31 julho 2011

Marialva

Vista parcial do interior do castelo de Marialva (Foto: Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro)

Marialva é uma freguesia do concelho de Mêda, distrito da Guarda. Marialva é, também e sobretudo, uma vila histórica, que possui, talvez, as ruínas medievais mais belas e impressionantes que existem em Portugal: as ruínas do seu castelo.

A origem de Marialva perde-se na noite dos tempos. A povoação já existia no tempo dos romanos, que lhe chamavam Civitas Aravorum. Este nome remete para a designação duma tribo de lusitanos que habitava a região, a tribo dos aravaros.

Em Marialva estiveram os mouros, que lhe deram o nome de Malva, e a partir do séc. XI passaram a estar os cristãos, com a conquista empreendida pelo rei Fernando Magno, de Leão.

Com a independência de Portugal, acontecida no séc. XII, Marialva passou a fazer parte do novo reino. Ganhou então uma enorme importância militar e estratégica, pois dominava um extenso trecho da fronteira, que lhe passava muito próxima, com o reino de Castela. Por causa disso, o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, fortificou a vila, povoou-a e deu-lhe carta de foral, na qual se incluíam vastos privilégios. Marialva passou então a ficar na dependência direta do rei de Portugal e não da nobreza. Esta dependência direta da autoridade real era uma vantagem para a vila, pois o rei cobrava menos impostos do que os nobres. Além disso, os habitantes gozavam de uma certa autonomia e liberdade de ação, não estando sujeitos aos variados abusos e humilhações que os membros da nobreza costumavam infligir aos moradores das suas terras.

A importância de Marialva começou a declinar logo no reinado de D. Dinis, no séc. seguinte, quando as terras de Riba Côa, situadas para leste da vila, passaram também a fazer parte do reino de Portugal, em troca com a cidade de Tui, na margem direita do Rio Minho, a qual deixou de ser portuguesa. A fronteira entre Portugal e Castela deixou então de passar nas imediações de Marialva, tendo sido deslocada várias dezenas de quilómetros mais para leste. Em vez de Marialva, foi Pinhel que passou a constituir a fortificação mais importante na defesa do território nacional por aquelas paragens. Marialva entrou, portanto, em decadência, foi-se esvaziando de habitantes e acabou, mesmo, por deixar de ser sede de concelho, no séc. XIX, passando a ser apenas uma freguesia do concelho de Mêda.

O castelo de Marialva era, de facto, uma vila fortificada inteira, ou quase. No interior das suas muralhas havia uma casa da câmara, um pelourinho, uma cadeia, igrejas, um cemitério e tudo o mais que se requeria numa comunidade urbana em Portugal, na Idade Média. As ruínas de todos estes antigos equipamentos sociais, além das de diversas ruas e habitações, podem hoje admirar-se no desabitado interior do castelo. Os moradores atuais de Marialva vivem fora das muralhas e não dentro.

Aquilo que sentimos quando visitamos o castelo de Marialva foi magistralmente descrito por José Saramago. Subscrevo completamente as palavras do grande escritor. Passo, portanto, a transcrever algumas das belas palavras que, a respeito de Marialva, Saramago escreveu no seu livro Viagem a Portugal:

«O viajante entra no castelo, (...) vai à descoberta do que, a partir deste dia, ficará sendo, no seu espírito, o castelo da atmosfera perfeita, o mais habitado de invisíveis presenças, o lugar bruxo, para dizer tudo em duas palavras. Neste largo onde está a cisterna, onde o pelourinho está, dividido entre a luz e a sombra, adeja um silêncio sussurrante. Há restos de casas, a alcáçova, o tribunal, a cadeia, outros que não se distinguem já, e é este conjunto de edificações em ruínas, o elo misterioso que as liga, a memória presente dos que viveram aqui, que subitamente comove o viajante, lhe aperta a garganta e faz subir lágrimas aos olhos. Não se diga daí que o viajante é um romântico, diga-se antes que é homem de muita sorte: ter vindo neste dia, nesta hora, sozinho entrar e sozinho estar, e ser dotado de sensibilidade capaz de captar e reter esta presença do passado, da história, dos homens e das mulheres que neste castelo viveram, amaram, trabalharam, sofreram, morreram. O viajante sente no Castelo de Marialva uma grande responsabilidade. Por um minuto, e tão intensamente que chegou a tornar-se insuportável, viu-se como ponto mediano entre o que passou e o que virá. Experimente quem o lê ver-se assim, e venha depois dizer como se sentiu.»

Muito antes de Saramago, já o arquiteto Francisco Keil do Amaral tinha escrito sobre Marialva as seguintes palavras, que se podem ler no Guia de Portugal, 5º Volume, II Tomo:

«Há em Portugal castelos mais impressionantes, igrejas de outra imponência e beleza, solares de maior aparato, fontes ao pé das quais as de Marialva não passam de parentes pobres. Mas não são muitos, neste nosso rincão do Mundo, os conjuntos de ruínas dum antigo burgo fortificado, assim chegados até nós sem marcas profundas de evolução. Tão-pouco são frequentes os exemplos de pequenos recintos públicos em que o jogo das diferenças de nível e dos volumes, a curiosa «desarrumação» dos elementos valorizadores e uma cuidadosa espontaneidade, se conjugam com tamanha singeleza e encanto. Os arranjos urbanos que antecedem a porta de S. Miguel Arcanjo, do castelo e os que dentro deste enquadram, completam e dignificam o solar da administração e da justiça são expoentes altos dum sábio aproveitamento das condições naturais, valorizadas com meios modestos, sem grandiloquência nem rigidez formal, mas duma rústica harmonia, a um tempo forte e imaginosa (...).»

(Foto: RTP)

24 julho 2011

Uma pequena divagação pela música de África

Um rapaz de etnia dinka com o seu gado, no agora independente Sudão do Sul (Foto de autor desconhecido)

Façamos uma pequena divagação pela música popular africana, tanto urbana como de raiz tradicional, escutando as seguintes canções:

Yinga na Nabu, por Agele Hot, do Sudão do Sul (gravação encontrada em Awesome Tapes from Africa);

Sécheresse, por Hamadt Ka, da Mauritânia (gravação encontrada em sahelsounds);

Não, não senhor, pelo conjunto África Negra, de São Tomé e Príncipe (gravação encontrada em African Music Treasures);

Uma canção kikongo, por um grupo de pessoas da República Democrática do Congo (gravação encontrada em African Music Treasures);

Milhorró, pelo conjunto Os Kiezos, de Angola (gravação encontrada em MuximAngola).

Na imagem que se segue, pode ver-se o conjunto musical Os Kiezos (a palavra kiezo significa "vassoura" em quimbundo), de Luanda, que é uma referência incontornável na história da música popular urbana de Angola. Esta fotografia foi encontrada em Angola Field Group.

20 julho 2011

António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria

Estudo de um fresco para o Café Rialto, na cidade do Porto, por Guilherme Camarinha (1912-1994). O poeta cabo-verdiano Daniel Filipe foi frequentador habitual deste antigo café, hoje agência bancária. No Café Rialto reunia-se uma tertúlia literária que, além de Daniel Filipe, incluía Egito Gonçalves, Papiniano Carlos, Luís Veiga Leitão, Ernâni Melo Viana e António Rebordão Navarro. Este conjunto de autores editou, entre 1957 e 1961, nove cadernos de poesia a que deu o título de "Notícias do Bloqueio".

"Como qualquer pessoa, que se preza, também tenho o meu «café»: um desses enormes «cafés» do Porto, com paredes de espelhos e a nota requintada de uns murais de Dordio, Camarinha e Abel Salazar. Fica no centro – o que é norma, aliás, numa cidade que persistentemente se recusa a ter vida para além dos limites da Baixa. Da mesinha envergonhada, que é a nossa, vagamente perdida entre conversas de futebol e negócio, vão para toda a gente «notícias do bloqueio».

Pois foi nesse «café», igual a tantos outros, que vim a conhecer António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria e assunto desta crónica. Que poderei dizer-vos dele? A idade? Doze anos. O talhe? Magro. O rosto? Triste. O drama? Um irmão na Tutoria, preso por atirar bombas nas festas de S. João. A mãe doente. A difícil conquista do pão de cada dia.

Podeis imaginá-lo, deveis imaginá-lo – vós que tendes casa, alegria, emprego, vitalidade, esperança. Imaginai-o vestido de azul desbotado – calças e blusa talhadas num velho «macaco» laboriosamente cerzido; imaginai-o iludindo o frio, envolto num casaco cinzento, que lhe chega aos joelhos. Imaginai, sobretudo, o seu puro e digno jeito comercial: o gesto, a um tempo, doce e sobranceiro de quem dá sempre alguma coisa em troca e não teme, por isso, a humilhação ou o aviltamento.

António Fernandes Pinto, vendedor por conta própria – que lhe pertence o conteúdo da pequena caixa de sapatos, a sua vitrine e armazém: minúsculo exemplo do que pode o Homem, do que vale o Homem. Nas nossas relações comerciais, nas discutidas transacções de pentes, atacadores e latas de pomada, sou eu sempre o devedor – embora pague o preço combinado. Mas creio, António, que apenas poderei saldar a minha dívida com a moeda que nenhum Banco aceitará – pois só tem curso no coração humano: o amor. É amando-te, e amando os meninos tristes, como tu, que eu e as outras pessoas crescidas poderemos, talvez, arrumar as nossas contas."

(Daniel Filipe (1925 – 1964), poeta e jornalista cabo-verdiano. In Discurso sobre a cidade (Editorial Presença, 1977), recolha de crónicas escritas por Daniel Filipe para o Diário Ilustrado, jornal que se publicou em Lisboa entre 1956 e 1963.)

16 julho 2011

Música de compositoras turcas

Painel de azulejos existente no harém do palácio imperial de Topkapı, em Istambul, Turquia (Foto: Ms. Adventures in Italy)

Há dias, ouvi num programa da Radiodifusão Austríaca, através da Internet, duas peças de música turca. Estas peças foram compostas por duas filhas de um sultão otomano, mas eram em tudo idênticas às que se tocavam na corte imperial austríaca. As autoras das peças eram filhas do sultão Murad V e chamavam-se Hatice Sultan (1870-1928) e Fehime Sultan (1875-1927).

Nada -- absolutamente nada -- nas peças tocadas, faria supor uma origem que não fosse vienense. Uma das peças era uma valsa e a outra um galope. Ambas eram tal e qual como a música palaciana que, naquela época, se praticava nos salões dourados de Hofburg e de Schönbrunn, em Viena. A locutora do programa, como austríaca que era, estava babada com tão grande semelhança. Apesar disso, a qualidade das peças era muito medíocre, muitíssimo inferior à de qualquer uma das obras compostas pela família Strauss.

O que mais me chamou a atenção nas peças apresentadas, no entanto, não foram as suas semelhanças com a música de salão vienense, mas sim o facto de elas terem sido compostas por mulheres e não por homens. É certo que não se tratava de duas mulheres quaisquer, mas sim de duas princesas, mas mesmo assim o facto é de realçar, pois na sociedade turca daquela época as mulheres estavam completamente subjugadas aos homens. Estas duas princesas, nomeadamente, estavam condenadas a passar toda a sua vida fechadas em haréns: primeiro no harém do sultão seu pai, onde nasceram, e depois no de um outro sultão, emir ou califa, com quem viessem a casar. Elas eram princesas, sim, mas eram sobretudo e apesar de tudo escravas. Escravas de luxo, mas escravas, pertencentes a senhores que colecionavam esposas e concubinas como quem coleciona selos.

Procurei informar-me mais sobre estas duas compositoras turcas, pesquisando na Internet, mas fiquei a "apanhar bonés"... Como se calcula, os meus conhecimentos de turco são completamente nulos e o tradutor do Google também deixou muitíssimo a desejar no que a esta língua diz respeito. Não encontrei nada sobre elas, mas encontrei referências a mais duas compositoras da Turquia: uma outra princesa, chamada Refia Sultan (1842-1880), e Kemani Kevser Hanım (1887-1963).

A primeira obra que pretendo dar a ouvir a quem me visita é de Refia Sultan. Trata-se de uma peça muito curta, muito bela e dotada de uma enorme delicadeza.



A seguir, proponho que se escute uma peça de Kemani Kevser Hanım, chamada Nihavend Longa, que é uma dança verdadeiramente endiabrada. Aqui ela é interpretada por uma orquestra que conjuga instrumentos orientais e ocidentais.



Finalmente, proponho que se volte a escutar a peça Nihavend Longa, de Kemani Kevser Hanım, mas desta feita interpretada pelo violinista turco Cihat Aşkın.


09 julho 2011

Francisco de Holanda

A Ceia do Senhor, iluminura de Francisco de Holanda, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil

Francisco de Holanda, nascido em Lisboa em 1517 e falecido na mesma cidade em 1585, foi uma das maiores figuras do Renascimento português. Foi um notável artista plástico, filósofo, ensaísta, arquiteto, etc. Em Itália, chegou a trabalhar com Miguel Ângelo, de quem se considerava discípulo.


O segundo dia da criação do mundo segundo Francisco de Holanda, em De Aetatibus Mundi Imagines, Biblioteca Nacional de España, Madrid, Espanha

Além de ser dotado de uma enorme sensibilidade artística, Francisco de Holanda tinha também um espírito racional e prático, como se pode atestar na sua obra intitulada Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa (o que em português moderno quer dizer, mais ou menos, "Do Ordenamento que Falta à Cidade de Lisboa"), que foi o primeiro ensaio de urbanismo publicado na Península Ibérica.


Desenho de uma ponte concebida para Sacavém, nos arredores de Lisboa, por Francisco de Holanda, em Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa

Como pintor e desenhador, Francisco de Holanda insere-se mais na escola do Maneirismo do que na do Renascimento. Isto é por demais eloquente num seu magnífico e iconoclasta desenho, que ele fez para o seu livro De Aetatibus Mundi Imagines, no qual os deuses gregos do amor, Afrodite e Eros, aparecem representados como cadáveres putrefactos. Ora uma representação assim nunca passaria, sequer, pela cabeça de um artista do Renascimento propriamente dito. Afrodite apareceria sempre como uma mulher jovem, de corpo belo e sensual, e Eros como um menino rechonchudo e cheio de vida.


Os deuses Afrodite e Eros, representados como cadáveres em decomposição, por Francisco de Holanda, em De Aetatibus Mundi Imagines, Biblioteca Nacional de España, Madrid, Espanha

Quase nada existe em Portugal da obra deixada pelo português Francisco de Holanda. Durante os 60 anos em que durou a dominação espanhola sobre Portugal, muitas preciosidades deste país foram levadas para Espanha. A maior parte dos originais de Francisco de Holanda também. É em Espanha que eles estão, não em Portugal.


Auto-retrato de Francisco de Holanda, em baixo à esquerda, na última página do livro De Aetatibus Mundi Imagines, Biblioteca Nacional de España, Madrid, Espanha

02 julho 2011

A princesa, o embondeiro e os caurins

Um embondeiro ou baobá (Foto de autor desconhecido)

A União Latina é uma organização internacional, criada em 1954 com a finalidade de promover as línguas e as culturas do mundo latino, isto é, dos países que têm uma língua latina como idioma oficial. Presentemente, a União Latina tem 36 estados membros, entre os quais se contam todos os estados de língua oficial portuguesa.

Frutos de embondeiro, a que se dá o nome de múcuas (Foto: Dadobat)

No seu sítio na Internet, a União Latina apresenta, entre outras propostas, seis contos ilustrados, destinados a crianças do primeiro ciclo do ensino secundário, em seis línguas românicas diferentes: catalão, espanhol, francês, italiano, português e romeno. De entre os contos apresentados, permito-me destacar o conto chamado A princesa, o embondeiro e os caurins. Este conto, juntamente com alguns exercícios simples, que têm a finalidade de promover um melhor entendimento entre os falantes das seis línguas citadas, pode ser lido e ouvido na seguinte página:

http://dpel.unilat.org/DPEL/Creation/IR/Module5/index.pt.htm


Algumas conchas marinhas chamadas caurins (Foto de autor desconhecido)