25 maio 2007

O quissange


(Foto retirada de Diamang)


Em Angola, este instrumento é chamado quissange, palavra derivada do quimbundo kisanji. Em Moçambique, ele tem o nome de mbira. Noutras partes de África recebe a designação de sanza, likembe e outros nomes ainda. É um instrumento tocado numa grande parte de África ao Sul do Sahara.

A estima e o gosto popular que testemunhei em Angola por este instrumento tradicional atinge o nível de uma verdadeira ternura. Para o camponês angolano e (quero crer) para o camponês africano em geral, o quissange não é um instrumento qualquer; é um amigo, um confidente, um companheiro, a quem ele confia as suas emoções, os seus sentimentos, as suas esperanças, os seus desejos, as suas mágoas.

O quissange tem em geral um som relativamente fraco. Não é, por isso, um instrumento que se costume tocar em conjunto com outros instrumentos, porque estes abafariam o seu som. É um instrumento de uso individual, que o africano toca quase sempre para si mesmo. Quando sente a tristeza ou a solidão, ou apenas para passar o tempo, o camponês africano pega no seu quissange e dedilha-o, cantando baixinho. Comunica assim ao quissange aquilo que lhe vai na alma e este faz-lhe companhia, transmitindo-lhe o seu som solidário. Como é um instrumento portátil, o quissange também pode ser tocado em viagem, para combater a solidão ou a saudade. É um amigo fiel, sempre pronto a escutar o seu tocador sem queixumes nem azedume. Na primeira gravação que apresento mais abaixo, pode-se ouvir o músico angolano Mário Rui Silva tocar um quissange e cantar muito baixinho, com uma voz quase imperceptível. É assim mesmo que o quissange é habitualmente usado. Isto mesmo é sugerido pela imagem que se segue e que é um desenho da autoria de Neves e Sousa.



Como se pode ver na fotografia do topo, o quissange é constituído essencialmente por uma base, à qual estão presas umas palhetas. É tocado premindo as palhetas com os polegares e deslizando estes para baixo ou para os lados, de forma a que as palhetas se soltem de repente e entrem assim em vibração.

A base dos quissanges é geralmente de madeira, que é quase sempre maciça, mas que pode ser também escavada de forma a conter uma cavidade de ressonância. As palhetas quase nunca são em número inferior a sete, são afinadas de acordo com uma escala tradicional, que é habitualmente pentatónica ou tritónica, e são quase sempre de ferro. Habitualmente existem umas argolas também de ferro presas às palhetas. Estas argolas têm como finalidade chocalhar em uníssono com a vibração das palhetas. Por vezes, o quissange propriamente dito é preso a uma calote de cabaça, para amplificar o som do instrumento, como se pode ver na fotografia que publico mais abaixo.

Se houver acesso a bambus, é possível fazer um quissange de bambu em dois minutos apenas. Para construi-lo, parte-se um pedaço de bambu em lascas e entrelaçam-se quase todas as lascas umas nas outras, cruzando-as, de forma a constituirem uma base quadrangular. A esta base prendem-se as lascas que sobrarem, de maneira a que venham a desempenhar o papel de palhetas. Toca-se como qualquer quissange. O som, embora fraco, é belíssimo. A elasticidade natural do bambu confere às palhetas um som suave e extraordinariamente melodioso.

Há muitos anos, vi num programa de televisão a demonstração de como se faz um quissange, em que as palhetas eram constituídas por pedaços de varetas de guarda-chuva! Se a memória não me falha, quem fez esse quissange foi Raul Indipwo, do Duo Ouro Negro, que tocou o instrumento depois de o ter feito.

Como disse, os materiais de que são feitos os quissanges são quase sempre a madeira, para a base, e o ferro, para as palhetas e as argolas. O ferro que os ferreiros africanos fazem é de excelente qualidade. A madeira pode ser obtida a partir de diversas árvores e é frequentemente decorada com motivos entalhados. Estes motivos são predominantemente geométricos, mas podem ser também figuras estilizadas de acordo com a tradição local.

Durante a minha estadia em Angola encontrei muitos quissanges, dos mais variados tamanhos e com sonoridades diversas. Os mais belos que vi eram, sem dúvida nenhuma, originários da actual República Democrática do Congo, antiga República do Zaire. Não consegui encontrar na Web imagens de quissanges que fossem tão belos como alguns dos instrumentos congoleses que tive nas mãos.

Escutem-se a seguir três gravações, que nos poderão dar a sentir um pouco da alma africana expressa através do quissange, que é talvez o mais africano dos instrumentos musicais.

Mário Rui Silva, de Angola, tocando quissange e cantando baixinho

Quissange tocado por Dumisani Mariare, do Zimbabwe

Música shona de quissange, também do Zimbabwe



Tocador de quissange de etnia luba. O instrumento está preso a uma cabaça, que serve como caixa de ressonância. (Foto retirada de Diamang)

22 maio 2007

Hergé faria hoje cem anos


Completam-se hoje cem anos sobre o nascimento, em Etterbeek, na Bélgica, de Rémi Georges, de cujas iniciais, R. G., derivou o pseudónimo Hergé. Hergé, como se sabe, foi o criador de Tintin, herói de banda desenhada que encantou gerações um pouco por todo o mundo.

À semelhança de muitas outras pessoas, também eu em criança li sofregamente as histórias que Hergé criou e desenhou, a começar por "Tintin na Lua", que foi a primeira história que li. Também eu procurei identificar-me com Tintin. Também eu imaginei viver aventuras semelhantes às dele. Também eu me ri com as várias outras personagens daquelas movimentadas histórias: o facilmente irritável capitão Haddock, que proferia por tudo e por nada abundantes mas inofensivos impropérios, o distraído professor Tournesol, com o seu inseparável pêndulo, os polícias Dupont e Dupond, sempre de chapéu de coco e guarda-chuva, a cadela Milou, fiel companheira de Tintin, etc.

Hergé completaria hoje cem anos, se fosse vivo. Esta é a minha modesta homenagem a alguém que teve uma influência bastante grande na formação da minha personalidade. Uma parte do que eu sou, a Hergé o devo.

20 maio 2007

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Alexandre O'Neill (1924-1986), in Feira Cabisbaixa, 1965

18 maio 2007

O Senhor de Matosinhos


A igreja do Senhor de Matosinhos apresenta uma fachada de grande beleza e harmonia, concebida pelo grande arquitecto italiano Nicolau Nasoni (Foto: Rota Brasil Oeste)

Vão ter lugar em Matosinhos, durante as duas próximas semanas, as festas dedicadas ao Senhor de Matosinhos. Este ano, elas deverão ser particularmente animadas, pois os adeptos do clube de futebol da cidade (o Leixões) certamente aproveitarão a oportunidade para celebrar condignamente a subida de divisão...

A imagem do Senhor de Matosinhos tem sido alvo de grande devoção popular ao longo dos séculos, não só em Matosinhos, mas um pouco por toda a região do Porto. Lembro que, na Rua dos Canastreiros, no Barredo, bem no coração do Porto antigo, existe um nicho onde também esteve exposta uma imagem do Senhor de Matosinhos.

Levado pelos emigrantes desta região, o culto ao Senhor de Matosinhos estendeu-se até ao Brasil, onde ainda persiste em muitos locais, nomeadamente no Estado de Minas Gerais.

À imagem do Bom Jesus de Matosinhos está associada uma lenda, que passo a transcrever do sítio Lendas de Portugal:

Segundo a tradição, a imagem do Senhor de Matosinhos é uma das mais antigas de toda a cristandade. A lenda diz que esta imagem foi esculpida por Nicodemos, que assistiu aos últimos momentos de vida de Jesus, sendo por isso considerada uma cópia fiel do seu rosto. Nicodemos esculpiu mais quatro imagens mas esta é considerada a primeira e a mais perfeita. A imagem é oca porque nela teria Nicodemos escondido os instrumentos da Paixão e, nesses tempos de perseguição, os objectos sagrados eram escondidos ou atirados ao mar para escaparem à fogueira. Nicodemos atirou a imagem ao mar Mediterrâneo, na Judeia, e esta foi levada pelas águas, passou o estreito de Gibraltar e veio dar à praia de Matosinhos, perdendo na viagem um braço. A população de Bouças ergueu-lhe um templo e designou a imagem por Nosso Senhor de Bouças, venerando-a durante 50 anos pelos seus muitos milagres. Mas um dia, andava uma mulher na praia de Matosinhos a apanhar lenha para a sua lareira, quando encontrou um pedaço de madeira que juntou aos restantes. Em casa, lançou-o ao fogo mas este pedaço saltou da lareira não só da primeira, mas como de todas as vezes que ela o tentava queimar. A sua filha, muda de nascença, fazia-lhe gestos desesperados para que dizer qualquer coisa e, por fim, balbuciou, perante o espanto da mãe, que o pedaço de madeira era o braço de Nosso Senhor das Bouças. Assombrada pelo milagre a população verificou que o braço se ajustava tão bem à imagem que parecia que nunca dela se tinha separado. No século XVI, a imagem foi mudada para uma igreja em Matosinhos, construída em sua honra, ficando a ser conhecida por Nosso Senhor de Matosinhos.


A povoação de Bouças de que fala a lenda é uma antiga povoação, que no passado foi a sede do concelho a que Matosinhos pertencia. Bouças cresceu em torno de um mosteiro muito antigo, o mosteiro de Sendim de Bouças, e localizava-se entre Matosinhos e a Senhora da Hora. Com o desenvolvimento de Matosinhos, Bouças foi-se apagando, até que a sede do concelho passou para Matosinhos.

13 maio 2007

Nino Galissa


(Foto: Griotsound)


Nino Galissa, natural da Guiné-Bissau, é um excelente autor, cantor e tocador de kora. De etnia mandinga, Nino Galissa é descendente de uma família de griots, isto é, de depositários e transmissores da tradição oral do seu povo.

Podemos dizer que quando Nino Galissa canta, toca e compõe, ele não rompe com a tradição, antes a renova.



Podem ser também ouvidas várias canções de Nino Galissa nesta página do seu sítio pessoal.



Crianças da Guiné-Bissau (Foto: Jorge Neto)

12 maio 2007

Canção do Bhául

Teus caminhos, Senhor,
teus caminhos de amor,
perdidos,
oculta-os a Mesquita,
a cobiça infinita
da Igreja,
do Pagode...
Aos meus ouvidos
vibrou, há muito já, o Teu apelo,
e a minha alma deseja,
mas não pode,
recolhê-lo...
No início das Idades,
a Natureza
aceitou e guardou teu mandamento
no coração.
Só o homem enjeitou o inestimável dote
só ele lhe negou a alma p´ra retiro,
e cometeu-o ao papiro,
ao livro, ao sacerdote!...

E Tu ainda lhe bates com frequência
à porta da consciência.
Tu mandas-lhes profetas, avatares,
com tuas mensagens salutares,
num grandioso exemplo
de paciência!
Mas eles, em resposta,
encerram-Te num templo!
Sob as grandes arcadas
Te procuro,
nas catedrais:
claustros silenciosos,
naves abobadadas
e colossais,
da alva Mesquita ao hipogeu escuro,
percorrem tudo, aos rastos, meus joelhos
pressurosos.

Mil vezes invoquei Teu nome puro!
Mil vezes Te chamei «Senhor, Senhor»!
Mas sempre em vão!
Folhas dos Vedas, citas dos Evangelhos,
versículos da Biblia e do Corão
foi o que vi,
mas nada disso mata a sede ardente
da minha alma por ti!

O Mundo é o melhor Veda,
Biblia maior que a Biblia é a criação.
O brâmane segreda
as mantras mansamente,
mas o Livro da Vida está aberto por Tua mão:
deste-o Tu a ler a toda a gente...

P´ra que irmos a Meca ou Benares?
Acaso quando estás num santuário,
é por faltares
no Universo inteiro
aos outros meus irmãos?
Acaso as proporções dum relicário
podem conter a Tua astral grandeza?
P´ra quê erguer-Te templos, se o primeiro,
se o mais extraordinário,
é o templo, sem par, da Natureza,
uma obra das Tuas mãos?

Nesse Templo admirável,
milhões
volvem para Ti seus tristes corações...
O espectro execrável
do Ulama ou do Guru
escava abismos mil, mil divisões
entre os irmãos.

Mas eles, grade a grade,entre as prisões,
dão-se as mãos:
o seu ideal és Tu!
Atende, pois, Senhor, o seu suspiro.
Transforma este retiro
desolador
num reino de Alegria
e de Amor!
Que, no livro da História,
as Tuas graças,
chovendo qual dilúvio varredor,
apaguem para sempre a divisória
das seitas, das nações, línguas e raças!

Que se sinta embalada a Humanidade
suavemente,
no rítmo astral da eterna sinfonia
da Tua glória.
Nesse dia,
em porvindouras eras
verás, por fim, o Prometeu rebelde
acompanhando, humilde, reverente,

Tua batuta mestra,
na Orquestra
das Esferas!

Adeodato Barreto (1905-1937), poeta e humanista de Goa

Bhául (sânscrito) - o excêntrico, aquele que não se conforma aos usos sociais



Basílica do Bom Jesus, em Velha Goa, onde estão os restos mortais de São Francisco Xavier (Foto: Goa Central)

09 maio 2007

Buxtehude morreu há 300 anos


Completam-se hoje 300 anos sobre a morte de um dos mais importantes compositores do barroco alemão: Dieterich Buxtehude. Nascido em Holstein, que actualmente faz parte da Alemanha mas que naquele tempo pertencia à Dinamarca, Buxtehude teve uma grande influência sobre Johann Sebastian Bach, que chegou a percorrer mais de 300 quilómetros só para ouvi-lo. Escutemos alguns trechos de Buxtehude.

Fanfarra, por Paul Jenkins, em órgão, e Charles Schlueter, James Tinsley e William Sperandei, em trompetes

Allegro, da Sonata em lá menor para violino, viola da gamba e baixo contínuo, BuxWV 272, por John Holloway e Ursula Weiss, em violinos, Jaap der Linden e Mogens Rasmussen, em violas da gamba, e Lars Ulrik Mortensen, em cravo

Prelúdio em sol sustenido BuxWV 163, por Bradley Lehman, em órgão

Fragmento da cantata Ad Genua, do ciclo de cantatas Membra Jesu Nostri, pelos coros Capella Ducis e Novo Cantare

07 maio 2007

Moinhos de maré


Moinho de maré existente em Mourisca, perto de Setúbal, no estuário do Sado. A estrada que conduz ao moinho está construída sobre o açude. À direita deste vê-se uma nesga da caldeira. (Foto: Suzana Costa)

Agora que tanto se fala na utilização de energias renováveis, convém lembrar o uso que desde há séculos se faz em Portugal de uma energia renovável, que é a energia das marés. Esta energia tem sido utilizada no nosso país para moer cereais, em moinhos especialmente concebidos para esse efeito, que são os moinhos de maré.

Como se sabe, as marés são subidas e descidas periódicas das águas do mar, provocadas pela atracção gravitacional da Lua, em função da sua órbita em volta da Terra. Deixemos de lado, nesta definição, as marés continentais, que são ínfimas, porque a crusta terrestre é muito mais rígida do que a água dos mares (grande novidade!), apesar de sofrer a mesma atracção, e o efeito de maré provocado pela atracção gravitacional do Sol, que é muito pequeno quando comparado com o da Lua. Embora o Sol tenha uma massa incomparavelmente maior do que a Lua, ele está muito mais afastado da Terra e, por isso, o seu efeito de maré é muito mais reduzido, pois a atracção gravitacional entre dois corpos varia na razão inversa do quadrado da distância entre eles, apesar de também variar na razão directa das suas massas.

As marés, que são fenómenos marítimos, estendem-se pelos rios dentro até uma certa distância da sua foz, distância esta que depende da inclinação do leito do rio e da própria amplitude das marés. Esta amplitude não é igual em toda a parte, pois depende da geografia do terreno, das correntes marítimas, etc. Em Portugal Continental, a amplitude das marés varia aproximadamente entre 3,5 e 4 metros, mas há locais do planeta em que ela chega a atingir mais de 12 metros!

Os moinhos de maré são habitualmente construídos em rios, perto da sua foz, onde a acção das marés é mais forte. É aproveitada a existência de uma enseada, isto é, de uma reentrância no terreno, natural ou artificial, onde a água da maré cheia possa ser armazenada. Esta enseada é separada do resto do rio por um açude. No enfiamento do açude fica o próprio edifício do moinho, por baixo do qual existem aberturas para a passagem da água: uma passagem para a água que sobe e outra ou outras para a água que desce, onde se encontram os rodízios que fazem girar as mós.


Quando a maré sobe, a água passa do rio para a enseada (chamada caldeira), onde fica armazenada. Quando a maré baixa, todas as comportas existentes no moinho são fechadas, impedindo que a água que entrou na caldeira volte para o rio. Na maré baixa, verifica-se então uma diferença de nível entre a água que está na caldeira e a água que está no rio. Nesta altura, são abertas as comportas da passagem da água onde estão os rodízios. A água retida na caldeira escoa-se e, ao fazê-lo, faz girar os rodízios e as mós a eles ligadas. O moinho cumpre então a função para que foi construído: fazer farinha.


Em Portugal, existem vários moinhos de maré no Rio Tejo, no Rio Sado e no Rio Arade, pelo menos. É na margem sul do Tejo que se encontra a maior parte deles. Existem sobretudo no concelho do Seixal, embora também haja moinhos de maré no concelho do Barreiro e no da Moita (em Alhos Vedros).

A funcionar, existem dois moinhos, graças à acção das Câmaras Municipais que os compraram e os mantêm. Um deles fica em Corroios, no concelho do Seixal, e outro perto de Estômbar, no concelho algarvio de Lagoa. Tanto um como outro podem ser visitados.

Pessoalmente, não conheço o moinho de Estômbar. Conheço o de Corroios, que foi mandado construir há 600 anos por D. Nuno Álvares Pereira, para abastecer de farinha o Convento do Carmo, em Lisboa. Vale a pena visitá-lo (agora até já se pode ir de metro), mas convém fazê-lo a uma hora em que o moinho esteja a funcionar, isto é, quando a maré estiver baixa. É possível comprar no próprio moinho farinha nele moída, para levar para casa.

(Os desenhos foram retirados do sítio da Associação Nacional de Cruzeiros. Uma descrição do moinho de maré de Corroios está disponível no sítio da Naturlink.)


Ruínas do moinho de maré de Palhais, nas proximidades da cidade do Barreiro (Foto: António Lança)

06 maio 2007

Mãe negra

A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.

No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
- Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém...
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade...

Aguinaldo Fonseca, poeta de Cabo Verde, in Primeiro Livro de Poesia (selecção de Sophia de Mello Breyner Andresen)


(Foto retirada de Os Nossos Kimbos)

03 maio 2007

Pateira de Fermentelos


Um recanto da lagoa geralmente conhecida pelo nome de Pateira de Fermentelos, que fica mais ou menos entre Aveiro e Águeda. A fotografia foi tirada numa tarde de Inverno em Requeixo, no concelho de Águeda, onde esta lagoa é chamada Pateira de Requeixo.

02 maio 2007

José Eduardo Agualusa ganha prémio na Inglaterra


(Foto: Antoninho Perri)

Soube da notícia esta manhã, ao ouvir uma entrevista do escritor angolano à BBC: a tradução para inglês do livro O Vendedor de Passados, com o título Book of Chameleons ganhou o prémio de Ficção Estrangeira para 2007 atribuído pelo jornal britânico Independent. Agualusa partilha o prémio com o tradutor da obra, Daniel Hahn.

Sobre o livro O Vendedor de Passados, escreve o professor brasileiro Eustáquio Lagoeiro Castelo Branco Fontes, no sítio Eduquenet:

(...)

Seu mais recente livro, O Vendedor de Passados, fala sobre um especialista em reescrever a biografia dos fregueses na emergente sociedade urbana de Angola.... pintando um retrato dos novos ricos angolanos, que têm o dinheiro e o poder, mas aos quais falta um passado consistente!!!! Uma idéia perigosamente interessante, extravagante, misteriosa... que mistura as metáforas e analogias com o Mundo Natural. Povoado de personagens sui generis como a osga, um assombro, sempre atenta a tudo e a recordar o tempo em que era humana.

«Um nome pode ser uma condenação. Alguns arrastam o nomeado, como as águas lamacentas de um rio após as grandes chuvadas, e, por mais que este resista, impõem-lhe um destino. Outros, pelo contrário, são como máscaras: escondem, iludem. A maioria, evidentemente, não tem poder algum. Recordo sem prazer, sem dor também, o meu nome humano. Não lhe sinto a falta. Não era eu.»

Nesta história, um albino morador de Luanda, capital de Angola, elabora árvores genealógicas em troco de pagamento. Uma atividade um tanto quanto estranha exercida por um esquisito personagem principal - o vendedor de passados falsos, chamado Félix Ventura e uma lagartixa que, na verdade comanda toda a narrativa.

Esta, uma osga, espécie de lagartixa, vai contar como um negro albino, Félix Ventura, fabrica histórias de vida para seus clientes, ou seja, cria uma genealogia de luxo para quem o contrata. São prósperos empresários, políticos e generais da emergente burguesia angolana que têm um presente e um futuro prospero, mas falta-lhes um passado que não seja comprometedor. E arquitetar esse passado é uma empreitada no qual, o personagem principal Felix se encarrega.

Dois seres, um albino e uma osga (lagartixa), vivem à sombra e compartilham vivências, sonhos e criações. A osga busca na sua pretérita vida humana, vestígios de outra reencarnação, a fim de compreender suas emoções e reconhecer os vestígios literários e a sua aguçada percepção. O albino, Félix Ventura, busca a realização de um presente para si alicerçado nos alfarrábios que lhe serviram de berço.

A osga tem um nome. É chamada de Eulálio por Félix, o homem que vende os passados. É ela quem vai narrando a história.

A relação da osga (Eulálio) com a sua casa é visceral. A osga percebe sua respiração, penetra-a em busca do útero «O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir...» A casa é o seu universo possível e seguro, distante dos campos minados de Angola, onde são revelados os segredos e fantasias que criam o presente para os que buscam novos passados. Também é o ambiente protegido para o resgate da vida de Eulálio, um ser comum que viveu quase um século na pele de homem sem se sentir inteiramente humano e que agora se lamenta desses quinze anos com a alma presa ao corpo de lagartixa.

Felix está muito bem nessa empreitada, leva uma vida razoavelmente confortável até que uma noite essa rotina é rompida com a chegada de um estrangeiro, fotógrafo de guerra, que quer um passado completamente novo. De preferência que seja uma identidade angolana. Com o nome recente, José Buchmann, e uma fajuta e fabulosa árvore genealógica, passa a buscar os personagens a fim de confirmar sua existência fictícia.

José Buchmann procura o seu passado e, à medida que vai sendo criado por Félix Ventura, o encontro com algumas situações surpreendem com a possibilidade da coincidência com o absurdo. A busca de sua suposta mãe, a aquarelista norte-americana Eva Muller, a narrativa do corredor cheio de espelhos e de sua povoada solidão no apartamento em Nova Iorque, a aquarela encontrada e o anúncio de sua morte na Cidade do Cabo, tudo vai colorindo e recheando essa nova identidade.

«A verdade é uma superstição.»

mas......

Entre uma venda de passado e suas implicações, são apresentados os problemas de uma osga (fugir de lacraus, e refrescar-se do calor) e seus sonhos. E temos ainda que contornar o problema de um narrador animal que age como um ser humano sem uma nítida compreensão animal do mundo.

A lucidez da osga é admirável: «A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável. Está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.»

Sua mãe, de Eulálio, aparece em seus sonhos (memórias da vida humana), fala sobre a realidade e o sonho e aconselha: «Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor verídica de tudo que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolha os livros.»

Outra passagem interessante e que nos chamam a atenção: os inúmeros seres que precisam de uma trajetória para legitimar as máscaras que vestem demonstram como os personagens históricos são imortalizados com passados maquiados, enfeitados de fatos falsos, numa ficção memorialista. Numa das biografias forjadas, Felix se destaca ao criar para um de seus clientes um livro de memórias de um Ministro (A vida verdadeira de um combatente), que credita a este cliente, homem público, um conjunto de fatos notáveis para confirmar o personagem idealizado e contextualizado com as suas pretensões futuras.

Contudo, o aparecimento do mendigo Edmundo Barata dos Reis, comunista assumido, ex-agente e ex-gente nas palavras do próprio, cria novos rumos para a narrativa. Os personagens e seus duplos convergirão para um desfecho inusitado, consagrando a narrativa vertiginosa e poética de José Eduardo Agualusa.

Temos também, para complementar, uma trama de amor: Félix Ventura, vendedor de passados, apaixona-se por Ângela Lúcia, mulher que gosta de fotografar nuvens.

........e por aí vai....

(...)