O Rei D. Sebastião, óleo sobre tela de Cristóvão de Morais, pintor português que teve atividade conhecida entre 1551 e 1571. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal
Este retrato do rei D. Sebastião é da autoria de Cristóvão de Morais, que foi um excelente pintor português do séc. XVI. Cristóvão de Morais foi, com toda a certeza, um dos melhores pintores maneiristas portugueses. Ao olhar para este quadro, não posso deixar de notar que ele é um bom retrato de um mau rei, porque mal aconselhado: o rei de Portugal D. Sebastião. Não vale a pena insistir no facto de que D. Sebastião trouxe a desgraça para Portugal quando se fez matar na batalha de Alcácer Quibir, no norte de África, em 4 de agosto de 1578.
Como seria de esperar, a batalha de Alcácer Quibir vem referida nos livros de História de Marrocos. Não é todos os dias que um rei é morto num campo de batalha, seja em Marrocos ou seja onde for. O que é surpreendente é o modo como os marroquinos reagem diante de um interlocutor português, quando o assunto é abordado, e lhe dizem: «Sim, é verdade que nós ganhamos, mas a batalha de Alcácer Quibir foi somente uma batalha entre muitas que houve entre as nossas duas nações. Nós ganhamos algumas, vocês também ganharam algumas, mas o que importa é que agora estamos todos em paz e somos todos amigos». Fica a sensação de que esta desvalorização da importância da batalha de Alcácer Quibir por parte dos marroquinos é apenas uma manifestação de gentileza. Os marroquinos são um povo gentil, atencioso, tolerante e acolhedor. E, o que é mais importante, não nutrem qualquer rancor ou ressentimento para com os portugueses. Isto mesmo eu verifiquei pessoalmente em diversas ocasiões.
Efetivamente, quando eu disse uma vez a um marroquino que era português, ele soltou uma sonora gargalhada e exclamou: «É português? Então somos grandes inimigos! Ahahahahah!» Por momentos julguei que ele me iria dar um grande abraço, o abraço do reencontro de dois "grandes inimigos". Mais tarde, fiquei a pensar.
No ano 711, os mouros atravessaram o Estreito de Gibraltar, vindos do Norte de África, e rapidamente se apoderaram da Península Ibérica, com exceção das Astúrias, conquistando o fraco Reino dos Visigodos, que não era mais do que uma frágil federação de senhores feudais. Começou assim um ciclo de conquistas e reconquistas, invasões e recuos, grandes batalhas e pequenas escaramuças, tanto em solo ibérico como em solo norte-africano, entre mouros e cristãos, que, no caso português, se prolongou até ao ano 1769, ano em que Portugal abandonou a sua última posição em terras de Marrocos, a fortaleza de Mazagão. Por determinação do Marquês de Pombal, os ocupantes da fortaleza foram então transferidos para a foz do Rio Amazonas, onde fundaram uma povoação também chamada Mazagão.
Agora, como dizia António Guterres, «é só fazer as contas». Estas contas revelam que, ainda e só no caso português, se passaram
1058 anos entre o primeiro acontecimento e o último. Foram 1058 anos de ódios e de guerras, em que cristãos e muçulmanos se esquartejaram mutuamente, enquanto gritavam, uns contra os outros, «Morte aos infiéis!». Foram 1058 anos com montanhas e montanhas de mortos, rios e rios de sangue, milhões e milhões de órfãos e de viúvas, uma dor incomensurável e lágrimas sem fim. 1058 anos. Tudo isto para quê? Para que alguém, na viragem do séc. XX para o séc. XXI, se ria e graceje: «É português? Então somos grandes inimigos! Ahahahahah!» O ódio e o fanatismo, que tanto mal causaram, apagaram-se e converteram-se em anedota. Valeu a pena ter havido tantos mortos?