (de Viena e Sankt Pölten), dirigida por António Victorino d'Almeida, e narração de Maria de Medeiros

09 julho 2020

Um "poema" pós-moderno de Donald Trump (em inglês) ;-)

I never understood wind.
You know, I know
windmills very much.
I have studied it
better than anybody
else. It’s very expensive.
They are made in China
and Germany mostly.
—Very few made here, almost none,
but they are manufactured, tremendous
—if you are into this—
tremendous fumes. Gases are
spewing into the atmosphere. You know
we have a world
right?
So the world
is tiny
compared to the universe.
So tremendous, tremendous
amount of fumes and everything.
You talk about
the carbon footprint
— fumes are spewing into the air.
Right? Spewing.
Whether it’s in China,
Germany, it’s going into the air.
It’s our air
their air
everything — right?
A windmill will kill many bald eagles.
After a certain number
they make you turn the windmill off.
That is true.
—By the way
they make you turn it off.
And yet, if you killed one
they put you in jail.
That is OK.
You want to see a bird graveyard?
You just go.
Take a look.
A bird graveyard.
Go under a windmill someday,
you’ll see
more birds
than you’ve ever seen
in your life.

Donald Trump



03 julho 2020

Dois nus numa paisagem exótica


Baigneuses: Deux nus dans un paysage exotique, óleo sobre tela de Jean Metzinger (1883–1956), c. 1905, Coleção Carmen Thyssen-Bornemisza, Espanha

Baigneuses: Deux nus dans un paysage exotique é um quadro a óleo da autoria do pintor francês Jean Metzinger (1883–1956), que foi um dos mais revolucionários artistas plásticos europeus do séc. XX.

Este quadro é um excelente exemplo de estilo divisionista, um estilo nascido ainda no séc. XIX, em que as cores não se encontram misturadas na tela, antes se nos mostram repartidas por pontos e pequenas manchas de tons puros. É no próprio cérebro humano, e não na mistura das tintas, que se faz a combinação dos tons com vista à perceção das cores pretendidas.

É de realçar que, neste quadro, Metzinger representa as figuras humanas com tons quase naturais, enquanto a paisagem ao fundo se apresenta em tons acentuadamente artificiais e vibrantes. Não é, portanto, pela intensidade da cor que o pintor chama a nossa atenção para as figuras principais. Ele chama a nossa atenção através de uma representação tridimensional, enquanto o fundo se nos mostra completamente plano. As duas mulheres nuas aparecem-nos em "relevo" relativamente ao resto do quadro.