30 julho 2018

Ana e António

A Ana e o António trabalhavam
na mesma empresa.
Agora foram ambos despedidos.
Lá em casa, o silêncio sentou-se
em todas as cadeiras
em volta da mesa vazia.
«Neo-Realismo!» dirão os estetas
para quem ser despedido
é o preço do progresso.
Os estetas, esses, nunca
serão despedidos.
Ou julgam isso, ou julgam isso.

Mário Castrim (1920–2002)


NOTA — Este poema é de certa forma datado. Ele reflete um tempo em que os "estetas" (como Mário Castrim lhes chama) se opunham ferozmente aos neorrealistas. Os "estetas" acusavam os neorrealistas de fazerem uma literatura de má qualidade, primária, sem profundidade psicológica e maniqueísta. Os neorrealistas respondiam aos seus opositores (de entre os quais se destacavam os surrealistas), acusando-os de fazerem uma literatura apenas decorativa, porque passava ao lado da vida das pessoas, e de quererem manter-se neutrais, evitando tomar partido, mas acabando objetivamente por tomar o partido dos poderosos contra os fracos. Esta oposição entre "estetas" e neorrealistas era mais do que uma simples oposição entre forma e conteúdo, em que os "estetas" privilegiariam a forma e os neorrealistas privilegiariam o conteúdo. Esta oposição assumiu contornos ideológicos, políticos e filosóficos. Seja como for, quase toda esta polémica pertence já ao passado, pois há bons e maus escritores em todas as correntes literárias, incluindo a corrente neorrealista. Alves Redol, por exemplo, foi um escritor indesmentivelmente neorrealista e no entanto foi um grande escritor. O mesmo se poderá dizer de José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes e outros.



25 julho 2018

Realejos


Um realejo com o seu tocador (Foto: Ullrich Schäfers)

Quando eu estava no início da minha vida profissional, fiz um estágio em Viena. Trabalhava muito perto do rio Danúbio, quase em frente ao edifício da ONU (sede da Agência de Energia Atómica, entre outras), e morava num bairro situado no sul da cidade, o 10.º bairro (Bezirk), que se chamava Favoriten. Este era um puro bairro residencial, pacato e acolhedor, com muito comércio local, um mercado, pequenos jardins, etc.

Uma sexta-feira à tarde, chegava eu do trabalho, pronto para gozar um merecido fim de semana apanhando sol nas margens do Danúbio (se estivesse bom tempo) ou visitando os incontáveis monumentos e museus que a capital austríaca possui (se o tempo não estivesse assim tão bom), quando apanhei uma enorme surpresa à saída da estação do metro: cá fora, dezenas de realejos e órgãos mecânicos tocavam festivamente, numa cacofonia maravilhosa. Desde a Reumannplatz até à Keplerplatz, todos estes instrumentos mecânicos se alinhavam, uns mais pequenos, outros maiores (julgo não estar a exagerar, mas creio que lá havia órgãos mecânicos com mais de dois metros de altura), tocados por sorridentes homens e mulheres que usavam trajos tradicionais ou estavam vestidos de forma mais ou menos apalhaçada. A maior parte deles era da Alemanha, mas também havia austríacos (claro) e suíços. Foi uma das muitas surpresas que tive em Viena, e seguramente foi uma das mais agradáveis.

Este inesperado "concerto" de realejos e afins, que tanto me encantou, constituiu uma animação de rua organizada pela Câmara Municipal de Viena. Perguntar-se-á: uma animação de rua em Favoriten, tão longe do centro histórico da cidade e das multidões de turistas que o visitam? É verdade, foi em Favoriten e não no centro histórico que este "concerto" teve lugar, para alegrar quem vivia e trabalhava em Viena.

Agora pergunto eu: por que raio é que as animações de rua que as Câmaras Municipais do Porto e de Lisboa organizam são sempre na Baixa das respetivas cidades? O Porto e Lisboa são só a Baixa, é? O resto da cidade não conta? Não conta. Para as respetivas edilidades, o Porto é a Baixa e o resto é paisagem, Lisboa é a Baixa e o resto é paisagem. Porque não há animações de rua em Campanhã, em Paranhos ou em Aldoar, em Benfica, em Carnide ou no Lumiar? Viena deu o exemplo.


Valsa Rosas do Sul, de Johann Strauss Filho (1825–1899), tocada por dois realejos em sincronia. Imagens da cidade de Viena, uma cidade mágica

Marcha Radetzky, de Johann Strauss Pai (1804–1849), tocada por um realejo

Um órgão mecânico tocando uma peça não identificada

22 julho 2018

António Carneiro


Sinfonia Azul, 1910, óleo sobre tela de António Carneiro, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Eu não sei que feitiço têm as musas do Tâmega, que faz com que nas margens deste belíssimo rio tenha nascido um conjunto de personalidades marcantes da cultura portuguesa. Amadeo de Souza-Cardoso era de Amarante, Teixeira de Pascoes era de Amarante, Agustina Bessa-Luis é de Amarante, etc., e também António Carneiro era de Amarante.

António Teixeira Carneiro Júnior foi um pintor e desenhador nascido em 1872 que se tornou um dos maiores artistas plásticos portugueses. Estudou no Porto, onde foi aluno de Marques de Oliveira e de Soares dos Reis, entre outros, e a seguir foi para Paris continuar os seus estudos, com mestres como Benjamin Constant. De volta a Portugal, tornou-se ele mesmo professor na Academia de Belas-Artes do Porto. Faleceu nesta última cidade em 1930.

Amigo pessoal do seu conterrâneo Teixeira de Pascoaes, António Carneiro pode, até certo ponto, ser considerado um equivalente, para as artes plásticas, do que Pascoaes foi para a poesia. António Carneiro rompeu com a corrente naturalista, que era predominante no seu tempo, e tornou-se o único cultor em Portugal da pintura simbolista. Em vez de procurar representar fielmente uma dada paisagem, uma certa cena histórica ou um determinado rosto, António Carneiro procurou exprimir a espiritualidade que emana dessa paisagem, dessa cena histórica ou desse rosto. Por isso ele foi chamado «retratista de almas».

A vasta obra de António Carneiro encontra-se espalhada por diversos museus e instituições, sobretudo em Portugal e no Brasil, mas atrevo-me a destacar a sua casa-oficina na zona do Bonfim, no Porto, numa rua que tomou o seu nome e onde se encontra uma boa parte do seu espólio, incluindo cerca de três centenas de obras de arte. Transformada em museu, a Casa-Oficina António Carneiro pertence atualmente à Câmara Municipal do Porto, mas encontra-se temporariamente encerrada para obras de reabilitação.


Autorretrato, 1918, óleo sobre tela de António Carneiro, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Portugal


Melgaço, c. 1921, óleo sobre tela de António Carneiro, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

20 julho 2018

O ritual da arranhadura


Uma "arranhadeira", constituída por uma calote de uma cabaça com uma fiada de dentes de um peixe chamado cachorra, que vive em alguns rios do Brasil. Ao contrário do que algumas pessoas pensam, a cachorra não é uma piranha, embora os dentes usados na "arranhadeira" possam parecer de piranha (Foto: Ysani Kalapalo)

O ritual da arranhadura é um ritual praticado pelos povos índios que vivem no Parque Indígena do Xingu, Mato Grosso, Brasil. É um ritual muito doloroso, que consiste em arranhar o corpo de uma pessoa com uma fiada de dentes de um peixe chamado cachorra (também chamado peixe-vampiro) até sangrar. Nos homens, o corpo é arranhado com todo o vigor; nas mulheres, um pouco mais suavemente; nas crianças, só de brincadeira. Após a arranhadura, a pele ensanguentada é lavada com uma infusão de uma determinada planta, para aliviar a dor e acelerar a regeneração da pele. Os índios creem que este ritual promove o revigoramento físico e mental da pessoa arranhada.




Uma das ocasiões em que é praticado o ritual da arranhadura é o kuarup, que consiste num conjunto de ritos e cerimónias destinados a homenagear os mortos que deixaram este mundo no ano que passou. Todos os anos se realiza um kuarup no Parque Indígena do Xingu. O de 2018 irá ser realizado entre os dias 25 e 29 de julho próximos, na aldeia do povo Kamayurá. O kuarup culmina com a luta corpo a corpo xinguana, chamada huka-huka, na qual competem os melhores lutadores das diversas aldeias do parque. No vídeo que se segue podemos ver uma reportagem sobre um kuarup ocorrido há vários anos na mesma aldeia onde irá decorrer o deste ano. Antes do huka-huka, os lutadores são submetidos ao ritual da arranhadura.




NOTA: O Youtube requer que, para podermos assistir a alguns vídeos disponíveis na sua plataforma, tenhamos que desativar o modo restrito, porque considera que esses vídeos podem incluir conteúdo impróprio. No caso concreto do segundo vídeo que aqui proponho, é colocada esta exigência, a qual é ridícula, pois a nudez que nele se observa é totalmente inocente.

14 julho 2018

Donas, Fundão


Portal principal da Casa do Paço, Donas, Fundão. O brasão dos Pancas, que se vê no canto superior esquerdo, é moderno e está a mais, na minha opinião. Pelo menos deviam fazê-lo mais discreto (Foto: Filipunes)

O Fundão é uma pequena cidade que não tem muito que ver, mas onde eu me sinto muito bem. É uma cidade  muito acolhedora na Cova da Beira, aconchegada entre as serras da Estrela e da Gardunha e rodeada de campos de cultivo, cerejeiras, castanheiros, etc. As cerejas refrescam-nos na primavera e princípio do verão, as castanhas aquecem-nos no outono e princípio do inverno. É terra boa, o Fundão.

Para mim, o maior monumento da cidade é (ou melhor: foi) o Jornal do Fundão, semanário que foi a obra da vida de António Paulouro (1915–2002) e que durante muitos anos foi um espaço de liberdade e de resistência contra a ditadura do Estado Novo, apesar da feroz censura, das multas e das suspensões de que foi alvo ao longo dos tempos.

De resto, quanto a monumentos "de pedra e cal", como se costuma dizer, o Fundão tem pouco que ver, como disse, além do chafariz das oito bicas e de algumas vetustas capelas graníticas, tão simples quanto belas, que se encontram espalhadas pela cidade e arredores.


Portal e janela da fachada principal da Casa do Paço, Donas, Fundão (Foto: Direção Geral do Património Cultural)

Muito perto da cidade do Fundão, podemos admirar um valioso conjunto arquitetónico na povoação das Donas. Além de serem terra adotiva do secretário-geral da ONU António Guterres, que nelas tem um pequeno espaço museológico, as Donas possuem uma casa em estilo manuelino, a Casa do Paço, assim como uma capela lateral, a capela dos Pancas, que também é manuelina, na igreja matriz da localidade.

A Casa do Paço das Donas pertenceu aos morgados de Pancas, familiares de D. Jorge da Costa, o famoso Cardeal Alpedrinha. D. Jorge da Costa, que no início da sua vida foi guardador de porcos, tornou-se um homem rico e poderoso e foi bispo em Évora, arcebispo em Lisboa e posteriormente, em Roma, foi feito bispo de várias outras dioceses, assim como arcebispo de Braga sem pôr os pés em Braga. Ainda em Roma, foi também feito cardeal de nomine. Morreu no ano 1508 com 102 anos de idade, encontrando-se sepultado em Roma.


Janela de canto, em estilo manuelino, da Casa do Paço, Donas, Fundão (Foto: Direção Geral do Património Cultural)


Esta janela florida pode não ser manuelina, mas é muito bonita. Donas, Fundão (Foto de autor desconhecido)

10 julho 2018

O Inferno


Inferno, c.1520, óleo sobre madeira de autor anónimo, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Portugal

O Inferno é uma pintura renascentista portuguesa, mais precisamente um óleo sobre madeira de carvalho, que é da autoria de um pintor anónimo português e que faz parte do espólio do Museu Nacional de Arte Antiga (vulgo Museu das Janelas Verdes), em Lisboa.

Embora não se saiba quem foi o seu autor, é possível datar este painel entre os anos de 1510 e 1520. Por um lado, Satanás surge representado com um cocar de penas na cabeça, à semelhança dos índios tupinambás, o que sugere que este quadro é posterior à chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil em 1500. Por outro lado, a profusão de corpos nus, que nos aparecem representados de uma forma muito realista, sugere que este quadro é anterior ao concílio de Trento. Este concílio, que decorreu entre 1545 e 1563, resultou de uma reação da Igreja de Roma à Reforma luterana e emitiu um grande número de dogmas e decretos, tendo colocado um ponto final, ou quase, à representação de nus na arte de cariz religioso. O próprio estilo do painel e a sua semelhança ou dissemelhança com outras pinturas portuguesas do séc. XVI permitem estreitar o intervalo de tempo em que ele terá sido pintado. É um quadro do Renascimento, por um lado, mas mostra‑nos uma representação do Inferno que muito deve ainda à mentalidade medieval, por outro.

O Inferno é um quadro a todos os títulos notável, não só pela sua superior qualidade técnica e artística, mas também por tudo o que nos revela sobre a mentalidade das pessoas que viveram em Portugal nos inícios da centúria de quinhentos. Em volta de uma caldeira de água a ferver, que ocupa o centro do quadro, vemos todo um conjunto de suplícios sendo infligidos por diversos demónios às almas dos pecadores. No fundo, o que este quadro representa é o castigo dos sete pecados mortais, sob a presidência de Satanás, que se vê representado em último plano, atrás da caldeira referida.

Nem sempre é fácil identificar os pecados mortais representados neste quadro. Se a avareza é facilmente identificada pelo homem a quem um demónio obriga a engolir moedas, já a caldeira de água a ferver no centro ou as mulheres que estão no canto superior esquerdo de cabeça para baixo e com o cabelo a arder são de mais difícil interpretação. Enfim, uma das interpretações mais aceites é a que se apresenta nos pormenores que se seguem.


Queda no Inferno das almas dos pecadores

Satanás presidindo ao Inferno

Castigo do pecado da gula

Castigo do pecado da avareza

Castigo do pecado da luxúria (adultério, representado por um casal amarrado, em primeiro plano, e homossexualidade, representada por um jovem acorrentado a um frade, em segundo plano)

Castigo do pecado da ira

Castigo do pecado da inveja

Castigo do pecado da preguiça

Castigo do pecado da soberba

06 julho 2018

Homens-entulho

Para além de nós há o mundo
e durante muito tempo ignoramos o mundo
esquecemos as valas comuns que toquei ao de leve
muito ao de leve
não fosse os mortos magoar.
Nas margens verdes do Dniepre
regadas de lágrimas
onde cresceram flores sobre o chão de Babi-yar
umas de sal e água no mar quente de Bissau
bordando a lodo o cais de Pidjiguiti
outras de sangue esguichado das cabeças
à tona de água em último respiro
outras de terra ensopada em rios de morte
no ventre de um Wiriyamu fuzilado
na penugem de Chinteya
nas balas de Vaina
no esventrar de Zostina
nos gestos de um vulcão de raiva
em cada taça de vingança
que nem a morte amansa
nos túmulos da Palestina.
Sangue de Cristo
In Nomine Patris
mártires sem martirológio
corpos fecundos
erguei bem alto os ossos descarnados
que a morte é de acordar
e semear flores na aposta de outros mundos
erguei os rostos mirrados dos famintos da Terra
dos homens-entulho da grande vala comum
cavada no peito dos Humilhados e Ofendidos
pelos homens sem rosto
rasgada no ventre dos Condenados da Terra
pelos homens sem alma.

Adão Cruz, médico, poeta e pintor. Foi médico militar na Guiné por ocasião da Guerra Colonial


NOTAS

Dniepre - Rio com cerca de 2200 km de extensão, que nasce na Rússia e desagua no Mar Negro, depois de atravessar a Bielorrússia e a Ucrânia. Nas suas margens travou-se, em 1943, uma das maiores e mais violentas batalhas de toda a 2.ª Guerra Mundial. Estiveram envolvidos cerca de 4 milhões de militares na batalha, que se saldou numa vitória da União Soviética sobre a Alemanha.

Babi-Yar - Ravina existente em Kiev, na Ucrânia, onde durante a 2.ª Guerra Mundial os nazis massacraram 100 000 a 150 000 pessoas no total. Só em 29–30 de setembro de 1941, foram mortos em Babi-Yar 33 771 judeus.

Pidjiguiti - Cais do porto de Bissau, onde em 3 de agosto de 1959 a PIDE e outras forças mataram 40 a 70 trabalhadores portuários em greve, além de terem provocado cerca de cem feridos.

Wiriyamu
- Povoação da província de Tete, em Moçambique, onde, juntamente com outras povoações vizinhas, em 16 de dezembro de 1972 foram mortas, pelo menos, 385 pessoas civis, por serem suspeitas de apoiarem a FRELIMO. Este massacre foi revelado pelo jornal britânico The Times, de Londres, em 10 de julho de 1973.


Chinteya
, Vaina e Zostina - Nomes de pessoas assassinadas no massacre de Wiriyamu, que sofreram uma morte particularmente cruel.



(Pintura de Adão Cruz)

02 julho 2018

Annie Leibovitz


John Lennon e Yoko Ono, fotografados na manhã de 8 de dezembro de 1980, o dia em que John Lennon foi assassinado (Foto: Annie Leibovitz)

Annie Leibovitz é uma fotógrafa norte-americana, famosa pelos seus retratos de celebridades do mundo da arte e do espetáculo. É o profissional de fotografia mais bem pago do mundo.

Muitos dos retratos que Annie Leibovitz faz são insólitos, mas mostram-nos sempre as personalidades fotografadas cheias de uma intensa humanidade. Annie Leibovitz revela-nos, portanto, os seres humanos que se escondem por detrás dos nomes que as luzes da ribalta e as lantejoulas do showbiz tornaram famosos.


Demi Moore nua e com o corpo pintado (Foto: Annie Leibovitz)


Whoopi Goldberg numa banheira cheia de leite (Foto: Annie Leibovitz)


The Blues Brothers (John Belushi e Dan Aykroyd) (Foto: Annie Leibovitz)


Dolly Parton e Arnold Schwarzenegger (Foto: Annie Leibovitz)


Jennifer Hudson, a primeira cantora negra a figurar na capa da revista Vogue (Foto: Annie Leibovitz)


O cantor pop Sting (Foto: Annie Leibovitz)