500 anos de relacionamento entre Portugal e o Vietname (Vietnã)
Vietname (Foto: Chế Quang Hậu) |
Vês, corre a costa que Champá se chama,Luis de Camões, Os Lusíadas, canto X, estrofe 129
Cuja mata é do pau cheiroso ornada;
Vês Cauchichina está, de escura fama,
E de Ainão vê a incógnita enseada;
(…)
Foram portugueses os primeiros europeus a pisar solo vietnamita, o que aconteceu há 500 anos. É certo que naquele tempo ainda não existia um país chamado Vietname (Việt Nam), mas sim os reinos de Tonquim, Cochinchina e Champá, como os portugueses lhes chamaram. O Vietname, tal como o conhecemos hoje, resulta da unificação destes reinos, empreendida pelo imperador Gia Long em 1802.
A primeira referência a terras do atual Vietname feita por um europeu deve-se ao português Tomé Pires e data de 1515. Isto não significa que Tomé Pires tenha efetivamente desembarcado naquela parte do mundo. Teve, isso sim, conhecimento da sua existência e a ela fez referência na sua obra Suma Oriental.
Em 1516, Fernão Peres de Andrade, que à data era diplomata às ordens de Afonso de Albuquerque, por quem tinha sido encarregado de se deslocar à China a fim de estabelecer relações comerciais com este país, foi obrigado pela monção a aportar em terras vietnamitas. Foram, pois, Fernão Peres de Andrade e os seus companheiros os primeiros europeus a pisar solo vietnamita, acontecimento cujo quinto centenário foi assinalado neste ano da graça de 2016, tanto no Vietname como em Portugal.
Baía de Ha Long, Vietname (Foto de autor desconhecido) |
O relacionamento entre o Vietname e Portugal (chamado Bồ Đào Nha em vietnamita) foi sempre pacífico. Nunca os portugueses procuraram conquistar ou colonizar o Vietname ou qualquer dos reinos que o vieram a constituir, contrariamente ao que fizeram a França no séc. XIX e o Japão e os Estados Unidos no séc. XX. A comprová-lo está a ausência de qualquer fortificação construída pelos portugueses em território do Vietname.
No Sudeste Asiático, Portugal não estava interessado em ocupar territórios, pois não dispunha de gente nem de meios suficientes para o fazer. Estava interessado, isso sim, em conquistar apenas as posições geográficas que lhe permitissem controlar as principais rotas comerciais marítimas da região. A tomada da cidade de Malaca, sobretudo, teve uma enorme importância deste ponto de vista, pois esta cidade controlava o único canal navegável que ligava o Mar do Sul da China ao Oceano Índico, que era o Estreito de Malaca.
De resto, Portugal procurou estabelecer relações diplomáticas com os reinos da região, com vista a obter vantagens comerciais para si. Mesmo assim, nalguns casos os portugueses tiveram de intervir militarmente em favor de um reino que estivesse em guerra com um reino inimigo, para poder receber mais tarde favores e privilégios por parte do reino auxiliado. Foi o que sucedeu com o reino de Sião (atual Tailândia), que recebeu ajuda militar portuguesa nas suas guerras com a vizinha Birmânia (atual Myanmar). Refira-se no entanto que, apesar de Portugal ter apoiado o Sião contra a Birmânia, há também neste último país uma pequena comunidade de descendentes de portugueses.
O Mar do Sul da China, no meio do qual se encontra o Vietname, tornou-se deste modo, no séc. XVI, um mar "português". Os negócios que se realizavam nos principais portos situados neste mar eram, inclusivamente, feitos em língua portuguesa. Mesmo muitos anos depois de os holandeses terem conquistado as principais posições que os portugueses detinham neste mar, sobretudo Malaca, já no séc. XVII, a língua portuguesa continuou a ser a lingua franca comercial falada naquela região do globo. Os novos conquistadores holandeses tiveram, eles mesmos, que aprender a falar português para se poderem relacionar com os habitantes dos territórios que tinham conquistado. O uso do português nos contactos comerciais havidos no Mar do Sul da China prolongou-se até ao séc. XVIII, quando a presença portuguesa na região já só se limitava à cidade de Macau.
O Mar do Sul da China, onde o Vietname ocupa uma posição central |
Depois de Fernão Peres de Andrade, vários outros portugueses chegaram ao atual Vietname: uns no desempenho de missões oficiais a mando dos vice-reis da Índia, outros (a grande maioria) como mercadores, outros mais (sobretudo padres dominicanos e jesuítas) para fazerem a evangelização (perto de 8% da população do país é cristã) e outros ainda por terem naufragado nas suas costas. O mais famoso náufrago português a pisar solo vietnamita foi Luis de Camões, que naufragou em frente ao delta do rio Mekong, quando se dirigia de Macau para Goa, e chegou a terra nadando com uma mão, enquanto com a outra mão segurava a obra que estava a escrever, "Os Lusíadas".
O principal vestígio da presença de portugueses no Vietname não é de ordem material, isto é, não é nenhum forte nem nenhuma feitoria. É de ordem cultural. Basta pôr os olhos num texto escrito em vietnamita para o ver: é a escrita da língua vietnamita em carateres latinos.
Antigamente, a língua vietnamita era escrita em ideogramas semelhantes aos que são usados na escrita do chinês ou do japonês. Um padre jesuíta português, chamado Francisco de Pina, que se estabeleceu na Cochinchina por volta de 1618, decidiu-se a empreender a romanização da língua, isto é, uma mudança da escrita do vietnamita para carateres latinos, como os que são usados na escrita do português. Enquanto desenvolvia o seu trabalho, que se revelou muito complexo por causa das diversas variantes dialetais e da tonalidade da língua, outros padres se lhe foram juntando, de entre os quais se destacaram Gaspar do Amaral, António Barbosa e um padre italiano chamado Christoforo Borri, os quais, além de participarem no trabalho de transcrição do vietnamita (então chamado anamita) para carateres latinos, redigiram gramáticas e dicionários de anamita-português e português-anamita. Um outro padre, o francês Alexandre de Rhodes, coligiu, harmonizou e completou o trabalho dos seus antecessores, tendo publicado em Roma, em 1651, um dicionário anamita-português-latim, o Dictionarium Annamiticum — Seu Tunkinense cum Lusitana, & Latina declaratione, que foi a primeira obra impressa onde o vietnamita surge escrito em carateres latinos. A publicação deste dicionário marca o nascimento do Quốc Ngữ, isto é, da "língua nacional", como a nova transcrição passou a chamar-se.
Alexandre de Rhodes foi considerado o "pai" do Quốc Ngữ, tendo Francisco de Pina e os restantes padres caído no esquecimento. Este esquecimento foi profundamente injusto, pois um padre francês não teria desenvolvido um trabalho de romanização baseada na língua portuguesa, mas sim na língua francesa ou na latina. Porque o facto é este: o Quốc Ngữ é baseado na língua portuguesa. Por exemplo, o grupo de letras nh é pronunciado em vietnamita de modo semelhante ao português.
Se olharmos por um texto escrito em Quốc Ngữ, isto é, em vietnamita romanizado (que é agora a ortografia oficial da língua, por decreto do presidente Hồ Chí Minh, datado de 1945), veremos uma quantidade incrível de sinais diacríticos (acentos e outros) acrescentados às vogais latinas. Alguns destes sinais dacríticos nunca existiram em português. Poder-se-á perguntar: a que se deve uma tal abundância de sinais? Esta abundância deve-se ao caráter tonal da língua vietnamita, caráter que o português não tem. Em vietnamita e diversas outras línguas asiáticas, a pronúncia não chega para determinar uma dada palavra. O tom com que ela é pronunciada é igualmente importante. Existem seis tons em vietnamita e para se distinguir um tom dos outros é necessário recorrer-se aos referidos sinais diacríticos. Uma palavra pode ter significados diferentes consoante o tom com que é pronunciada. Por exemplo, a palavra ma significa "espírito", má significa "queixo", mà significa "mas", mă significa "túmulo", mã significa "cavalo" e mạ significa "grão de arroz". Note-se que o til não é usado em vietnamita para nasalar a vogal sobre que se encontra, mas sim para indicar uma entoação bem determinada.
AGRADECIMENTO
Agradeço a Raul Silva, da Associação de Amizade Portugal-Vietname (Nampor), o valioso apoio prestado para a elaboração deste texto.
Faiança vietnamita de Bui Thi Hy (1420-1499), do Museu Palácio Topkapi, em Istambul, Turquia, e perspectiva de Hoi-An, da primeira década do século XX |
Gravura da cidade de Lisboa no século XVI, numa foto do Museu de Lisboa, e faiança portuguesa do mesmo século, do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa |
Selos de correio emitidos conjuntamente no Vietname e em Portugal, comemorativos do 5.º centenário do relacionamento entre os dois países |