25 abril 2019

Lisboa perto e longe

Lisboa chora dentro de Lisboa
Lisboa tem palácios sentinelas.
E fecham-se janelas quando voa
nas praças de Lisboa — branca e rota
a blusa de seu povo — essa gaivota.

Lisboa tem casernas catedrais
museus cadeias donos muito velhos
palavras de joelhos tribunais.
Parada sobre o cais olhando as águas
Lisboa é triste assim cheia de mágoas.

Lisboa tem o sol crucificado
nas armas que em Lisboa estão voltadas
contra as mãos desarmadas — povo armado
de vento revoltado violas astros
— meu povo que ninguém verá de rastos.

Lisboa tem o Tejo tem veleiros
e dentro das prisões tem velas rios
dentro das mãos navios prisioneiros
ai olhos marinheiros — mar aberto
— com Lisboa tão longe em Lisboa tão perto.

Lisboa é uma palavra dolorosa
Lisboa são seis letras proibidas
seis gaivotas feridas rosa a rosa
Lisboa a desditosa desfolhada
palavra por palavra espada a espada.

Lisboa tem um cravo em cada mão
tem camisas que abril desabotoa
mas em maio Lisboa é uma canção
onde há versos que são cravos vermelhos
Lisboa que ninguem verá de joelhos.

Lisboa a desditosa a violada
a exilada dentro de Lisboa.
E há um braço que voa há uma espada.
E há uma madrugada azul e triste
Lisboa que não morre e que resiste.

Manuel Alegre. Poema escrito em 1967



A cidade de Lisboa vista do Ginjal, Almada (Foto: Um Jeito Manso)

21 abril 2019

Domingo de Páscoa

É domingo de Páscoa.
Aqui em Cangamba,
não há flores,
nem sorrisos brancos,
nem aleluias,
nem cristos enfeitados.

Aqui as flores,
são os olhos grandes das crianças
negras,
e os sorrisos magros
dos seus lábios grossos.

Aqui chamam jardim aos Kimbos,
onde as flores nascem nuas,
crescem sem cultivo
e têm um perfume de catinga.

É Cangamba num domingo de
Páscoa.
Em que nada difere dos outros
domingos, nem dos restantes
364 dias do ano.

Há um clima de sonho,
uma beleza Luchaze, e uma alma
Quioca.

É domingo de Páscoa.
Os habitantes de Cangamba,
não se apercebem de que existe um
outro mundo e que está em festa.
Não, todo o seu mundo está aqui.
O seu mundo são as lavras,
a pesca e o batuque.

Não sei porquê,
mas gosto desta gente,
acolho com simpatia
a saudação "moio" do seu dialecto.
Não entendo a sua linguagem,
mas contemplo a verdade,
verdade de trapos sujos,
de olhos magoados,
mentiras disfarçadas,
miséria ignorante.

Não acredito que dão
conta daquilo que são,
não atingem coisa diferente
daquilo que os seus olhos vêem,
os seus ouvidos percebem.

Mas, acredito nos rebentos
destes troncos velhos
e na esperança de melhores tempos.

Cangamba, Moxico, Angola, ano de 1972

Sá Pacheco, ex-militar português


GLOSSÁRIO

Kimbos - aldeias

Luchaze - referente aos Luchazes, a etnia maioritária em Cangamba; o próprio município que tem a sua sede em Cangamba chama-se Luchazes

Quioca - referente aos Quiocos ou Cokwe (pronuncia-se Tchókwe), uma etnia também presente em Cangamba, bem como em quase todo o Leste de Angola

Moio - o mesmo que moyo, saudação em idioma quioco ou cokwe quando dirigida a uma só pessoa



Pessoas de Cangamba, Angola (Foto de autor desconhecido)

17 abril 2019

A Crise Académica de 1969 em Coimbra


Durante a Crise Académica de 1969, em Coimbra, a presença da GNR a pé, a cavalo ou de jipe foi uma constante. Ao cimo, vê-se o edifício das Matemáticas, cuja inauguração em 17 de abril de 1969 desencadeou a crise


Em 1969, Portugal encontrava-se num beco sem saída. Um enquistado regime político autoritário e uma sangrenta guerra colonial provocavam a saída de milhares e milhares de portugueses para França, Alemanha e outros países, à procura de uma vida melhor, enquanto os jovens aguardavam a ordem de cumprirem o serviço militar e serem enviados para as colónias, a fim de fazerem a guerra.

Marcelo Caetano tinha subido ao poder, substituindo Salazar como chefe do governo, e tinha prometido uma abertura do regime. Deu-se então a chamada "Primavera marcelista", que foi de curta duração. Aproveitando esta abertura, os estudantes de Coimbra conseguiram autorização para realizarem eleições livres para a direção da Associação Académica, a qual se tinha mantido sob a tutela de uma comissão administrativa da confiança do regime. As eleições realizaram-se e dela resultou uma votação esmagadora na lista proposta pelo Conselho das Repúblicas (no qual participavam todas as repúblicas de estudantes, menos uma), encabeçada por um estudante de Direito chamado Alberto Martins.

Entretanto, estava prevista para o dia 17 de abril de 1969 a inauguração de um novo edifício da Universidade, o edifício das Matemáticas, que contaria com a presença do presidente da República Américo Tomaz e outras "altas individualidades", como se dizia naquele tempo. A nova direção da Associação Académica de Coimbra quis também intervir na cerimónia de inauguração, a fim de apresentar o ponto de vista dos estudantes, os seus anseios e as suas reivindicações. Este desejo foi negado pela reitoria da Universidade, que alegou que o reitor iria discursar e, como tal, iria representar a Universidade no seu todo. A direção da Associação Académica não aceitou a resposta e decidiu que o seu presidente, Alberto Martins, iria estar presente na cerimónia e iria pedir a palavra pessoalmente a Américo Tomaz. Além disso, apelou aos estudantes que comparecessem na cerimónia, a fim de dar força à sua pretensão.




Na manhã de 17 de abril, várias centenas de estudantes responderam ao apelo, apinhando-se nos passeios envolventes ao edifício a inaugurar e empunhando alguns cartazes.

Chegou a comitiva oficial, constituída pelo presidente Américo Tomaz, o ministro da Educação José Hermano Saraiva, o bispo de Coimbra (para abençoar o edifício) e outras "forças vivas", como se dizia naquele tempo, num ambiente tenso que muito a deve ter surpreendido. Depois dos desfiles em parada e outras cerimónias de boas-vindas, a comitiva entrou na sala onde iriam ser proferidos os discursos. Falou o reitor da Universidade, falou o minstro da Educação e mais não sei quem, até que Alberto Martins se levantou do meio da assistência e, dirigindo-se ao presidente, disse: «Em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra».




Américo Tomaz respondeu: «Bem, mas agora fala o sr. ministro das Obras Públicas». O ministro Rui Sanches botou faladura e, assim que se calou, a comitiva levantou-se e saiu pela porta fora. Passou pelo meio dos estudantes que se apinhavam no átrio, os quais manifestaram o seu desagrado vaiando e gritando «vergonha, vergonha, vergonha».




Nessa noite teve início a repressão. Alberto Martins e outros dirigentes associativos foram presos pela PIDE e diversos estudantes foram espancados.




Na noite de 30 de abril, o ministro da Educação, José Hermano Saraiva, falou ao país pela televisão com cara de mau, acusando os estudantes de terem desrespeitado o venerando Chefe de Estado, de atentarem contra a ordem vigente e de outras malfeitorias mais, acrescentando que a ordem iria ser mantida a todo o custo. Disse ele a dada altura: «Sabemos que estão a caminho de Coimbra conhecidos agitadores». Estaria ele a referir-se a Zeca Afonso, que viria a dar um memorável recital nos jardins da Associação Académica?

O discurso do ministro soou aos ouvidos dos estudantes como uma declaração de guerra. Reunidos em assembleia magna da Academia, decretaram o luto académico e a greve aos exames. Cartazes colados nas paredes da Associação Académica e comunicados distribuídos à população da cidade verberaram ou ridicularizaram a atitude do ministro e deram conta da determinação dos estudantes em resistir-lhe.






O luto académico caiu muito mal na população de Coimbra, porque significava que a Queima das Fitas não se iria realizar. Os comerciantes, sobretudo, ficaram muito descontentes com a decisão. Contavam ganhar algum dinheiro durante a semana da Queima e esse dinheiro, afinal, não viria. Os estudantes resolveram então ter um gesto de gentileza para com os habitantes da cidade, lançando a "Operação Flor". Compraram todas das flores que havia em todas as floristas de Coimbra e ofereceram-nas aos habitantes, enquanto diziam: «Paz e Liberdade».




Noutra ocasião, lançaram a "Operação Balão". Compraram centenas de balões, nos quais escreveram palavras tais como Justiça, Liberdade, Paz, Democracia.




Partiram dos jardins da Associação Académica e dirigiram-se em cortejo até ao Largo da Portagem, junto ao rio Mondego, onde largaram os balões.




Enquanto tudo isto acontecia, Coimbra tornou-se uma cidade ocupada. Um numeroso contingente da GNR tomou conta das ruas da cidade, a PIDE foi reforçada, a própria Polícia Judiciária foi mobilizada para a repressão, muitas dezenas de estudantes foram presos, mas os exames não se fizeram. Só uma muito pequena minoria os fez, sob proteção da GNR. Alguns estudantes reagiram à repressão espalhando pregos nas ruas para furarem os pneus dos jipes e, até, lançando pimenta para o focinho dos cavalos da GNR.






As fotografias que acompanham este post são de diversos autores, assim como outras mais que estão no site https://pt.slideshare.net/marynauby/crise-acadmica-de-1969-universidade-de-coimbrareportagem-fotogrfica.

13 abril 2019

Cientistas em ação


As efeméridas são uns insetos que têm uma curtíssima vida na sua fase adulta: apenas um dia, durante o qual acasalam. Os seus ovos eclodem na água dos rios e lagos de todo o mundo e dão origem a ninfas. Quando se tornam propícias as condições para o seu acasalamento, as ninfas ganham asas e voam para fora da água, até ao mato próximo. Aqui atingem a sua maturidade, voam formando grandes enxames e acasalam. Consumado o acasalamento, as efeméridas voltam para a água depois do pôr do sol, a fim de depositarem os seus ovos, e morrem. Esta fotografia foi feita numa margem do rio Dniepre, próximo do centro da cidade de Mogilev, na Bielorrússia, e mostra um biólogo da universidade local observando, à luz dos faróis de dois carros, milhares e milhares de efeméridas que pousaram numa rua vizinha do rio por engano. Elas confundiram o negro alcatrão da rua com a água do rio (tornada escura pela noite) e morreram sem que os seus ovos fossem depositados na água (Foto: Mikhail Kapychka)

A revista Nature é uma das mais prestigiadas revistas científicas internacionais, que só publica artigos que tenham sido analisados e revistos por um ou mais especialistas de renome na área correspondente, no sentido de procurar garantir o máximo rigor e veracidade do que publica. A Nature é aquilo que se chama uma revista de revisão por pares (peer review).

De há três anos a esta parte, a revista Nature tem vindo a organizar um concurso fotográfico anual, chamado #ScientistAtWork, que tem por finalidade mostrar, de uma forma criativa e apelativa, a vida profissional dos cientistas. Neste concurso são premiadas cinco fotografias, uma das quais é proclamada vencedora absoluta, além de algumas menções honrosas.

Aqui se mostram três das fotografias premiadas, incluindo a vencedora absoluta, que é a que se vê acima. As restantes poderão ser vistas na página seguinte: https://www.nature.com/articles/d41586-019-01104-x.



A portuguesa Bárbara Cartagena da Silva Matos, que é licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro e é estudante de doutoramento no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tirou esta selfie na Amazónia brasileira, na companhia de uma fêmea de macaco-barrigudo (Foto: Bárbara Cartagena da Silva Matos)


As mais escuras noites sem luar que se podem observar na Terra não são totalmente negras, mas quase. Existe um fenómeno chamado luminescência atmosférica, que consiste na emissão de uma fraquíssima luz que é feita pela própria atmosfera terrestre. Esta luz resulta de reações químicas que ocorrem na atmosfera e pode ser registada em fotografias após um longo tempo de exposição. Nesta imagem a luminescência atmosférica assume uma curiosa formação em ondas concêntricas. Foi registada na região de Xigazê, no Tibete (Foto: Dai Jianfeng)

05 abril 2019

Emboscada

Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava confiante o seu quinhão

Pensávamos:
— "Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida" (*)

Mastigávamos a memória
esperando das coisas o silêncio
e a Morte claramente apercebida
recolhia confiante o seu quinhão

— Puta de Pátria que agradece aos coices.

Canjambari, Morucunda, Guiné-Bissau, 1964
José Orlando Bretão (1939–1998), poeta e combatente português


(*) Frase atribuída por uns ao Movimento Nacional Feminino e por outros a José Rodrigues Miguéis, em É proibido apontar. Já li vários livros de José Rodrigues Miguéis, mas não este. Não sei, portanto, em que contexto é que surge esta frase no livro. É provável que José Rodrigues Miguéis tenha feito apenas uma citação.


Espingarda de repetição Mauser 98K, semelhante às que foram usadas nos primeiros anos da Guerra Colonial pelas tropas portuguesas (Fotos: Armémuseum, Estocolmo, Suécia)