28 julho 2019

Poema de Alcabideche

Ó tu que habitas Alcabideche! Oxalá nunca te faltem
cereais para semear, nem cebolas, nem abóboras!
Se és homem decidido precisas de um moinho
que trabalhe com as nuvens sem dependeres de regatos.
Quando o ano é bom, a terra de Alcabideche
não vai além de vinte cargas de cereais.
Se rende mais, então sucedem-se
ininterruptamente e em grupos compactos,
os javalis dos descampados.
Alcabideche pouco tem do que é bom e útil,
como eu próprio, quase surdo, como sabes.
Eis-me em Alcabideche colhendo silvas com uma podoa ágil
[e cortante.
Se te disserem: “gostas deste trabalho?” responde: “sim”.
O amor da liberdade é o timbre de um carácter nobre.
Tão bem me governaram o amor e os benefícios de Abu
[Bacre Almodafar
que parti para um campo primaveril.

Ibn Muqana, de seu nome completo Abu Zayd'Abd ar-Rahmān ibn Muqana, poeta árabe da segunda metade do séc. XI, nascido e falecido em Alcabideche, entre Cascais e Sintra. Traduzido do árabe por Adalberto Alves, in Portugal na Espanha Árabe, de António Borges Coelho, Editorial Caminho, Lisboa

Moinho de vento em Alcabideche, Cascais. Ao fundo, a serra de Sintra (Foto de autor desconhecido)

24 julho 2019

Insensatez

Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, porquê você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

Vinicius de Moraes (1913–1980)


Insensatez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, por João Gilberto

19 julho 2019

Há 90 anos no Japão


Cenas do quotidiano e outras, filmadas com som em 1929 na cidade de Quioto, Japão

11 julho 2019

Mordillo (1932-2019)



Faleceu no passado dia 29 de junho, com 86 anos de idade, o desenhador argentino Guillermo Mordillo, autor de um notável conjunto de desenhos que têm feito as delícias de sucessivas gerações. Praticando um humor puramente visual, cheio de cor e de nonsense, Mordillo teve como temas principais, nos seus desenhos e nos seus filmes, os animais (sobretudo girafas e elefantes), os desportos (com destaque para o futebol e o golfe), o amor e outros aspetos da vida em sociedade, que ele caricaturou de modo insuperável. Estão publicados diversos livros seus em Portugal, sob a chancela da editora Booktree, os quais podem ser adquiridos nas livrarias ou através da internet. Mordillo já não faz parte deste mundo, mas continua a fazer-nos rir de nós próprios. Deixou uma grande saudade.




08 julho 2019

Um homem conhecido


Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça, por João Gilberto (1931–2019)

Assim que eu soube do falecimento de João Gilberto, apressei-me a fazer um post em sua homenagem. Antes que eu tivesse podido publicar o post, fui interrompido, não importa saber por quem. Assim que regressei, a fim de concluir a tarefa que tinha ficado em suspenso, verifiquei que muitas outras pessoas já tinham manifestado o seu pesar e admiração por João Gilberto, na "blogosfera" e nas redes sociais. Suspendi a minha publicação, porque ela viria a ser unicamente mais uma homenagem, a juntar a muitas e muitas outras que já havia, e não trazia nada de novo.

Há pouco, soube que um energúmeno que dá mais valor às armas, que são instrumentos de morte, do que à cultura, que é fonte de vida, disse que João Gilberto tinha sido apenas «um homem conhecido». Agora, sim, tenho razão para manifestar a minha homenagem a João Gilberto. Todas as que se puderem fazer não serão de mais. Na verdade, João Gilberto subiu ao Olimpo, a morada dos deuses como ele, enquanto Jair Bolsonaro tem um lugar reservado no caixote do lixo da história.

04 julho 2019

A Paz

Um capacete de guerra tem um ar carrancudo.
Muito mais bela é uma flor.
Uma flor tem tudo
para falar de paz e de amor.

Mas se virarmos o capacete de guerra
ele será um vaso, e é bem capaz
de ter uma flor num pouco de terra
e falar de amor e de paz.

A paz é uma pomba que voa.
É um casal de namorados.
São os pardais de Lisboa
que fazem ninho nos telhados.

E é o riacho de mansinho
que saltita nas pedras morenas
e toda calma do caminho
com árvores altas e serenas.

A paz é o livro que ensina.
É uma vela em alto mar
e é o cabelo da menina
que o vento conseguiu soltar.

E é o trabalho, o pão, a mesa,
a seara de trigo ou de milho,
e perto da lâmpada acesa
a mãe que embala seu filho.

A paz é quando um canhão
muito feio e de poucas falas,
sente bater um coração
e dispara cravos, em vez de balas.

E é o abraço que dás
no dia em que tu partires,
e as gotas de chuva da paz
no balanço do arco-íris.

A paz é a família inteira
na alegria do lar,
bem juntinho à lareira
quando o inverno chegar.

A paz é a onda redonda
que da praia tem saudades
e muito mais do que a onda
a paz é a vida sem grades.

A paz são aquelas abelhas
que nos dão favos de mel
e todas as papoulas vermelhas
que eu desenho no papel.

Ventoinha, ventarola,
Moinho que faz farinha,
Meninos que vão à escola,
A paz é tua e é minha.

É luar de lua cheia
tocando as casas e a rua,
são conchas, búzios na areia,
a paz é minha e é tua.

É o povo todo unido,
no mundo, de norte a sul,
e é um balão colorido
subindo no céu azul.

A paz é o oposto da guerra,
é o sol, são as madrugadas,
e todas as crianças da terra
de mãos dadas, de mãos dadas,
de mãos dadas.

Sidónio Muralha (1920–1982)


(Imagem de autor desconhecido)

02 julho 2019

Acalanto para Implumes


Acalanto para Implumes, do compositor português Álvaro Salazar, por um agrupamento musical não identificado

Hoje vou correr o risco de publicar um post impopular. Trata-se de uma peça de música contemporânea, ou de vanguarda, ou experimental, ou como lhe quiserem chamar, escrita por um dos mais notáveis compositores portugueses dos sécs. XX e XXI, Álvaro Salazar.

Eu tenho uma enorme dificuldade em falar sobre a música que ao longo do séc. XX se fez. No séc. XX, tomaram-se múltiplos caminhos musicais diferentes, como o neorromantismo, o dodecafonismo, a música eletroacústica, as experiências radicais de John Cage, a música tipo "noise", o minimalismo e muitos outros, não necessariamente por esta ordem. Algumas obras seguiram regras rigorosamente matemáticas. Outras romperam com todas as regras e tornaram-se completamente aleatórias. Outras mais procuraram imitar os sons do mundo real. Outras ainda procuraram seguir regras criadas ad hoc pelos seus autores. E por aí adiante, num universo sonoro caótico, que foi o que caracterizou musicalmente o séc. XX e continua a caracterizar o séc. XXI. Seguiram-se tantos caminhos, fizeram-se tantas experiências...

No entanto, ao público em geral quase tudo isto parece igual, uma cacofonia sem pés nem cabeça, simples barulho que não lhe diz nada e que recusa. Quem beneficiou com este caos musical foi a chamada música popular, qualquer que ela seja: tango, rock, pop, pimba, hip-hop ou o que se quiser. O público rejeita liminarmente a música contemporânea e agarra-se a uma música que lhe fale ao coração e não apenas ao cérebro, que tenha pelo menos uma linha melódica ou um ritmo, por exemplo; enfim, que tenha um padrão que as pessoas possam identificar e em que se reconheçam. A música contemporânea, essa, tornou-se extremamente elitista, que só é ouvida por um número ínfimo de pessoas, por mais genial que ela seja, e às vezes é mesmo.

Álvaro Salazar é um compositor nosso contemporâneo, nascido no Porto em 1938, que se dedica a escrever música de vanguarda, ou assim entendida como tal. É um dos maiores autores portugueses do género, a par de Jorge Peixinho, Emanuel Nunes, Cândido Lima e outros. Para ajudar (ou não) a compreender a peça que aqui proponho ouvir, permito-me reproduzir algumas afirmações suas, que se encontram na página que lhe é dedicada no portal do Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa. Passo a transcrever palavras de Álvaro Salazar:
«...desde sempre considerei a música, para além de uma via profissional, uma forma de estar no mundo e de tentar compreendê-lo. A música não é um mero tricot mental, uma actividade desligada do todo onde arte, ciência, história, filosofia e política dialogam, interagem e se completam.»