20 maio 2007

Portugal

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


Alexandre O'Neill (1924-1986), in Feira Cabisbaixa, 1965

Comentários: 3

Blogger inominável escreveu...

O Alexandre O'Neil nem precisava de ser surrealista nem desconstruir o Portugal... ele há tantas formas de ver todo o surrealismo português... ele há tantas formas de continuar a descontruir e destruir... e nem precisa de ser plástico: hoje em dia consegue-se fundir quase tudo...

21 maio, 2007 21:19  
Blogger paulocosta escreveu...

Um sarcástico. Via-se no rosto todo o sarcasmo do mundo!

22 maio, 2007 00:54  
Blogger Fernando Ribeiro escreveu...

Prezada Inominável, é evidente que o O'Neill foi um dos nomes maiores do surrealismo português. É evidente também que ele, enquanto tal, se fartou de desconstruir e de se rir com isso. Mas, sinceramente, não me parece que ele neste poema esteja a desconstruir seja o que for, apesar da alusão ao plástico... Neste poema, o O'Neill não se ri nem desconstrói, antes expõe os seus sentimentos com imenso lirismo.

Caro Paulo Costa, eu não acho que o Alexandre O'Neill fosse um sarcástico. Para se ser sarcástico tem-se que ser sobranceiro, julgar-se superior ao objecto do sarcasmo. Sarcástico era o Eça, não o O'Neill. O que o O'Neill era, era terrivelmente irónico, isso sim.

23 maio, 2007 00:05  

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