27 maio 2019

Um acróstico de Camões

Vencido está de amor  Meu pensamento,
O mais que pode ser     Vencida a vida,
Sujeita a vos servir e    Instituída,
Oferecendo tudo           A vosso intento.

Contente deste bem,      Louva o momento
Ou hora em que se viu  Tão bem perdida;
Mil vezes desejando      A tal ferida,
Outra vez renovar          Seu perdimento.

Com esta pretensão     Está segura
A causa que me guia    Nesta empresa
Tão sobrenatural,        Honrosa e alta,

Jurando não seguir      Outra ventura,
Votando só por vós      Rara firmeza,
Ou ser no vosso             Amor achado em falta.

Luís de Camões (c.1524–1580)


Este poema de Luís de Camões é um soneto e é também um acróstico. Um acróstico é uma composição poética em que algumas letras lidas na vertical constituem palavras inteligíveis, que são o tema do poema. Nos acrósticos comuns, o tema está contido na primeira letra de cada verso, de cima para baixo.

No caso deste soneto em particular, depois da primeira letra de cada verso, o tema continua numa letra do meio (mais ou menos) de cada verso também. Primeiro leem-se as primeiras letras de cima para baixo e a seguir as do meio, também de cima para baixo. Assim, neste acróstico, encontramos as seguintes letras:

VOSOCOMOCATJVOMVIALTASENHORA,

ou seja,

Vosso como cativo mui alta senhora.


Luís Vaz de Camões. Cópia de um retrato original desaparecido e feito por Fernão Gomes (1548–1612)

24 maio 2019

Álvaro Cassuto


Poema sinfónico Paráfrase sobre Temas do 1.º Andamento da 4.ª Sinfonia de Brahms, de Álvaro Cassuto, pela orquestra Nova Filarmonia Portuguesa dirigida por Álvaro Cassuto

Álvaro Cassuto é um maestro e compositor português, nascido no Porto em 1938. Como maestro, Álvaro Cassuto é o chefe de orquestra português mais conhecido e respeitado internacionalmente, tendo dirigido, ao longo da sua carreira, algumas das melhores orquestras do mundo e perante alguns dos mais exigentes auditórios do mundo.

Todos os maestros têm um compositor preferido. Uns preferem Beethoven, outros privilegiam Mozart, outros ainda dão mais relevo a Tchaikovsky e Álvaro Cassuto esforçou-se por divulgar a obra de Joly Braga Santos (1924–1988), que foi sem sombra de dúvida o maior sinfonista português do séc. XX.

Como compositor, Álvaro Cassuto é autor de diversas obras para orquestra sinfónica, orquestra de câmara, piano e orquestra, ópera, etc., entre as quais se inclui a Paráfrase que acima se pode escutar.

18 maio 2019

Cravo, rosa e jasmim


(Foto: Anna Armbrust)



Uma mulher tinha três filhas; indo a mais velha passear a uma ribeira, viu dentro da água um cravo, debruçou-se para apanhá-lo, e ela desapareceu. No dia seguinte sucedeu o mesmo a outra irmã, porque viu dentro da ribeira uma rosa. Por fim, a mais nova também desapareceu, por querer apanhar um jasmim. A mãe das três raparigas ficou muito triste, e chorou, chorou, até que tendo um filho, este quando se achou grande, perguntou à mãe porque é que chorava tanto. A mãe contou-lhe como é que ficara sem as suas três filhas.

— Pois dê-me minha mãe a sua bênção, que eu vou por esse mundo em procura delas.

Foi. No caminho encontrou três rapazes em uma grande guerreia. Chegou ao pé deles… «Olá, que é isso?»

Um deles respondeu:

— Oh, senhor; meu pai tinha umas botas, um chapéu e uma chave, que nos deixou. As botas em a gente as calçando, e lhe diga: Botas, põe-me em qualquer banda, é que se aparece onde se quer; a chave abre todas as portas; e o chapéu em se pondo na cabeça, ninguém mais nos vê. O nosso irmão mais velho quer ficar com as três cousas para si, e nós queremos que se repartam à sorte.

— Isso arranja-se bem, disse o rapaz querendo harmonizá-los. Eu atiro esta pedra para bem longe, e o que primeiro a apanhar é que há de ficar com as três cousas.

Assentaram nisso; e quando os três irmãos corriam atrás da pedra, o rapaz calçou as botas, e disse:

— Botas, levem-me ao lugar em que está minha irmã mais velha.

Achou-se logo numa montanha escarpada onde estava um grande castelo, fechado com grossos cadeados. Meteu a chave e todas as portas se lhe abriram; andou por salas e corredores, até que deu com uma senhora linda e bem vestida que estava muito alegre, mas gritou com espanto:

— Senhor! como é que pôde entrar aqui?

O rapaz disse-lhe que era seu irmão, e contou-lhe como é que tinha podido chegar ali. Ela também lhe contou a sua felicidade, mas que o único desgosto que tinha era não poder o seu marido quebrar o encanto em que andava, porque sempre lhe tinha ouvido dizer que só se desencantaria quando morresse um homem que tinha o condão de ser eterno.

Conversaram bastante, e por fim a senhora pediu-lhe para que se fosse embora, porque podia vir o marido e fazer-lhe mal. O irmão disse que não tivesse cuidado porque trazia consigo um chapéu, que em o pondo na cabeça ninguém mais o via. De repente abriu-se a porta, e apareceu um grande pássaro, mas nada viu, porque o rapaz quando sentiu barulho pôs logo o chapéu. A senhora foi buscar uma grande bacia dourada, e o pássaro meteu-se dentro transformando-se em um mancebo formoso. Em seguida olhou para a mulher, e exclamou:

— Aqui esteve gente! — Ela ainda negou, mas viu-se obrigada a confessar tudo.

— Pois se é teu irmão, para que o deixaste ir embora? Não sabias que isso era motivo para eu o estimar? Se cá tornar, dize-lhe para ficar, que o quero conhecer.

O rapaz tirou o chapéu, e veio cumprimentar o cunhado, que o abraçou muito. Na despedida deu-lhe uma pena, dizendo:

— Quando te vires em alguma aflição, se disseres: Valha-me aqui o Rei dos Pássaros! há de te sair tudo como quiseres.

Foi-se o rapaz embora, porque disse às botas que o levassem onde estava sua irmã do meio. Aconteceram pouco mais ou menos as mesmas cousas; à despedida o cunhado deu-lhe uma escama:

— Quando te vires em alguma aflição dize: Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Até que chegou também a casa da sua irmã mais nova; achou-a em uma caverna escura, com grossas grades de ferro; foi ao som das lágrimas e soluços dar com ela muito magra, que assim que o viu, gritou:

— Quem quer que vós sois, tirai-me daqui para fora.

Ele então deu-se a conhecer, e contou-lhe como achou as outras duas irmãs muito felizes, mas só com o desgosto de não poderem os seus maridos desencantar-se. A irmã mais nova contou-lhe como estava com um velho hediondo, um monstro que queria casar com ela por força, e que a tinha ali presa por não lhe querer fazer a vontade. Todos os dias o velho monstro vinha vê-la para lhe perguntar se já estaria resolvida a tomá-lo como marido; e que ela se lembrasse que nunca mais tinha liberdade, porque ele era eterno.

Assim que o irmão ouviu isto lembrou-se do encantamento dos dois cunhados, e pensou em apanhar o segredo por que ele era eterno; aconselhou à irmã que fizesse a promessa de casar com o velho, se lhe dissesse o que é que o fazia eterno.

De repente o chão estremeceu todo, sentiu-se como um grande furacão, e entrou o velho, que chegou ao pé da menina e lhe perguntou:

— Ainda não estás resolvida a casar comigo? Tens de chorar todo o tempo que o mundo for mundo, porque eu sou eterno, e quero casar contigo.

— Pois casarei contigo, disse ela, se me disseres o que é que faz que nunca morras?

O velho desatou às gargalhadas:

— Ah, ah, ah! Pensas que me poderias matar! Só se houvesse quem fosse ao fundo do mar buscar um caixão de ferro, que tem dentro uma pomba branca, que há de pôr um ovo, e depois trouxesse aqui esse ovo, e mo quebrasse na testa.

E tornou a rir-se na certeza de que não havia ninguem que fosse ao fundo do mar, nem fosse capaz de achar onde estava o caixão, nem mesmo de o abrir, e tudo o mais que se sabe.

— Agora tens de casar comigo, porque já te descobri o meu segredo.

A menina pediu ainda uma demora de três dias, e o velho foi-se embora muito contente. O irmão disse para ela, que tivesse esperança, que dentro em três dias estaria livre. Calçou as botas e achou-se à borda do mar; pegou na escama que lhe deu o cunhado e disse:

— Valha-me aqui o Rei dos Peixes!

Apareceu logo o cunhado, muito satisfeito; e assim que ouviu o acontecido mandou vir à sua presença todos os peixes; o último que chegou foi uma sardinhinha, que se desculpou por se ter demorado porque embicou num caixão de ferro que está no fundo do mar. O rei dos peixes deu ordem aos maiores que fossem buscar o caixão ao fundo do mar. Trouxeram-no. O rapaz assim que o viu, disse á chave:

— Chave, abre-me este caixão.

O caixão abriu-se, mas apesar de todas as cautelas, fugiu-lhe de dentro uma pomba branca.

Disse então o rapaz, para a pena:

— Valha-me aqui o Rei dos Pássaros.

Apareceu-lhe o cunhado, para saber o que ele queria, e assim que o soube mandou vir à sua presença todas as aves. Vieram todas e só faltava uma pomba, que veio por último desculpando-se, que lhe tinha chegado ao seu agulheiro uma antiga amiga que estava há muitos anos presa, e que lhe tinha estado a arranjar alguma cousa de comer. O Rei dos Pássaros disse que ensinasse ao rapaz onde é que era o ninho onde a pomba estava, e lá foram, e o rapaz apanhou o ovo que ela já tinha posto e disse às botas que o levassem à caverna onde estava a irmã mais moça. Era já o terceiro dia, e o velho vinha pedir o cumprimento da palavra da menina; ela, que já estava aconselhada pelo irmão, disse que se reclinasse no seu regaço; mal o apanhou deitado, com toda a certeza quebrou-lhe o ovo na testa, e o monstro dando um grande berro, morreu. Os outros dois cunhados quebraram ao mesmo tempo o encantamento, vieram ali ter, e foram com as suas mulheres, que ficaram princesas, visitar a sogra, que viu o seu choro tornado em alegria, na companhia da filha mais nova, que lhe trouxe todos os tesouros que o monstro tinha ajuntado na caverna.


Conto popular recolhido no Algarve.

Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga

16 maio 2019

António Vaz


A Virgem com o Menino, c. 1540, óleo sobre madeira de António Vaz, Museu de Alberto Sampaio, Guimarães, Portugal

António Vaz foi um pintor português da oficina de Viseu, com atividade conhecida entre 1537 e 1569. Foi filho de Gaspar Vaz (a quem é atribuída a autoria do belíssmo quadro de São Pedro que pertence à igreja do mosteiro de São João de Tarouca), que por sua vez foi discípulo e colaborador do célebre pintor renascentista viseense Vasco Fernandes, mais conhecido por Grão Vasco. Ao contrário de Gaspar Vaz, seu pai, António Vaz já não é renascentista, mas sim maneirista, o que significa que a sua pintura deve ser "vista" de maneira diferente. Em vez de se procurar o ideal de beleza perseguido pelo Renascimento, deve-se buscar na arte maneirista o impacto e a emoção. A arte maneirista visava mais impressionar do que agradar.

12 maio 2019

O mosteiro de Ferreira


Capitéis do portal ocidental da igreja do mosteiro de São Pedro de Ferreira, no concelho de Paços de Ferreira (Foto: Rota do Românico)

A região de Entre-Douro-e-Minho está recheada de monumentos românicos. Para quem, como eu, é um grande apreciador deste estilo arquitetónico medieval, o Entre-Douro-e-Minho é um paraíso. Só nas bacias dos rios Tâmega e Sousa, ambos afluentes do rio Douro, estão incluídos na chamada Rota do Românico 58 monumentos! Cinquenta e oito! Quase poderíamos dizer que a cada curva da estrada tropeçamos num monumento românico…

Uma tal profusão de monumentos românicos, que são quase todos igrejas, capelas ou mosteiros, deve-se ao estabelecimento de uma certa paz na região, depois de os mouros terem sido afastados para as margens do rio Tejo e de os normandos, ou vikings, terem deixado de constituir, eles também, uma ameaça. Esta paz permitiu que as populações pudessem criar alguma riqueza em terras agricolamente férteis. Esta (muito relativa) riqueza, por um lado, e a religiosidade cristã, por outro, associada, aliás, a crenças pagãs ainda vivas no imaginário popular, levaram à construção de numerosos templos e à implantação de ordens religiosas na região.


Portal ocidental da igreja do mosteiro de São Pedro de Ferreira, no concelho de Paços de Ferreira (Foto: Rota do Românico)

A um par de quilómetros do centro da cidade de Paços de Ferreira, famosa pela sua indústria de mobiliário, e a idêntica distância da vila de Freamunde, muito procurada em vésperas do Natal por causa dos seus saborosos capões, fica a igreja do mosteiro de São Pedro de Ferreira, classificada como Monumento Nacional.

As origens do mosteiro de Ferreira são anteriores à nossa nacionalidade, datando do séc. X, quando uma poderosa e influente condessa de Portucale, chamada Mumadona Dias, lhe fez referência no seu testamento. Mumadona Dias é uma figura incontornável da História do Condado Portucalense, a ela se devendo, por exemplo, a construção do castelo de Guimarães. Aparentemente, pelo menos, é também a ela que se deve a construção do mosteiro de Ferreira, se bem que o templo que hoje se ergue no local não seja o templo original de Mumadona Dias, mas um outro que o substituiu no séc. XII.

A atual igreja do mosteiro de Ferreira é um templo deveras interessante, sobretudo por causa do seu original portal ocidental, que parece feito de renda, e da existência de vestígios de um nártex ou galilé, provavelemente com função funerária, dos quais restam um muro, arcos de volta redonda e um campanário.


O campanário e antigo nártex da igreja do mosteiro de São Pedro de Ferreira, no concelho de Paços de Ferreira (Foto: Rota do Românico)

08 maio 2019

Almoço na relva


Le Déjeuner sur l'herbe, óleo sobre tela de Édouard Manet (1832–1883), Musée d'Orsay, Paris, França

Le Déjeuner sur l'herbe é um quadro do pintor francês Édouard Manet que escandalizou o público quando foi exposto pela primeira vez, no ano de 1863, o que levou à sua retirada da exposição. Só muitos anos mais tarde é que esta obra foi socialmente aceite.

Logo no primeiro momento, o nosso olhar dirige-se para a figura brilhantemente iluminada de uma mulher nua. Ao pé dela, em contraste, estão dois homens vestidos que conversam entre si, parecendo quase ignorar a presença de uma mulher nua a seu lado. Se a mulher estivesse vestida, este quadro representaria um vulgar piquenique de burgueses. Mas ela está nua, e no entanto os seus companheiros não se mostram perturbados com a sua presença, como se a sua nudez fosse coisa normal.

Há quem veja nesta mulher nua a representação de uma prostituta. Discordo completamente. Se Manet quisesse representá-la como uma prostituta, não a teria retratado com o corpo dobrado de forma bastante recatada e com uma mão no queixo. Tê-la-ia representado com uma pose mais desbragada. Assim como está, esta mulher parece ser apenas uma amiga deles, que está nua simplesmente porque tomou banho no rio, lá atrás.

Em segundo plano, uma outra mulher, vestida com uma peça de roupa leve, ainda toma banho. No entanto, as dimensões desta outra mulher são demasiado grandes relativamente à distância que o quadro sugere. Propositadamente ou não, Manet quebrou a noção de perspetiva com a representação desta banhista. Uma tal ausência de perspetiva e as sombras muito suavizadas do quadro sugerem que ele foi pintado, não ao ar livre, como pareceria à primeira vista, mas sim num estúdio, com iluminação filtrada e com os três modelos em primeiro plano retratados diante de um cenário que representa uma mulher banhando-se.

01 maio 2019

A Internacional


Versão original e integral, em francês, de A Internacional, o hino dos partidos e movimentos anarquistas, socialistas, comunistas, sociais‑democratas, etc. A letra é do anarquista francês Eugène Pottier (1816–1887) e a música do anarquista e, posteriormente, comunista franco-belga Pierre de Geyter (1848–1932). Interpretação de Marc Ogeret