Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Columbina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
Em 22 de junho de 1969, teve lugar uma final da Taça de Portugal em futebol que foi diferente de todas as outras. O jogo foi disputado entre o Benfica e a Académica de Coimbra, saindo vencedor o Benfica, sem surpresa nenhuma. O que foi surpreendente foi o ambiente que envolveu o desafio e a atitude dos jogadores da Académica, que se apresentaram com uma capa do traje académico pelos ombros, caída em sinal de luto.
Em 1969, os estudantes da Universidade de Coimbra estavam em luta contra o regime ditatorial que então dominava Portugal, após a recusa, por parte do presidente da República, Américo Tomás, em dar a palavra a Alberto Martins, presidente da direção da Associação Académica de Coimbra, na cerimónia da inauguração do edifício das Matemáticas em 17 de abril desse ano. A esta recusa, seguiu-se uma feroz repressão aos dirigentes da Associação Académica, que teve como resposta, por parte dos estudantes da Universidade, uma greve aos exames. A esta greve, o governo respondeu com o envio de numerosos efetivos da GNR e da PSP, que fizeram de Coimbra uma cidade ocupada, praticamente em estado de sítio.
Enquanto tudo isto acontecia, o clube dos estudantes de Coimbra, que era a Académica, conseguiu chegar à final da Taça de Portugal em futebol, que disputou contra o Benfica, que era o outro finalista. O ambiente escaldante que nessa ocasião se vivia em Coimbra transferiu-se então para o jogo da final da Taça, que se disputou no estádio do Jamor, como era habitual. O que não foi habitual, foi a ausência do presidente da República e demais individualidades oficiais na tribuna principal do estádio, para entregarem a taça à equipa vencedora, e foi também o facto de o jogo não ter sido transmitido em direto pela RTP, ao contrário do que tinha acontecido nos anos anteriores. O ambiente que envolveu o jogo está documentado nestas imagens da Secção Fotográfica da Associação Académica de Coimbra, as quais foram publicadas por Maria Rola na sua página pessoal no Facebook. Numa das faixas, pode ler-se: "Estão 36 estudantes presos". Eu era um deles. Ainda não tinha atingido a maioridade, ainda não tinha idade para ir para a tropa, mas já tinha idade para fazer uma curta estadia numa cela de isolamento na cave da Penitenciária de Coimbra, ao pé dos Arcos do Jardim.
Im Sommerwind, de Anton Webern (1883–1945), pela Orquestra Sinfónica da Radiodifusão da Baviera, dirigida por Bernard Haitink
Há dias, ouvi pela primeira vez esta peça numa emissão online de uma rádio do estado norte-americano de Oregon, chamada KWAX. O locutor anunciou então que esta obra era de Anton Webern.
«Impossível! Não pode ser! Anton Webern não pode ter composto música assim, pois ele foi um dos mais destacados membros da Segunda Escola de Viena, que era completamente atonal», pensei. «O locutor deve ter-se enganado. Se calhar esta obra é de Weber e não de Webern. O locutor deve ter pronunciado um N a mais no fim do nome».
Pois bem, esta peça é mesmo do compositor austríaco Anton Webern, e não do alemão Carl-Maria von Weber. É um belíssimo poema sinfónico, com uma sonoridade típica do Romantismo tardio, que Webern compôs em 1904, isto é, antes de ter surgido a revolução dodecafónica, que Arnold Schönberg veio a desencadear e à qual Anton Webern aderiu de alma e coração. Como se pode ouvir, nem tudo o que Webern compôs é dodecafónico.
Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta — «floresce» —
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?
Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem…
Ai! não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino…
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.
Almeida Garrett (1799–1854)
Imagem obtida através do telescópio espacial Hubble de um "berçário" de estrelas na Grande Nuvem de Magalhães, que é uma nebulosa visível no céu noturno do hemisfério sul (Foto: Agência Espacial Europeia)
Um filme feito há cerca de cem anos sobre a mina de carvão de São Pedro da Cova, Gondomar
Este é um filme mudo de há cem anos, aproximadamente, sobre a mina de carvão de São Pedro da Cova, no concelho de Gondomar, distrito do Porto. O título que lhe puseram no Youtube refere o ano de 1917. Um comentador, porém, contesta este ano e afirma que o filme é de de 1927. Pessoalmente, tendo a concordar com o comentador, porque os modelos de automóveis que se veem no filme parecem ser dos anos 20 e não dos anos 10. Além disso, são bastante numerosos. É pouco provável que houvesse tantos automóveis no centro do Porto em 1917. Na dúvida, diremos que o filme tem 100±5 anos.
O presente filme é promocional. Pretende fazer publicidade à empresa que explorava o carvão de São Pedro da Cova, apresentando-a sob um prisma favorável para os padrões da época. É importante ter este facto em mente, sobretudo quando se verifica que nele não há nada que documente o próprio trabalho de extração do carvão do fundo da mina. Não se veem mineiros agachados no extremo de claustrofóbicas galerias, cuja altura, por vezes, não ultrapassava um metro, se tanto, e aonde o ar puro não chegava. Não os vemos manuseando a maquinaria (e, por vezes, os explosivos), feitos negros da cor do carvão que extraíam, envoltos numa nuvem de pó que se acumulava nos seus pulmões, imersos num ruído ensurdecedor, mergulhados num calor sufocante e respirando um ar deficientemente oxigenado, durante horas a fio. Afinal, falta ao filme o que é mais importante. Se não houvesse heroicos homens-toupeiras a trabalhar nos extremos das galerias em condições atrozes, neste filme não poderíamos ver o carvão sair das entranhas da terra como por milagre.
Os Embaixadores, óleo sobre madeira de carvalho de Hans Holbein, o Moço (1497–1543). National Gallery, Londres, Reino Unido
O ser humano é facilmente enganado pelo que os seus olhos veem. Julga que vê o mundo tal qual ele é e, no entanto, a interpretação que ele faz da imagem que os seus olhos lhe apresentam pode ser incorreta ou distorcida. As aparências iludem.
A Ótica é uma ciência que estuda as leis físicas da propagação da luz, não só da luz visível, mas também da que não se vê, incluindo as ondas de rádio, as microondas, os raios X e todas as outras formas de radiação eletromagnética. Quando, no séc. XV, se começou na Europa a dar valor ao «saber de experiência feito» e não apenas ao saber escolástico, o estudo da Ótica sofreu um significativo avanço e as descobertas que então se fizeram passaram a ser aplicadas às artes visuais dessa época. Descobriram-se, nomeadamente, as leis que regem a perspetiva.
Uma pintura numa tela ou um desenho num papel são representações a duas dimensões. A tela e o papel só têm comprimento e largura (ou altura e largura, se se preferir), faltando-lhe a a terceira dimensão, que é a profundidade. A tela e o papel são habitualmente planos. Ora a perspetiva leva as pessoas a "ver" uma imagem a três dimensões, isto é, com profundidade, embora essa imagem não tenha de facto profundidade nenhuma, porque é um quadro ou um desenho plano. A perspetiva deforma os objetos representados de uma maneira tal, que engana o cérebro das pessoas, que julga ter diante de si uma imagem a três dimensões. A perspetiva é um tipo de anamorfose.
A anamorfose, portanto, é uma distorção de uma imagem com vista a atingir uma determinada finalidade. A perspetiva tem a finalidade de criar uma ilusão de profundidade. Outras anamorfoses procuram deformar uma figura de maneira a torná-la irreconhecível, ou quase, à generalidade das pessoas, só se revelando a um observador que estiver numa posição bem determinada. Aliás, a perspetiva também requer que o observador se encontre numa posição bem determinada, que é de frente para o quadro ou o desenho.
Todo este árido arrazoado precisa de um exemplo para se compreender melhor. Um bom exemplo de aplicação de anamorfoses é o quadro "Os Embaixadores", do pintor renascentista alemão Hans Holbein, o Moço, ou o Jovem, que viveu entre 1497 e 1543. O vídeo que se segue explica o que está representado no quadro, incluindo as anamorfoses. O vídeo é falado em inglês, mas eu resolvi traduzir as legendas para português. A tradução é a seguinte:
— Estamos a ver "Os Embaixadores", de Holbein, de 1533, aqui na National Gallery em Londres.
— Esta é uma pintura que na verdade trata das coisas que não podemos ver.
— Veja à esquerda Jean de Dinteville. Ele foi embaixador de França na Inglaterra. E à direita, Georges de Selve, um seu amigo, bispo e também embaixador.
— Estes homens estão ambos em Inglaterra, e Holbein (…) também tinha vindo viver para Inglaterra porque arranjou cá trabalho. De facto, pouco tempo depois de ter feito este quadro, ele conseguiu tornar-se o pintor do Rei de Inglaterra, Henrique VIII.
— Henrique VIII estava prestes a romper com a Igreja Católica. E nós sabemos que o embaixador francês estava na Inglaterra para ter olho nele durante este tumultuoso período.
— Vemos no quadro referências à turbulência que estava a decorrer na Inglaterra, mas está tudo englobado num contexto ainda mais vasto.
— Comecemos então pelos dois homens. Vemos Jean de Dinteville à esquerda. Foi ele que encomendou este quadro e era ele o dono da casa onde este quadro foi pintado. Ele está obviamente representado como um homem imensamente rico e bem sucedido, com o seu casaco debruado a peles e o seu vestuário de veludo e cetim. Segura uma adaga na qual está inscrita a sua idade, que era de 29 anos. Portanto, ele é um homem muito jovem. Holbein reproduziu o seu vestuário com o sentido de clareza e pormenor que esperaríamos da tradição setentrional, de que Holbein proveio. Depois à direita vemos Georges de Selve, que está vestido de forma mais recatada com um casaco de peles. O livro sobre o qual pousa o seu cotovelo tem inscrita a sua idade, que era de 25 anos.
— Há um contraste interessante. Temos uma adaga num lado e um livro no outro, que são referências tradicionais da oposição entre a vida ativa e a vida contemplativa.
— Vamos olhar para os dois homens e, mais do que isso, vamos olhar para o que está no meio do quadro, que são todos os objetos pousados em duas prateleiras.
— Holbein era brilhante na sua capacidade de reproduzir texturas, assim como a realidade material dos objetos. Estes também possuem um significado.
— Na prateleira de cima, vemos objetos que estão relacionados com o estudo da astronomia e da medição do tempo. Na prateleira de baixo, coisas que são mais terrenas; vemos um globo terrestre, um alaúde, um livro sobre aritmética e um livro de cânticos.
— O quadro funciona basicamente como uma grelha. À esquerda, temos a vida ativa, à direita temos a vida contemplativa, em cima temos a esfera celeste e em baixo a esfera terrestre. Vejamos o alaúde, lindamente colocado de viés na prateleira de baixo. Os alaúdes eram objetos tradicionalmente utilizados para a aprendizagem da perspetiva. Aqui está uma magistral representação do modo segundo o qual o alaúde se apresenta muito mais curto do que deveria, porque o vemos de lado. Mas se olharmos mais de perto, podemos observar que uma das suas cordas está partida.
— Os historiadores de arte interpretam isto como uma referência à discórdia existente no seio da Igreja, na Europa daquele tempo.
— Esta discórdia também se pode ver no livro de cânticos, que está logo por baixo. O livro está aberto, e está pintado com tanto pormenor que até pode ser lido. É uma tradução de um cântico de Martinho Lutero, o chefe da Reforma Protestante. Todo este luxo, todos estes objetos, todo o extraordinário vestuário que as personagens envergam, tudo isto está assente num chão de mosaico com um entalhamento lindamente pormenorizado. E é visto segundo uma perspetiva linear perfeita. É uma representação do chão que realmente existe em Westminster Abbey. Este chão, nesta igreja, é de facto um diagrama, e destina-se a representar o macrocosmo, isto é, a ordem cósmica.
— Olhemos agora para a forma muito grande que ocupa o primeiro plano do quadro.
— Eu tive um aluno que uma vez disse que parecia um pedaço de madeira arrojado à costa pelo mar, que estranhamente foi pintado por cima do quadro.
— O que realmente estamos a ver é uma imagem anamórfica, um tipo de imagem que foi artificialmente distorcida em termos de perspetiva. Quando nos colocarmos à direita do quadro e o observarmos quase tangencialmente à sua superfície...
— Ou olharmos para ele com auxílio de um espelho inclinado, é uma caveira humana.
— É uma coisa que não podemos ver quando olhamos para as outras coisas que estão no quadro, mas é uma coisa que podemos ver quando não vemos as outras coisas que estão no quadro.
— À frente e no centro deste quadro, esta caveira é, com efeito e em certo sentido, a figura principal do quadro. Esta caveira é um símbolo tradicional da morte.
— Um memento mori.
— Uma lembrança da morte. E é um elemento muito comum que vemos em pinturas. Assim, temos aqui um quadro que parecia por momentos celebrar os feitos terrenos, mas agora parece estar a rebaixá-los. Se olharmos ainda com mais cuidado, no extremo do canto superior esquerdo do quadro, espreitando por detrás de uma cortina, podemos vislumbrar um pequeno crucifixo.
— Então temos esta questão que remonta ao tempo de Holbein e que consiste nesta representação. Assim, temos um alaúde perfeitamente enviesado ou esse chão que dá também uma perfeita ilusão em perspetiva. Temos, portanto, uma capacidade de representar a realidade de uma forma perfeita. E depois temos a escolha de Holbein em representar a caveira dum modo não natural. Ele escolheu representar as coisas terrenas duma maneira realista, mas escolheu representar o que é sobrenatural, ou que é transcendente, duma maneira que não está de acordo com este ilusão perfeita.
— Eu penso que Holbein realmente quis que víssemos este contraste. Olhemos para a relação entre o alaúde e a caveira. A caveira está distorcida de modo tão extremo que, na verdade, se torna difícil identificá-la. Quando nós pensamos em esticar alguma coisa, geralmente pensamos em esticá-la horizontalmente ou talvez verticalmente. Mas fazê-lo diagonalmente é muito peculiar. O alaúde está pousado naquela prateleira. De facto, ele está orientado segundo um ângulo que é muito próximo do ângulo de distorção da caveira. Mas lembremos que um enviesamento é uma outra forma de distorção. Assim, em certo sentido, ambas as representações são distorções, mas só uma delas é uma distorção que cria uma realidade dentro do nosso mundo, tal como o vemos. Este quadro faz-nos lembrar que talvez aquilo que nós vemos não seja de facto verdadeiro.
— Não vemos tudo o que existe.
— Este quadro é sobre o que estes homens conseguiram em vida. E sobre o que os seres humanos conseguiram historicamente para a nossa compreensão do mundo. Os dois elementos que estão meio escondidos neste quadro, o crucifixo e a caveira, apontam para os limites da vida terrena, os limites do conhecimento humano, e para a inevitabilidade da morte e a promessa do sacrifício de Cristo na cruz.