Os rastros que deixei
no chão petrificados
agora que tornei
estão em mim gravados.
Parti, por que não sei
se tudo ao meu redor
comigo era levado:
os sonhos, a paisagem,
o corpo atormentado,
esquinas dos encontros
por gaze separados,
as chamas sobre os dedos,
o peito apunhalado.
No círculo da estrada
eu sigo e estou parado,
não sei a quem procuro
(serei o procurado?).
Geraldo Falcão, poeta brasileiro
Pegada humana com cerca de doze mil anos, em lago seco do Novo México, Estados Unidos da América (Foto: M. Bennett, Universidade de Bournemouth)
O indígena brasileiro Yatapi Mehynaku mostra dois bancos de madeira feitos por si: um em forma de anta e outro em forma de onça
Quando alguém nos fala em artesanato dos índios brasileiros, vêm-nos à mente imagens de cocares de penas, redes de dormir, esteiras, cestos, cerâmicas, arcos, flechas e zarabatanas, colares e cintos de missangas, etc. Não costumamos lembrar-nos dos bancos de sentar, que são habitualmente zoomórficos, mas também podem tomar outras formas, e são pintados com grafismos tradicionais.
Banco em forma de onça (Foto: Pirathá Waurá)
A presente pandemia de covid-19 tem causado sérios constrangimentos à realização de exposições e feiras, o que provoca dificuldades aos artesãos, que se veem impossibilitados de dar a conhecer e de vender de forma presencial o fruto do seu trabalho. A internet é quase a única saída que lhes resta. Os artesãos do povo Mehinaku, no Parque Indígena do Xingu, nomeadamente, têm-se servido do Youtube, Instagram e outras redes sociais para tentarem vender os seus bancos tradicionais e conseguir algum rendimento para a sua comunidade.
Um museu norte-americano, The Fralin Museum of Art, pertencente à Universidade da Virgínia, tem patente na internet uma exposição virtual sobre bancos artesanais dos indígenas brasileiros, bancos estes que pertencem à Coleção BEĨ, de São Paulo, Brasil. Ela não só contempla bancos tradicionais feitos pelos Mehinaku, como também mostra bancos feitos por vários outros povos indígenas vivendo na Bacia Amazónica, com os estilos e os grafismos próprios de cada povo. A exposição é muito bela e aconselho a que seja "visitada" enquanto é tempo neste local.
Menino sentado num banco em forma de gavião de duas cabeças (Foto de autor desconhecido)
O Inquisidor, óleo sobre madeira de Diogo de Macedo (1889–1959), 1922, Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, Portugal
O autor do quadro representado acima foi, sobretudo, um escultor, e dos maiores em Portugal: Diogo de Macedo.
Eu não sei o que é que há em Vila Nova de Gaia, que faça com que alguns dos maiores escultores portugueses tenham nascido lá. Diogo de Macedo também nasceu em Vila Nova de Gaia. Estudou escultura no Porto e também em Paris, onde viveu vários anos. Produziu muitas e diversificadas obras escultóricas, algumas das quais estão em museus, outras pertencem a coleções particulares e outras ainda estão em espaços públicos. As mais conhecidas das suas obras em espaços públicos talvez sejam as esculturas que se encontram na fonte luminosa da Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa.
Depois que a sua primeira esposa faleceu, Diogo de Macedo deixou de esculpir, mas continuou sempre a promover a arte na organização de exposições, publicação de livros, escrita de artigos em jornais e revistas, realização de conferências, etc. Foi também diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, Lisboa, até à sua morte.
Recebi notícias frescas de Namibiano Ferreira, pseudónimo literário de um poeta angolano vivendo na diáspora. A falta de saúde fê-lo passar por maus momentos, mas Namibiano Ferreira "renasceu" para anunciar que lançou (finalmente!) um livro de sua autoria. O livro chama-se "Ondjira — A Rota do Sul" (a palavra Ondjira significa "Caminho" na língua herero) e acaba de ser publicado pela Chiado Books. Custa 12 Euros em papel e pode ser adquirido online em https://www.chiadobooks.com/livraria/ondjira-a-rota-do-sul.
Para se fazer uma ideia da qualidade da obra poética de Namibiano Ferreira e avaliar o seu mérito, seguem-se três criações suas, extraídas do seu blogOndjira Sul.
ONDE O VENTO PASSA
A minha pátria é onde o vento passa
onde o vento manso ou furioso traça
serpentes de mar sobre o areal e a duna.
A rosa-dos-ventos florindo, afortuna
o chão árido, ouro do sul inteiro
silvando um grito hirto, certeiro
para na minha sede a saudade matar
nesse grito alto: meu Namibe,
eterno deserto que ainda não sei cantar.
O PERFUME DAS CHUVAS Para Midori, a minha neta! Que faz hoje 4 anos.
Quase no final das chuvas e eu choro os desbarulhos da saudade das chuvas futuras que hão-de vir depois do comprido cacimbo.
Em África, as chuvas recriam a vida como se caissem no primeiro dia do Génesis. A cada ano, quando tamborilam as primeiras chuvas, há uma musicalidade mística que habita a alma das gentes. As chuvas trazem um sentido virgem e puro como se o Mundo acabasse de ser inventado.
Aqui, na Europa, as chuvas são simplesmente chuvas, água sem alma, caindo morta e sem um sentido profético de renovação. Não há aquele odor vivo, incaracterístico das chuvas a beijar o chão seco e quente no início de cada estação. A chuva não casa com a terra.
Em África, quando o sémen dos Deuses chove sobre a terra, liberta-se um perfume fresco e telúrico de fartura cozinhada que se come, que se bebe e se respira como se cada pessoa fosse moldada no barro húmido da terra.
MARIA GRAZIELA
Para a minha irmã de criação que não sei viva ou morta.
Lembro o crespo sentir
da tua carapinha dura,
os teus olhos doces de gazela
o teu nome Maria Graziela,
os lábios pequenos, pétalas
suaves de uma flor inominável
e a tua pele, ébano-cetim
onde o sol deixava indelével
beijos cegos de luminosas esferas
sobre o relevo macio do teu rosto.
Maria, tu foste tu és tu serás
a minha irmã, a mana mais velha
a irmã que nunca tive tenho terei...
Foi logo no burburinho inicial
dos ferros e das armas de fogo
quando nos perdemos um do outro.
Disseram-me tinhas ido no Huambo
seguindo a militância dos dias
eu fiquei no Namibe... esperando
vi os karkamanos chegar e partir
porém, só tu nunca vieste...
se por acaso fores viva, ainda,
que o sol te beije por mim
todos os dias a todas as horas;
se já viveste teu komba, então
que os anjos celestes te beijem
e ponham por mim pequeninas
esferas de luz divina em teu rosto.
Tu és a mana mais velha...
a irmã que eu queria voltar a ter.
cacimbo — estação seca
karkamanos — militares do regime racista da África do Sul que invadiram Angola em 1975
komba — em sentido lato, óbito
No Curoca Norte, Namibe, Angola (Composição de fotos: Pedro Klecius)