26 maio 2015

Minha mãe que não tenho

Minha mãe que não tenho   meu lençol
de linho   de carinho   de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.

Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que eu não oiço   ai mãe   ai mel
da flor do corpo que me traz à míngua.

De que Egipto vieste?   De que Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mãe   minha dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.

Minha mãe que não tenho   minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila   virgem   buda   corça
ou apenas um mundo em que não entro?

Minha mãe que não tenho   inventa-me primeiro:
constrói a casa   a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo   que o teu cheiro
te façam conceber dentro de mim.

José Carlos Ary dos Santos (1937-1984)



25 maio 2015

«África é fruto sazonado.»

África é fruto sazonado.
Para o colher é preciso
ter vivido em sua carne,
sangrado em seu espinho,
auscultado a sua polpa.
Depois, comê-lo com humildade:
Guardar religiosamente o seu caroço.

Merecer a tatuagem:
beber nos rios do seu Povo,
habitar nas cubatas de barro e de capim,
guardar suas mulheres de lua e noite
e os filhos do amor no coração.

Ter África no sangue
é compreender a voz dos quimbos;
senti-la como reza em noites de kazumbi,
noites de óbito e batuque nas sanzalas.

É velar o morto com o grito de guerra;
pronunciar o desafio à noite que desaba
enfrentar o dia da boémia no mato.
Ser deste céu
é ter o vírus tropical no peito;
fumar o fumo entorpecente da liamba,
temperar a voz no travo do marufo.

É enterrar os pés na terra virgem
até sentir as veias prenhes de virtude.

Cândido da Velha (pseudónimo de um poeta angolano cuja identidade verdadeira se desconhece)


GLOSSÁRIO
cubatas — habitações rústicas
quimbos — aldeias
kazumbi — alma penada
sanzalas — aldeias
liambacannabis
marufo — vinho de palma


(Foto: Jorge Rosmaninho Neto)

23 maio 2015

Nobuyuki Tsujii


La Campanella, de Franz Liszt (1811-1886), estudo para piano baseado num tema de Paganini e uma das peças mais difíceis de tocar ao piano, por Nobuyuki Tsujii, pianista japonês cego nascido em 1988

20 maio 2015

O Último Quarup

Coroamento do toro de madeira que simbolizou o falecido indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas, durante o kwarup (conjunto de cerimónias feitas em honra dos mortos) que perto de três mil índios fizeram em sua homenagem na aldeia Yawalapiti, Parque Indígena do Xingu, Brasil, no ano 2003, durante uma semana. Foi o maior kwarup de que há memória no Xingu e o último que se realizou em homenagem a um branco. O toro, que esteve cravado verticalmente no solo da aldeia durante as cerimónias, foi ornamentado com os adornos tradicionais masculinos que se veem na fotografia: um cocar de penas, um colar de caramujos e um cinto de missangas. Mais abaixo, fora do campo de visão da imagem, um setor do toro foi descascado e pintado com desenhos geométricos idênticos aos desenhos corporais que se veem na fotografia seguinte (Foto: Renato Soares)



(Foto: Renato Soares, por ocasião do kwarup realizado em homenagem ao indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas, na aldeia Yawalapiti, Parque Indígena do Xingu, Brasil, no ano 2003)


Quarup para as etnias do Alto Xingu é uma festa em homenagem aos mortos. É a celebração de passagem onde o espírito do homem vai habitar a aldeia dos mortos. Um toro de madeira da árvore “Mari” é cortado e tem a base enterrada no pátio da aldeia. Os homens se juntam ao redor para entalhar e pintar suas formas. Depois ele é adornado com o “Tucanapi”, um cocar de penas de tucano, arara, japim e as penas sagradas do Gavião Real. Também amarram em sua volta abraçadeiras coloridas e o colar de caramujo Muirapeí decoram seu pescoço. Neste momento, o espírito do homenageado ganha direito a uma nova vida nas formas do Quarup. O homem já esta presente para o cerimonial!

Nestes dias que antecedem ao Quarup, a aldeia ganha um novo ritmo. Pode-se escutar por horas a fio o som das flautas Uruá, que ecoa para nós dizendo o que está para acontecer. As cores também fazem parte deste cerimonial. O vermelho do urucum, o negro azulado do jenipapo e o branco retirado do barro de tabatinga se imprimem aos corpos dos homens. Um a um vão se apresentando ao kuarup para celebrarem sua volta. Em um grande cordão cantam e dançam num passo ritmado. Logo todos os convidados estarão presentes para a luta de Huka-huka.

“Huka-huka!”, “Huka-huka!” gritam os lutadores em um som gutural, imitando Djauarum, a onça preta. Frente a frente giram e se provocam mutuamente e no momento exato se atacam. A luta é o encerramento da homenagem, logo o toro será lançado nas águas do rio Tuatuari para de lá caminhar para o Ivati, sua nova morada: o Céu dos Xinguanos.

Em 1998 foi realizado o Kuarup em homenagem a Cláudio Villas Bôas.

Orlando, seu irmão, trouxe para São Paulo o toro de Cláudio, pois queria estar mais tempo a seu lado. Quatro anos depois, com o falecimento de Orlando, Marina Villas Bôas, esposa do sertanista, achou por bem que os dois irmãos pudessem partir para a nova morada, unidos como sempre estiveram. Coube ao fotógrafo Renato Soares montar uma expedição para levar de volta ao Xingu, “Tio Cláudio”, como foi carinhosamente chamado o toro pela equipe. Hoje, no fundo das águas do Tuatuari descansam juntos e em paz os três irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.

Renato Soares, fotógrafo brasileiro


NOTA: Renato Soares, que é um fotógrafo profissional, propõe-se levar a cabo a tarefa de documentar em imagens, de forma sistemática, a diversidade cultural dos mais de 300 povos indígenas do Brasil. Para poder concretizar este ambicioso projeto, Renato Soares solicita a participação material do público. Para tal, abriu uma página no Facebook onde é possível saber as formas de o fazer. A página tem por título Ameríndios do Brasil e o seu endereço é https://www.facebook.com/groups/amerindiosdobrasil/.


(Foto: Renato Soares, por ocasião do kwarup realizado em homenagem ao indigenista brasileiro Orlando Villas Bôas, na aldeia Yawalapiti, Parque Indígena do Xingu, Brasil, no ano 2003)

12 maio 2015

Sereias de Timor-Leste



Trailer do filme Wawata Topu, de David Palazón e Enrique Alonso, com legendas em inglês

Wawata Topu é um filme documentário sobre mulheres de Timor-Leste que fazem pesca submarina de forma artesanal para poderem sobreviver. Além de nos mostrar a atividade piscatória destas mulheres, num mágico bailado subaquático, o filme dá-nos a ver as sua difíceis condições de vida em terra, assim como o papel que elas desempenham na comunidade a que pertencem. Estas pescadoras por necessidade vivem na aldeia de Adara, que fica na costa ocidental da ilha de Ataúro, em Timor-Leste.

Este filme, que tem uma duração de pouco mais de 30 minutos, foi realizado por dois espanhóis: o artista visual David Palazón, que vive em Timor-Leste desde 2008, e o antropólogo Enrique Alonso. Palazón e Alonso contaram com a colaboração do fotógrafo timorense Nelson Turquel e a assistência de Mário Gomes, também timorense e natural de Adara. Nas filmagens feitas debaixo de água, colaboraram igualmente os mergulhadores Nuno da Silva e Beatriz Marciel. O designer gráfico finlandês Fredrik Stürmer também participou na feitura do filme.



Documentário completo Wawata Topu, de David Palazón e Enrique Alonso, sobre as pescadoras submarinas de Adara, na ilha de Ataúro, Timor-Leste. Este filme é falado na língua local. É possível, no entanto, vê-lo com legendas, nomeadamente em espanhol, inglês, francês, alemão ou italiano. Para tal, basta selecionar a lingua desejada clicando nas letras CC que estão no canto inferior do vídeo. Não recomendo que se ativem as legendas em português, porque estas só aparecem durante os primeiros 13 minutos do filme, aproximadamente. Depois disso, as legendas em português somem por completo!

09 maio 2015

Igreja da Atalaia, Vila Nova da Barquinha

Fachada principal da igreja matriz da Atalaia, no concelho de Vila Nova da Barquinha (Foto de autor desconhecido)


O topónimo Atalaia é relativamente frequente em Portugal. São várias as localidades que possuem esta designação: simplesmente Atalaia, Atalaia de Cima, Atalaia de Baixo, Póvoa da Atalaia, Senhora da Atalaia, etc. Pois a Atalaia a que agora me refiro, e que possui uma igreja renascentista verdadeiramente notável, é uma localidade situada a um par de quilómetros do Entroncamento e pertencente ao concelho de Vila Nova da Barquinha.

O Entroncamento é uma cidade muito recente, que deve o seu nome ao facto de se situar no local em que entroncam duas linhas de caminho de ferro, a Linha do Norte e a Linha do Leste. O crescimento da cidade deveu-se não só à sua estação ferroviária, onde muitos passageiros e mercadorias mudam de comboio, mas também e sobretudo à implantação, junto desta estação de transbordo, das maiores e mais importantes oficinas ferroviárias do país.

Como cidade recente que é, implantada num local que em meados do séc. XIX ainda era completamente ermo, o Entroncamento não tem palácios nem catedrais. Poderíamos apressadamente concluir, por isso, que é uma cidade sem pergaminhos. Mas a verdade é que os tem. Tem os pergaminhos mais valiosos que uma cidade pode ter, que são os pergaminhos do trabalho e da honradez. Não é qualquer cidade que se pode orgulhar de manter o sistema ferroviário de um país inteiro a funcionar, fazendo circular as pessoas e as mercadorias entre o norte e o sul e entre o este e o oeste.

O Entroncamento pode não ter monumentos dignos de nota (a igreja matriz da cidade, por exemplo, não conta, pois é, até certo ponto, uma imitação da da Atalaia, tendo sido inaugurada em 1940), mas a região envolvente tem-nos, em grande número e grande qualidade. Basta referir o nome de algumas localidades próximas, tais como Torres Novas, Golegã, Vila Nova da Barquinha, Almourol, Constância, Tomar, etc. À volta do Entroncamento não faltam, portanto, igrejas, castelos, conventos, aquedutos, quintas históricas, etc.

Logo à saída do Entroncamento, para norte, está a Atalaia com a sua igreja. Esta, sim, é uma magnífica igreja original da época do Renascimento, embora apresente ainda alguns vestígos arquitetónicos manuelinos. A distância do Entroncamento à Atalaia é tão curta, que poderemos dizer que a Atalaia faz quase parte da própria cidade do Entroncamento.

A igreja matriz da Atalaia é dedicada a Nossa Senhora da Assunção e foi construída no séc. XVI. A fachada principal da igreja sofreu sérias alterações na década de 30 do séc. XX, mas a sua curiosa divisão em cinco panos e o seu portal renascentista são originais. O portal, que é belíssimo, deve-se a João de Ruão, que foi um grande escultor e arquiteto francês radicado em Portugal, com oficina em Coimbra. A capela-mor da igreja deve-se a um outro grande escultor e arquiteto, que também viveu em Coimbra, o asturiano Diogo de Castilho.


Um pormenor do portal principal, da autoria de João de Ruão (1500-1580) (Foto: Jsobral)

05 maio 2015

Maya Plissetskaya (1925-2015)



Bolero, música de Maurice Ravel e coreografia de Maurice Béjart, por Maya Plissetskaya e o Ballet du XXe Siècle

Há pessoas cujo falecimento eu não consigo deixar passar em branco neste meu blog. Maya Plissetskaya, que foi prima ballerina assoluta do Teatro Bolshoi de Moscovo e que morreu no passado dia 2 de maio, é uma delas. Julgo que nunca a vi ao vivo, confesso, mas os filmes e vídeos que sobre ela me foram dados ver, ao longo da minha vida, provocam-me uma enorme admiração pela forma como ela exprimia a sua arte. Aqui fica, pois, a minha sentida e modesta homenagem a tão extraordinária bailarina.

01 maio 2015

O operário em construção


E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5–8).

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De fato como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construcão.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma subita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão
Era ele quem fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Nao sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua propria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele nao cresceu em vão
Pois além do que sabia
— Excercer a profissão —
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.

E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edificio em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que nao dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uisque do patrão
Que seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era a amiga do patrão.

E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de se esperar
As bocas da delação
Comecaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
— "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
— Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!

— Loucura! — gritou o patrão
Nao vês o que te dou eu?
— Mentira! — disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martirios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construido
O operário em construção

Vinicius de Moraes (1913-1980), «poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil na linha direta de Xangô»



Cena do filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin