28 fevereiro 2007

As pedras parideiras

A Frecha da Mizarela vista do local das pedras parideiras (Foto: Filomena)

«Pedras parideiras» é a designação popular para um fenómeno geológico raríssimo, que em Portugal só ocorre nas proximidades da Frecha da Mizarela, na Serra da Freita, mais concretamente junto de uma pequena aldeia chamada Castanheira, que pertence à freguesia de Albergaria da Serra, concelho de Arouca, distrito de Aveiro. No resto da Europa, este fenómeno só acontece num ponto da Rússia. Fora da Europa, ocorre, por exemplo, no sul da China.

No referido local do alto da Serra da Freita existe um afloramento granítico, que tem disseminados pelo seu interior uns nódulos rochosos revestidos de biotite (mica preta) e com uma forma biconvexa.

Por acção da erosão, os nódulos que ficam à superfície da rocha granítica acabam por se soltar e, segundo se diz, chegam mesmo a saltar da rocha. A explicação para este fenómeno é simples. A biotite que reveste os nódulos, como é uma mica, tem muito pouca resistência mecânica, fracturando-se em folhas. A água da chuva e do orvalho infiltra-se nas folhas da mica e no Inverno congela. Ao congelar, a água aumenta de volume. Com o aumento de volume, o gelo faz de cunha e força os nódulos a soltarem-se da rocha granítica. Diz então o povo da região que os nódulos são «paridos» pela «pedra parideira».

Acredita o povo da serra que existe um processo contínuo de formação de nódulos no interior das pedras parideiras e que os nódulos vão migrando, pouco a pouco, em direcção à sua superfície, acabando por ser «paridos». Julga, portanto, o povo que as pedras parideiras são uma espécie de "organismo" mineral, que vai gerando contínua e incessantemente nódulos no seu interior e que os vai expelindo também incessantemente!

As pedras parideiras têm sido alvo da curiosidade das pessoas que visitam a serra, muitas das quais não têm quaisquer escrúpulos em apanhar e levar para casa os nódulos «paridos». Chegou-se ao ponto de ser relativamente difícil encontrar nódulos, sobretudo no local mais próximo da aldeia de Castanheira. Este vandalismo levou a Câmara Municipal de Arouca a colocar um aviso no local, pedindo para que se não levassem pedras para casa. Parece que o aviso teve o efeito precisamente contrário; era como se dissesse: «Notem que é possível apanhar as pedras e levá-las para casa»! Por fim, a Câmara resolveu vedar uma parte da zona das pedras parideiras com uma rede. Vamos lá ver quanto tempo é que a rede vai durar, se é que já a não destruiram também, pois já não vou ao local há algum tempo. Quando será que os portugueses terão um mínimo de civismo?

Uma explicação mais aprofundada sobre as pedras parideiras pode ser lida em A''Vida'' das Rochas, as Pedras Parideiras e em Percurso na Geologia de Arouca. Sobre as crenças populares relativas às pedras parideiras, consulte-se o blog Arouca.


(Fotos: António Moura)

24 fevereiro 2007

"Madonna col Bambino", de Artemisia Gentileschi


Embora não esteja assinada, esta pintura é atribuída a Artemisia Lomi Gentileschi, pintora italiana que viveu entre 1593 e 1653. Com efeito, muito dificilmente um pintor do sexo masculino seria capaz de transmitir assim tanto afecto, num seu quadro representando Nossa Senhora com o Menino, como o que aqui se sente. Tanta ternura num quadro só pode ter sido obra de uma mulher. Esta pintura é uma obra-prima da arte europeia de todos os tempos.

22 fevereiro 2007

A abóbora menina


Nota -- Contrariamente ao que se lê no cabeçalho do poema, ele é de Ana Paula Ribeiro Tavares e não de Ana de Santana. As minhas desculpas a ambas.

(Foto: World Crops)

20 fevereiro 2007

Uma nova atitude



As coisas têm de mudar, dizem as novas correntes da Educação. Aqui está um exemplo da NOVA ATITUDE que os professores têm de adoptar, a bem dos tempos modernos.

Avaliação de um exercício nos tempos que correm... (Orientado para professores que têm de mudar... e cumprir as políticas da Srª Ministra...)

QUESTÃO PROPOSTA:

6 + 7 = ?

A . EXERCÍCIO FEITO PELO ALUNO:

6 + 7 = 18

B . ANÁLISE:

A grafia do número seis está absolutamente correcta;

O mesmo se pode concluir quanto ao número sete;

O sinal operacional + indica-nos, correctamente, que se trata de uma adição;

Quanto ao resultado, verifica-se que o primeiro algarismo (1) está correctamente escrito - corresponde ao primeiro algarismo da soma pedida. O segundo algarismo pode muito bem ser entendido como um três escrito simetricamente - repare-se na simetria, considerando-se um eixo vertical! Assim, o aluno enriqueceu o exercício recorrendo a outros conhecimentos. A sua intenção era, portanto, boa.

C . AVALIAÇÃO:

Do conjunto de considerações tecidas nesta análise, podemos concluir que:

A atitude do aluno foi positiva: ele tentou!

Os procedimentos estão correctamente encadeados: os elementos estão dispostos pela ordem precisa. Nos conceitos, só se enganou (?) num dos seis elementos que formam o exercício, o que é perfeitamente negligenciável.

Na verdade, o aluno acrescentou uma mais-valia ao exercício ao trazer para a proposta de resolução outros conceitos estudados - as simetrias... - realçando as conexões matemáticas que sempre coexistem em qualquer exercício...

Em consequência, podemos atribuir-lhe um...

..."EXCELENTE"...

(Copiado à socapa do blog Sem Ordem)

Alguns clássicos do rock

Aspecto da assistência ao Festival de Woodstock de 1969 (Foto: Warner Bros.)

Para apresentar aqui uma pequena selecção de peças clássicas do rock, tive que pôr de parte os mais clássicos de todos: The Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd e também Queen, que também já são clássicos. Se assim não fosse, a lista seria interminável... Mesmo assim tive que deixar muitos outros também de fora, como Joe Cocker, David Bowie ou Yes. Como resultado, feita a selecção na Web, proponho que se ouçam as seguintes peças: Proud Mary, por Ike & Tina Turner; Me and Bobby McGee, por Janis Joplin; Hey Joe, por Jimi Hendrix; Black Magic Woman, por Santana; Whole Lotta Love, pelos Led Zeppelin; Aqualung, pelos Jethro Tull; e 21st Century Schizoid Man, pelos King Crimson.

18 fevereiro 2007

Alcunhas ou apelidos

O Rio Paiva pouco antes de desembocar no Rio Douro. À esquerda da ponte, Escamarão; à direita, Castelo (Foto: A. Leitão)

Alcunhas ou apelidos são os nomes que se põem a algumas pessoas, com base num aspecto distintivo dessa pessoa ou da sua família, tal como uma particularidade física, traço da personalidade, profissão, mania, tique nervoso, etc. Em Portugal usa-se, preferencialmente, a palavra alcunha para designar este tipo de nomes, enquanto que no Brasil se utiliza a palavra apelido.

As alcunhas ou apelidos aplicam-se em todo o mundo, por pessoas das mais diversas culturas e etnias, sobretudo pelas que vivem nos meios rurais.

Em Portugal, as alcunhas são aplicadas "generosamente" por quem vive nas aldeias, sendo muitas pessoas conhecidas dos seus vizinhos pela sua alcunha e não pelo seu nome de baptismo.

Um exemplo de alcunhas aplicadas em Portugal num meio rural é dado por Inácio Nuno Pignatelli, na pág. 234 do seu livro "O Paiva, ou a Paiva... Como Também Lhe Chamam", relativamente aos habitantes de duas povoações vizinhas, situadas junto à confluência do Rio Paiva com o Rio Douro: o Lugar do Castelo, no concelho de Castelo de Paiva, distrito de Aveiro, na margem esquerda do Paiva, e o Lugar de Escamarão, no concelho de Cinfães, distrito de Viseu, na margem direita do mesmo rio. A lista de alcunhas publicada pelo autor é a seguinte:


(...) no Lugar do Castelo eles são: «O Pai Herodes», «Os Pilatos», «Os Cascatinhas», «Os Bichas», «Os Rafias», «O Rato Seco», «Os Tutas», «Os Biqueirões», «Os Moranguinhos», «O Cá-te-espero», «Os Pópós», «Os Lanas», «Os Laus», «Os Isqueiros», «Os Gordos», «Os Querruz», «Os Goelas de Pau», «Os Cantoneiros», «Os Barbinhas», «O Pintassilgo», «Os Picões», «Os Gangas», «A Badalhoca da Praia», «Os Coronéis», «Os Naipuns», «Os Zé-Gangas», «Os Fevreiros», «Os Turrões», «O Rei», «As Amélias Peneiras», «Os Cristas», «Os Piascas», «Os Rotumbas», «O Coração-Furado», «Os Botelhos», «Os Abóboras», «O Chambeque», «Os Baús», «Os Beatos», «Os Ceras» e outros.

E no Lugas de Escamarão: «Os Nada na Areia», «Os Retratistas», «Os Ministros», «Os Serôdios», «Os Reiotos», «Os Tocos», «Os Lucianos», «O Pinça Azul», «Os Vermelhos», «As Codessas», «A Catixa» e muitos mais.

Cada alcunha correspondia a uma particularidade ou característica de cada família ou de cada um. Os «Querruz», por exemplo, eram assim conhecidos por possuírem muitas rolas, os «Piascas» por serem de pouca altura, o «Alamão» por ser tão ruço e aloirado que diziam «Parece um Alamão!», os «Ministros» por serem negociantes e fazerem vida à grande, e assim por diante.
(...)


Quero apenas acrescentar que, a mim, a alcunha «Rato Seco» não parece fazer sentido. Não terá havido engano do autor na anotação da alcunha? Não será ela «Rato Cego», nome pelo qual também é conhecida a toupeira?

14 fevereiro 2007

Zeca Afonso morreu há vinte anos


CANÇÃO DE EMBALAR

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme qu'inda à noite é muito menina
Deixa-a vir também adormecer

José Afonso

Ganharam!


O notável agrupamento coral sul-africano Soweto Gospel Choir ganhou o prémio Grammy na categoria de World Music tradicional, pelo seu álbum Blessed. O Soweto Gospel Choir, que já actuou em Lisboa em 2005, é constituído por 26 elementos oriundos dos subúrbios de Joanesburgo, África do Sul. Veja-se a seguir um videoclip promocional do grupo.

13 fevereiro 2007

As majas de Goya


Maja vestida e Maja desnuda, óleos de Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828), Museu do Prado, Madrid

10 fevereiro 2007

Carlos Paredes


Carlos Paredes era um homem possuído de uma enorme modéstia, que fazia tudo para evitar ser notado. Mas apesar dele mesmo, Carlos Paredes era notado, e de que maneira, quando punha as suas mãos na sua guitarra coimbrã e a tocava. Ocorria então uma transfiguração. Carlos Paredes deixava de ser um modesto funcionário público para se tornar no intérprete mais genuíno do sentir da alma portuguesa.

As melodias que compôs e a forma como as tocava são tesouros de um valor incalculável. Ouçamos o génio lírico de Carlos Paredes nesta página que lhe é dedicada.

08 fevereiro 2007

Um dia de terror

Sebastião Coelho«A morte corria atrás de mim nessa tarde calorosa e eu fugia caminhando sobre os telhados da baixa de Luanda.» Assim começa uma crónica escrita por Sebastião Coelho (na foto à esquerda), em que o já falecido jornalista e homem de rádio angolano conta como conseguiu escapar por um triz a uma tentativa de assassinato por parte de um grupo de taxistas (brancos) em Luanda, no dia 11 de Julho de 1974. A crónica esteve publicada na Web, numa página agora inexistente da Ebonet, que era uma empresa provedora de Internet em Angola. A Ebonet deixou de existir, por se ter fundido com outras provedoras para dar origem à actual Nexus. O texto integral da crónica de Sebastião Coelho é o seguinte:

A morte corria atrás de mim nessa tarde calorosa e eu fugia caminhando sobre os telhados da baixa de Luanda.

Era um perigoso jogo de escondidas. De vez em quando espreitava e via como me espreitavam, de arma aperrada, franco-atiradores subidos às torres da Sé Catedral e às varandas dos edifícios da Sotecma e do Totobola. Agachado e assustado, eu corria de um lado para o outro, resvalando nas telhas e nos tijolos carcomidos dos pátios velhos, movendo-me sobre os edifícios antigos da rua dos Mercadores. Era uma fuga solitária e sem destino até que notei os sinais que me faziam desde o janelão das águas furtadas do prédio da Minerva.

Não seria fácil chegar até ali, tão alto, mas aquela era a única salvação possível. Pouco antes do meio dia, a Travessa da Sé, a Calçada dos Enforcados e o Largo do Pelourinho, todo os espaços à volta dos Estúdios Norte eram um fervilhar de gente agitada e preocupada, perguntando: - “o que é que se passa”, -“o que é que se passa”...

O assunto começou cerca das onze horas da manhã, quando ouvi um burburinho infernal, na rua. Aproximei-me da janela do meu gabinete, no primeiro andar e vi um mar de carros de tecto verde descendo a Calçada dos Enforcados. Eram táxis que chegavam em caravana, apitando e apitando e estacionavam em qualquer lado, a trouxe-mouxe. Os taxistas abandonavam as viaturas e vociferavam todos e ameaçavam e eu não entendia aquele tumulto e quis ir à varanda ver o que se passava. Mal tive tempo para recuar, entrar e fechar a porta.

Em segundos começaram a partir vidros, a forçar as portas e a gritar. – “Onde é que está esse cão? Onde é que está esse f...p...?”. –“Agarrem o gajo”. Vi que todos estavam armados com chaves de fenda enormes e ferros desmonta-pneus e que vinham por mim. Ouvi dois ou três tiros e sem perda de tempo corri para os fundos da casa em direcção a uma segunda varanda nas traseiras do edifício, decidido a saltar dali para o chão. Era muito alto, um primeiro andar antigo que valia por dois ou três, mas não tinha opção. Ou saltava ou me desfaziam ali mesmo. Atrás de mim vinham duas ou três pessoas. Sem olhar tomei balanço e saltei contra uma parede interior e tratei de escorregar por ela e num ápice estava no chão, no quintal de um negócio de pneus, correias e outros elementos de borracha que se guardavam em pilhas. Havia tal quantidade e estavam apilhados de tal forma que apenas deixavam uma estreita passagem desde o fundo até à porta da rua.

Dentro do negócio havia três empregados negros que mal me viram me reconheceram e se perfilaram lado a lado formando barreira. Mandaram-me atirar para o chão e deitar-me atrás deles. Nas traseiras havia um griterio ensurdecedor. Soube depois que vários dos que saltaram atrás de mim partiram as pernas. Caíam uns em cima de outros e era enorme a confusão. Dois ou três taxistas puderam saltar bem e saíram a perseguir-me. Entraram na loja e os empregados, sem falar, limitaram-se a apontar para a rua e eles passaram e correram sem ver-me. Passada a primeira leva de perseguidores, os três empregados levaram-me para trás e fizeram-me saltar uns muros, a partir dos quais iniciei a minha passeata pelos telhados da baixa.

Nos Estúdios Norte era a loucura desencadeada. O pessoal estava atónito. Os taxistas portugueses, enfurecidos, partiam tudo. O meu gabinete ficou arrasado. Não sobrou nada. Depois chegou a polícia mas só olhou. O alto-comissário Silvério Marques não disse palavra e houve gente armada que subiu a lugares altos para me caçarem. Tratava de escapar-me quando vi que me faziam sinais lá em cima, numa janela.

Para chegar a esse lugar devia passar outra vez pela parte de trás dos Estúdios. Era o único caminho e por sorte eu conhecia bem o lugar. Arriscando tudo por tudo, trepei pelas apodrecidas escadas de madeira que me apontavam e fui subindo, subindo, degrau a degrau, as escadas rangendo, empinadas e mal seguras por uma corda de sisal que também rangia. Por fim, quatro, cinco, seis mãos tomaram-me dos braços e puxaram-me. Roçando barriga e joelhos no parapeito da janela fui chupado para um casarão escuro e com cheiro a mofo. Sem demora, as mesmas mãos que me ajudaram a subir, acomodaram a rede de galinheiro que protegia o ventanal e cozendo-a com arame, apagaram os vestígios da minha passagem por ali.

Só depois desta medida de precaução me fizeram sentar sobre uma rima de impressos velhos e me deram um copo de água e me tranquilizaram. Eram os tipógrafos da Minerva que, vizinhos solidários, me protegiam. Já meio refeito do susto e das canseiras pelos telhados, permaneci ali várias horas, com eles, metido entre prateleiras desengonçadas e polvorentas. E foi assim até ao anoitecer, ouvindo o que me narravam da minha própria aventura e conversando e tomando café.

Contaram-me que na rua investigavam sobre o meu paradeiro. Uns diziam que eu não estava no lugar, outros juravam que me tinham visto. Entretanto chegavam amigos meus e ouvintes e gente preocupada. A notícia correra, célere, pela cidade: “os taxistas atacaram os Estúdios Norte para matarem o Sebastião Coelho”. Entretanto, trouxeram-me uma bacia com água, sabão, uma tesoura e gilette para cortar a barba. Escanhoado, nem eu me reconhecia. Muito menos me havia de reconhecer quem nunca me havia visto de cara rapada. Usava barba há muitos anos.

Só mais tarde, já ao anoitecer, as gentes da Minerva me trouxeram o avental e um gorro de padeiro, roupas que vesti e me deixavam com figura de palhaço. Ainda por cima enfarinharam-me a cara e só depois saí da padaria da Rua dos Mercadores com um saco de pão às costas para meter-me na furgonete onde já me esperava o Viana da CDA. Mal subi, arrancamos para o musseque Prenda. A essa hora, ao que contou o Zé Viana, a zona dos Estúdios Norte já estava tranquila e despejada de gente.

Em casa amiga do Prenda esperavam-me um banho e um jantar apetitoso, mas nem pude reconfortar-me. Apenas tive tempo para chamar por telefone a minha amiga Madalena para que corresse a alertar os meus amigos Mendes de Carvalho, Kinjinji e Carlos Madaleno. Dizer-lhes que estava vivo e que eles deviam estar alerta, porque era previsível que nessa mesma noite os taxistas atacassem os musseques. Essa era a minha grande preocupação agora. Estavam enraivecidos e estavam armados e decididos a um massacre.

Quando cortei a ligação já passavam a buscar-me o Orestes Pereira da Silva e o César Camacho para me levarem ao aeroporto. Havia ali gente à minha procura e até dentro do próprio avião me buscavam. Olhavam para mim mas não me reconheceram. Chegava ao fim o dia 11 de Julho de 1974, um dia de terror. Nessa noite os musseques de Luanda foram atacados por uma horda de assassinos. Na tarde seguinte, em Lisboa, seria recebido em São Bento pelo coronel Melo Antunes e outros membros da Junta de Salvação Nacional a quem pedi que tirassem de Angola o general Silvino Silverio Marques, mais conhecido pelo “SS”.
Sebastião Coelho

Como escrevi acima, esta crónica já não está disponível na Web no sítio da desaparecida Ebonet. Mas foi-me possível recuperá-la recorrendo ao Internet Archive, um arquivo criado há relativamente pouco tempo nos Estados Unidos com o fim de guardar inúmeras páginas da Web para memória futura. Esta crónica está no arquivo, como estão as crónicas que explicam os antecedentes da tentativa de assassinato e contam o que se passou a seguir. Esta crónica está aqui e as restantes crónicas desta série estão aqui, aqui e aqui.

Sé Catedral de Luanda, Angola (Foto: Sanzalangola)

07 fevereiro 2007

Amendoeiras floridas, gravuras rupestres e muito mais

Amendoeira florida em Vila Flor (Foto: António Amorim)

Está a chegar a época das amendoeiras floridas na Terra Quente transmontana e duriense. É, portanto, chegado o tempo de preparar um passeio até Vila Flor, Alfândega da Fé, Mogadouro, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada-à-Cinta e Vila Nova de Foz Côa, a fim de admirar as imponentes encostas da região sumptuosamente vestidas de flores brancas.

Não pretendo desenvolver o tema das amendoeiras floridas. Elas não se descrevem, admiram-se. Não pretendo, igualmente, estabelecer um roteiro de viagem. Só quero chamar a atenção para a época em que estamos e para tudo quanto se pode encontrar por aquelas terras tão belas e habitualmente tão esquecidas: amendoeiras em flor, paisagens de sonho, monumentos de rara beleza, óptima comida, excelente bebida, hospitalidade, calor humano e muito mais.


Uma palavra quero deixar, contudo, a respeito das gravuras rupestres que existem na região, sobretudo no vale do Côa. São uma verdadeira obra-prima da criação humana, aquelas gravuras feitas no xisto entre 22000 a.C. e 10000 a.C. São de uma beleza e harmonia incomparáveis, os cavalos, auroques (ruminantes hoje extintos), veados e cabritos que os hirsutos homens do paleolítico superior nos deixaram. Quanta sensibilidade artística tinham eles já então! Ir a Foz Côa e não ver as gravuras é quase tão grave como ir a Roma e não ver o papa...

Igreja matriz de Vila Nova de Foz Côa

03 fevereiro 2007

Poema para Galileo


Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria...
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar -- que disparate, Galileo!
-- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação --
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando um perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas -- parece-me que estou a vê-las --,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.

Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisavam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

António Gedeão

02 fevereiro 2007

Iemanjá, a Rainha do Mar

(Ilustração: Pedro Rafael)

Afrika era árida e seca. Iemanjá nasceu dos deuses. E a Iemanjá sentiu-se só e os deuses deram-lhe um filho, que ela teve pelo umbigo. A esse filho ela chamou Rio. E o rio cresceu e atravessou a Afrika e foi ter ao mar. Do outro lado abriu os braços, que se ramificaram e cada ramificação foi um filho novo e cada novo filho teve um novo nome: Missouri, Mississippi, Amazonas, Rio de la Plata. Com a primeira árvore nascida em Afrika, um Imbondeiro, a Iemanjá fez uma grande canoa e nela meteu todas as vozes que desciam outros rios: o Kwanza, o Kunene, o Zambezi, o Limpopo, o Kongo, o Niger e o Nilo. E disse: tu és o meu filho, tu és o Homem Afrikano. E o Homem Afrikano partiu para o rio de Iemanjá cantando e a canção era a Esperanca, o ritmo era o remo batendo na água e o coração era uma grande maraka repetindo: Não te esqueças, Não te esqueças, Não te esqueças... Don’t forget your Blackground, Don’t forget your Blackground, Don’t forget your Blackground! (Duo Ouro Negro)

(Copiado do blog Koluki)

Iemanjá, pelo Duo Ouro Negro