24 junho 2013

Festa da Bugiada

Bugios (Foto: sobrado...)

A Bugiada é uma festa de São João única no mundo. Não há outra assim. É uma festa que decorre todos os anos durante o dia 24 de junho, de manhã até à noite, em Sobrado, uma vila do concelho de Valongo que dista menos de 20 km da cidade do Porto. Nesta festa há um pouco de tudo: cantos, danças, "lutas", "raptos", crítica social e estranhos rituais.

Na Bugiada recria-se uma espécie de luta entre mourisqueiros e bugios, isto é, entre mouros e cristãos. Nela participam centenas de figurantes, todos eles filhos da terra. Um aspeto ressalta da indumentária de quase todos eles, que é a profusão de cores. Cores intensas e vibrantes, debaixo do sol de junho, que é também ele intenso e vibrante.

Numa comunicação que apresentou ao IV LUSOCOM – Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação, realizado em São Vicente, SP, Brasil, de 19 a 22 de abril de 2000, Manuel Pinto, da Universidade do Minho, diz o seguinte:

Apesar de alguns sobradenses e, sobretudo, a grande maioria dos forasteiros ignorar o facto, a Bugiada constitui a recordação e actualização (re-presentação, no sentido de voltar a fazer presente) de um acontecimento passado há muitos anos; há tantos que podemos bem dizer: in illo tempore. Tal acontecimento reporta-se a um tempo que tem tanto de histórico como de mítico. Foi quando os mouros, que haviam invadido a Península Ibérica, ocupavam a Serra de Cuca Macuca (hoje designada Santa Justa), sobranceira a Valongo e de onde se avista boa parte da freguesia de Sobrado. Nesse tempo, a filha do rei mouro (Reimoeiro) adoeceu gravemente e os médicos da corte não eram capazes de descobrir remédio para o mal de que padecia. Em desespero de causa, alguém se lembrou de sugerir o recurso aos cristãos, que se orgulhavam de possuir uma imagem milagrosa de S. João, que já havia feito maravilhas aquando de uma doença que afectara precisamente a filha do rei cristão. Este e os seus foram, assim, convidados para um jantar, a fim de se acordar o empréstimo da imagem. O receio de que o pretexto fosse aproveitado para a roubar terá levado os cristãos a não aceitar o pedido. Começou aí uma escalada que levou à guerra. (...)

Há um espaço para a festa, que é o Passal, um vasto espaço arborizado em frente à igreja matriz. Mas há danças que ocorrem, logo de manhã cedo, à porta de casa do Reimoeiro e do Velho, respectivamente os chefes dos mouriscos e dos bugios. Assim como há um lauto ‘jantar’ organizado pela Comissão da Festa e que, por regra, tem lugar longe do Passal. Em ambas as situações, quer uma quer outra formação executam longas e complexas danças. (...)

Os bugios são simultaneamente mais numerosos e diversificados e mais estranhos e exóticos. O seu número tem vindo a crescer nas últimas décadas, tendo superado claramente o meio milhar nos anos mais recentes. Usam uns fatos multicolores que imitam o cetim, constituídos por calça, casaco e uma capa, tudo debruado e garrido, com guizos dependurados pelo corpo. Na cabeça, levam chapéus encimados de penachos de fitas coloridas e, nas mãos, castanholas e uma diversidade de objectos que podem ir de bonecas a instrumentos agrícolas, passando por sardões, buzinas e outros recursos que a inventiva individual estimula. Importante: homens, mulheres, crianças (já que de bugio pode ir quem quer e pode) todos vão mascarados. Organizam-se sempre em duas filas paralelas, capitaneados pelo Velho, o qual tem uma indumentária diferente, que lhe dá um ar patriarcal. Quando a hora é de dança, os saltos são impressionantes e a algazarra indescritível.

Os Mourisqueiros são substancialmente diferentes: no número, nos trajes e na natureza. Raramente ultrapassam as três dezenas. Só rapazes podem ser mouriscos e desde que estejam ainda solteiros. Vestem fato listado de cores variadas mas sóbrias, com faixa vermelha cruzando o tronco. Na cabeça, uma barretina cilíndrica de uns 40 centímetros de altura, rodeada de espelhos e encimada por plumas. A cara vai descoberta. O Reimoeiro, de dragonas sobre os ombros e de cordões dourados cruzados no peito, destaca-se das duas filas. Todos levam espada. O ar de formação militar completa-se com o uso obrigatório de polainas que lhes protegem a parte inferior das pernas. Dançam quase sempre ao som de tambor, em coreografias fisicamente exigentes e prolongadas.

Como se referiu já, congregam-se de manhã cedo na casa do respectivo chefe, após o que se dirigem ao local do banquete. Os mouros tomam, de seguida, parte na procissão com que termina, ao fim da manhã, a parte religiosa da festa. Carregam os andores de S. João e do padroeiro de Sobrado.

E é então que a festa começa a valer. E abre com as danças de entrada que são, ao fim e ao cabo, desfiles de apresentação que percorrem boa parte do arraial. Ao longo da tarde executam ainda várias outras danças, designadamente aquela que é conhecida como a dança do doce, a qual tem lugar no pátio interior da residência do pároco, o qual é obrigado, por tradição, a oferecer então aos intervenientes um doce e um copo de vinho.

Quando a tarde começa a declinar, quando as picardias entre as duas formações (que não se podem encontrar a não ser no clímax da festa) já criaram um clima de tensão, preparam-se então os combates. Estes têm simbolicamente lugar entre altos palanques montados no Passal, a uns 60 ou 70 metros um do outro. Esses combates são antecedidos de negociações, recorrendo primeiro a um mensageiro a cavalo e, depois, também com a intervenção dos advogados das partes. Como nada disto resulta, os tiros de ‘canhão’ (pólvora seca) ecoam nos ares, de um e outro castelo, até que as munições se acabam do lado dos bugios. Então, o exército mourisco perfila-se, marcha sobre a fortaleza adversária, arremete com força e, à terceira vez, consegue penetrar no reduto onde o Velho se encontra. O Reimoeiro prende-o e trá-lo bem agarrado, no meio de um círculo de espadas formado pelos Mourisqueiros. No coreto, a banda de música toca o hino da ‘paixão’. É a desolação do lado bugio. Aparentemente, as coisas correram mal para eles e a derrota parece incontornável. Mas eis que alguns bugios mais argutos descobrem o caminho para reverter o fracasso em vitória: arranjam uma enorme serpe esverdeada, de horrenda boca rubra, aguardam o momento mais azado e, irrompendo com ímpeto no caminho mourisco, abrem brechas no seu exército, arrebatam o Velho e podem, por fim, encerrar a festa com a dança da vitória, enquanto os Mourisqueiros, refeitos da surpresa, se reorganizam também e, junto à igreja matriz, executam a dança do santo.

Mourisqueiros (Foto: Bugios e Mourisqueiros)

Mas isto não é tudo. Ainda há mais. Dou de novo a palavra a Manuel Pinto.

(...) esta é a parte mais “vistosa e espectacular” da festa, o que exige algum esclarecimento. Se é uma parte, naturalmente é porque há outras partes. E assim é, de facto. Sem considerar as cerimónias propriamente religiosas do culto a S. João, que se verificam de manhã e que são as habituais neste tipo de festas, é possível destacar as seguintes : a) as manifestações carnavalescas; b) a cobrança dos direitos; c) a sementeira e lavra ritual; e d), finalmente a dança do cego. Alguns aspectos têm em comum: todas elas são executadas por mascarados, que nada têm a ver com os bugios; a quase totalidade delas pondo em cena gente simples e pobre, como camponeses, artífices, mendigos, etc; finalmente, todas preenchem o período compreendido entre as danças de entrada, à hora do almoço, e os preparativos da luta final entre Bugios e Mourisqueiros. Vejamos, de forma breve, algumas características de cada uma daquelas manifestações:

a) as manifestações carnavalescas

No final do desfile das danças de entrada e percorrendo o mesmo trajecto, indivíduos ou grupos mascarados satirizam acontecimentos locais ou nacionais. A crítica pode ser mordaz e ter a ver com a inoperância dos autarcas, algum evento exótico ou burlesco e até mesmo a evocação de graves problemas da comunidade local. A encenação deita mão a todo o tipo de linguagens e suportes: objectos vários, cartazes, imagens pornográficas, excrementos... Numa linha de acção muito característica desta festa, várias das encenações e sketches implicam contacto com os circunstantes: máquinas de filmar que esguicham água choca, objectos enlameados lançados sobre as pessoas, aspersão com serrim ou areia, etc.

b) a cobrança dos direitos

Ao princípio da tarde, montado ao contrário num burro e molhando a ‘caneta’ no ânus deste, vem um cobrador por cada tenda instalada no arraial. Todos são ‘convidados’ a dar qualquer coisa, normalmente em géneros. Certamente que os sítios das bebidas e das comidas são os mais sacrificados.

c) a sementeira e lavra ritual

Num trajecto que é rigorosamente o mesmo e que, no essencial, dá a volta ao Passal, procede-se ao amanho da terra, mas realizando as operações em sentido inverso àquele que é o habitual. Um camponês mascarado e sentado ao contrário num burro ou numa mula começa por semear. Depois de completar a sua volta, segue-se-lhe outro mascarado que conduz a grade, puxada pelo mesmo animal (às vezes por dois). Finalmente, tem lugar a saída do arado, para lavrar a praça. Cada surtida é acompanhada com enorme algazarra por um certo número de Bugios que têm mais um papel de abrir caminho entre a multidão do que de intervenientes directos. Escusado será dizer que é de tradição que os toscos instrumentos agrícolas confeccionados para a ocasião ou não cheguem ao fim ou cheguem completamente desfeitos.

d) a dança do cego

Também chamada “sapateirada”, esta componente tem muito que se lhe diga e é seguramente um dos momentos altos da festa, especialmente a quarta e última representação, que ocorre sempre junto ao adro da igreja. Há um sapateiro que trabalha no seu ofício, ajudado por um moço. A esposa fia, junto a ele. De súbito, vem um cego de enxerga às costas, que um moço guia através de uma vara. Mas condu-lo de tal modo que ele vai derrubar o sapateiro e estatelar-se de barriga para baixo no meio de um charco de lama. Ladino, o moço do cego aproveita a confusão e foge com a mulher do sapateiro, que já havia dado suficientes sinais de não estar excessivamente satisfeita com a sua sorte. O artífice não se apercebe de imediato do que se passa e despeja a sua ira varejando o cego desalmadamente. Logo que este deixa de dar acordo de si, põe-se à procura da mulher, desesperado. E logo que a descobre, é desafiado para o jogo do pau pelo raptor, vencendo-o sem grande dificuldade. E a situação volta ao ponto inicial. Esta é, digamos assim, a história sem condimentos. Os temperos são dados por um sem número de pormenores que tornam a ‘dança do cego’ dificilmente descritível. Os gestos e comentários brejeiros do sapateiro e da mulher; os excrementos que fazem a vez de cera e os sapatos cheios de lama que o artesão vai lançando sobre o povo, os salpicos de água e lama que dificilmente deixam algum dos presentes imune à aspersão – tudo isto torna esta ‘dança’ do cego numa experiência telúrica e orgiástica de fusão com os elementos naturais, com o lado nocturno da existência, num misto estranho que combina o lúdico, o humorístico e o lúbrico.


22 junho 2013

Soldado desconhecido

Há um soldado desconhecido na frente de batalha
não sei ao certo em que país ou talvez
em todos os continentes desvastados. Há um soldado
desconhecido que vem de todas as guerras já perdidas
de todos os desastres e de todas as mortes e está
na frente de batalha em um território desorbitado.
Há um soldado desconhecido que já não sabe
por quem se bate. Talvez só por si mesmo ou nem sequer
bate-se por se bater numa qualquer frente de batalha
e já não pergunta porquê nem o sentido.
Está numa frente de batalha e sabe que ninguém se importa
algures num país que já não é país
em um combate perdido
nenhum de nós sabe quem ele é e no entanto
cada um de nós está nessa frente de batalha
e não tem nome e é
esse soldado desconhecido.
Manuel Alegre

Alguns camaradas de armas da minha companhia, no norte de Angola (Foto de João Manuel Salvador Baptista)

21 junho 2013

Murar o medo


Murar o medo, um texto escrito e lido pelo escritor moçambicano Mia Couto, que foi galardoado com o Prémio Camões 2013

17 junho 2013

Um "jardim" microscópico

(Foto: Wim L. Noorduin, Harvard University)

As imagens que aqui se veem foram obtidas através de um microscópio eletrónico de varrimento e mostram-nos uma espécie de jardim microscópico de belas e complexas formas. Só as cores são falsas, porque os microscópios eletrónicos não nos mostram as cores dos objetos observados.

As cores dos objetos que os nossos olhos conseguem ver resultam das vibrações dos raios de luz que esses objetos emitem ou refletem. A cada frequência de vibração da luz corresponde uma cor. Ora os microscópios eletrónicos de varrimento não utilizam raios de luz para a observação dos objetos, mas sim feixes de eletrões que incidem nesses objetos e são refletidos por eles, perdendo alguma da sua energia inicial durante este processo de interação. As imagens que vemos através destes microscópios eletrónicos são, portanto, imagens produzidas pelos eletrões que são refletidos pelos objetos e são captados por um sensor apropriado. São imagens a preto e branco, em que os diversos graus de cinzento visualizados correspondem a uma maior ou menor energia contida nos eletrões refletidos.

(Foto: Wim L. Noorduin, Harvard University)

Voltemos ao nosso "jardim" em miniatura. Ele foi fabricado no Laboratório de Nanotecnologia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, por Wim L. Noorduin e colegas. No seu fabrico foram utilizadas técnicas de controle de reações químicas. Neste caso em concreto, misturou-se cloreto de bário com silicato de sódio, numa proveta contendo água e exposta ao ar. A reação dos ingredientes entre si e com o dióxido de carbono contido no ar deu origem à formação de cristais de carbonato de bário na água. O aumento da acidez da solução permitiu a formação de uma camada de sílica sobre os cristais, sobre a qual mais cristais de carbonato de bário se formaram e assim sucessivamente. A manipulação da temperatura a que a reação se dá e a variação da quantidade de dióxido de carbono que é permitida na reação permitiram a Noorduin criar cuidadosamente as formas elaboradas e fantásticas que nestas imagens se veem.

(Foto: Wim L. Noorduin, Harvard University)

10 junho 2013

O português


Le Portugais, canção de Joe Dassin (1938-1980), aqui interpretada por Melina Mercouri (1920-1994)

06 junho 2013

O garrote

para Maria Mendes, minha mãe

Ribeiras limpas acudi-me.
Vou ficar vivo encostado
a esta memória de trampa.
Os meus olhos já foram brilhantes.
Sei fazer alguns versos mas nem sempre.
Eu narrador me confesso.
A guerra lixou tudo.

É curioso como se bebia
água podre.
Não falando no vinho, muito.
Durante os ataques doía-me um joelho.
Estou pronto, pensei.
Ninguém me conhece.
Os ratos são felizes.

Vocês não sabem como se perde a tusa.
De resto não serve para nada.
A melhor noite que eu tive
em Nambuangongo foi com uma garrafa de whisky.
Sei fazer versos mas doem.
Ninguém me conhecia dentro do arame.

O único joelho decente de Angola
embebeda-se no Norte.
Vou para escrever e paro.
Deixei-me disso.
Sou feiíssimo ao espelho.
Recordação súbita duma litografia
castelhana: o garrote.
Não vos perdoo.

Suponho que a violência tem os dias contados.
Se não é assim é parecido.
Eu vi-os sair do quartel
com as alpergatas nas últimas.
Vai ali o Ocidente, escrevi.
Vai beber água podre.

E depois há um que pisa uma armadilha.
Houve um que pisou uma armadilha!
Sei fazer versos. Ou seja: nada.
O coto em sangue.
Neste ponto o narrador sofreia a imaginação.
Ninguém disse que me conhecia.
Conheço um rato, está em cima duma viga.
Serve para a gente olhar.

Fernando Assis Pacheco (1937-1995)


Cena da guerra colonial: militares portugueses transportam um ferido (Foto de autor desconhecido)

01 junho 2013

História das mãos


História das mãos, conto africano narrado pelo ator e contador de histórias Ângelo Torres, de São Tomé e Príncipe, com acompanhamento musical do mestre de korá José Braima Galissá, da Guiné-Bissau