Quando visitei o Centro Espacial da Mulemba, a nordeste de Luanda, em Angola, encontrei Bettencourt Faria sentado a uma bancada, ao lado da sua assistente, que era uma senhora negra. Ambos estavam a escolher agulhas de seringas usadas e esterilizadas, de um lote enviado por um hospital de Luanda. «Estas agulhas são muito úteis», disse ele. «Com elas posso fazer circuitos electrónicos para os aparelhos de que preciso». E acrescentou, apontando para um rádio que tinha ao seu lado e que debitava um programa da emissora francesa de ondas curtas: «Este rádio fui eu que o fiz e também tem agulhas destas». Ainda hoje estou para perceber como é que se podem fazer circuitos electrónicos com agulhas de seringas...
Carlos Mar Bettencourt Faria, de seu nome completo, foi um autodidacta genial, dotado de um notável dinamismo e de uma enorme capacidade de trabalho. Ergueu com as suas próprias mãos aquilo a que chamou
Centro Espacial da Mulemba. Neste Centro, ele deu largas à sua paixão pela exploração do Espaço, pela Rádio e pela Astronomia, construindo aparelhos de detecção remota, telescópios, antenas, etc. Dada a sua fraca capacidade económica, ele não podia dar-se ao luxo de comprar as coisas já feitas; fazia-as ele mesmo, aproveitando materiais usados, como foi o caso das agulhas de que falei acima. Mas não eram só agulhas de seringas que ele aproveitava; por exemplo, as grandes antenas que ele construiu foram feitas com sucata ferroviária.
Num tempo em que a Terra ainda não estava rodeada por satélites de comunicações, a NASA tinha necessidade de dispor de uma rede de colaboradores espalhados pelo mundo, que recolhessem os dados enviados pelos satélites ou que estabelecessem contacto com os astronautas, servindo de "ponte" entre o Espaço e a sede da NASA. O Centro Espacial da Mulemba, em Angola, era o único observatório em todo o continente africano a fazer essa "ponte". Nenhum outro existia em África.
Para tal, Bettencourt Faria dispunha de um estúdio, pejado de aparelhagem, onde ele recebia e descodificava os sinais enviados pelos satélites e onde entrava em contacto com os astronautas. Tive a oportunidade de ouvir uma gravação de uma conversa que ele teve com o astronauta Neil Armstrong na Lua.
Era desse mesmo estúdio que Bettencourt Faria falava para o público, através de um programa de rádio do malogrado Sebastião Coelho (falecido no ano passado na Argentina), explicando de modo simples e claro o que se ia passando no campo da exploração espacial. Neste aspecto, ele fazia, em Angola, o mesmo que fazia em Portugal um outro notável autodidacta, inventor e apaixonado pelo Espaço, chamado Eurico da Fonseca. Ouvir um deles era quase o mesmo que ouvir o outro.
Não se pense, porém, que Bettencourt Faria se interessava apenas pelo Espaço e pela Astronomia. Os seus interesses eram muitos e variados. Fez investigação etnológica, tendo publicado livros sobre usos e costumes tradicionais de Angola. Era um profundo conhecedor de conchas marinhas, de que possuía uma notável colecção. Inventou máquinas de diversos tipos, entre as quais uma espécie de helicóptero individual, com o qual, aliás, sofreu um acidente e partiu vários ossos. Pintava quadros. Tocava piano. Era radioamador. Apetece perguntar onde é que aquele homem arranjava tempo para poder fazer tantas coisas diferentes.
Como já disse, Bettencourt Faria não nadava em dinheiro. Na verdade, ele estava sempre "com a corda na garganta". As autoridades coloniais de Angola sempre foram de uma extrema sovinice para com a sua obra. Depois da independência de Angola, o regime do MPLA passou mesmo a hostilizá-lo, mas durou pouco tempo esta nova situação. Em Julho de 1976, Bettencourt Faria foi assassinado.
Dois links sobre a vida e obra de Bettencourt Faria:
http://www.netangola.com/lfbettencourt/
http://www.radioamadores.net/patrono_rad_CT1UX.htm