27 maio 2012

Pentecostes

Pentecostes, por Vasco Fernandes (Grão Vasco, ativo entre 1501 e 1540), sacristia da Igreja de Santa Cruz, Coimbra

Pentecostes, por Vasco Fernandes (Grão Vasco), Museu de Grão Vasco, Viseu


Cum Sancto Spiritu, da Missa em Si Menor, BWV 232, de Johann Sebastian Bach (1685-1750), pelos coros dos Estudantes Coreanos do Glee Club, Honors Capella e Coro Chai Hoon Cha e também pela Primeira Orquestra Filarmónica de Gunpo, Seul, Coreia do Sul, sob a direção do maestro Chai Hoon Cha

25 maio 2012

Fatoumata Diawara

Neste Dia de África, proponho que se escute a cantora maliana Fatoumata Diawara interpretando Wilile

20 maio 2012

Dois poemas de Xanana Gusmão

POVO SEM VOZ

Nosso grito é o silêncio
Na passagem do tempo
E o tempo é o sangue
No silêncio do mundo!

— Ouvi, mundos!
Ouvi, gentes da política!
Invadistes a nossa Pátria com o Suharto,
Isolastes Timor-Leste na guerra fria
e torturastes-nos com a indiferença
e matastes-nos com a cumplicidade.

— Ouvi, ouvi as vossas culpas!
Desengajastes a nossa causa com Jacarta,
Minimizastes o nosso direito na ONU
e prendestes-nos com iénes
e massacrastes-nos com dólares.

Nosso tempo é o silêncio
Nas mudanças do mundo
e o sangue é o preço
nos mundos do silêncio!

— Ouvi, mundos!
Ouvi, gentes do poder!
Abençoastes a mortandade com catedrais,
Enterrastes a tragédia nos investimentos
e desafiastes a nossa consciência
e reprimistes os nossos anseios.

— Ouvi, ouvi as vossas culpas!
Atraiçoastes os vossos próprios princípios,
Manipulastes as vossas próprias normas
e encarcerastes-nos na realpolitik
e matastes-nos como os direitos humanos.

... Somos POVO SEM VOZ
alma sem fronteira com a dor
corpo na escravidão aberto ao tempo
Pátria — um cemitério de interesses!
A nossa luta...
é a história
do poder do silêncio!


MAR MEU

Pudesse eu
prender entre os dedos
os suspiros do mar
e distribui-los
às crianças

Pudesse eu
acariciar com os dedos
a suave brisa das ondas
e sentir cabelos
de crianças

Pudesse eu
sentir nos dedos
o beijo das espumas
e ouvir os risos
das crianças

Pudesse eu
tocar com os dedos
o sono do mar
e embalar os olhos
de crianças

Pudesse eu
ter entre os dedos
belas conchinhas
e fazer colares
p’ra as crianças

Oh, mar meu!
Porque esperas?
Porque não dás?
Porque não sentes?
Porque não ouves?

Imerso nos meus pensamentos
fui subitamente estremecido
Do mar, do meu mar,
vinham tremores
saídos de barcos

Olhei para o céu
que explodia
os suspiros do mar
eram choros de agonia
a suave brisa

o cheiro do pó e do sangue
o beijo das espumas
o estertor da morte
o sono do mar
as pedras da sepultura

e as belas conchinhas
desenhavam
o destino da Pátria!

Crianças de Timor-Leste (Foto de autor não identificado)

19 maio 2012

R.I.P. Dietrich Fischer-Dieskau

O barítono alemão Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), acabado de falecer, canta, nesta gravação, Der Lindenbaum (A Tília), do ciclo Winterreise (Viagem de Inverno) de Franz Schubert, acompanhado ao piano por Gerald Moore

18 maio 2012

Bairros operários

Painel de azulejos no Bairro Estrela d'Ouro, Graça, Lisboa (Foto de autor não identificado)

No princípio do séc. XX, assistiu-se em Portugal a um grande movimento de pessoas que saíram das aldeias e se fixaram nas cidades, sobretudo nas de Lisboa e do Porto. Este fenómeno social teve como causa principal a implantação do caminho de ferro, que permitiu uma maior facilidade de transporte de pessoas e de mercadorias através do território nacional.

Paralelamente, nas cidades desenvolveu-se a indústria, que usou também o comboio para fazer movimentar os seus produtos e que empregou a mão-de-obra barata que se lhe apresentava em abundância. Foi assim que surgiram alguns núcleos industriais nas cidades, que se situaram preferencialmente em locais que dispunham de acessos fáceis ao caminho de ferro. Foram exemplos destes núcleos Alcântara e o Beato, em Lisboa, e Campanhã, no Porto.

Mas as cidades não estavam preparadas para acolher a quantidade de pessoas que a elas afluíam. Não havia casas que chegassem para receber os recém-chegados. Muitos industriais tomaram então a iniciativa de construir casas em bairros, pátios, "vilas" e "ilhas", para alojarem os operários que empregavam nas suas empresas. A maior parte destes bairros operários era de muito má qualidade. Ainda agora, aqui no Porto, a palavra "ilha" continua a ter muito má reputação. Mas houve casos notáveis, em que foram construídos bairros e pátios para operários que tinham uma qualidade muito superior aos demais. Um exemplo de um tal bairro, ainda nesta cidade, é o Bairro do Comércio do Porto, mandado construir pelos proprietários do jornal "O Comércio do Porto" na viragem do séc. XIX para o séc. XX, junto ao cruzamento entre as ruas da Constituição e Serpa Pinto.

No entanto, os bairros operários mais notáveis que conheço estão em Lisboa e não no Porto. Curiosamente, estão ambos muito próximos um do outro, concretamente na zona da Graça: o Bairro Estrela d'Ouro e a Vila Berta. Há quem lhes junte a Vila Sousa, que fica mesmo no Largo da Graça, mas esta a mim não parece ter o mesmo interesse.

O Bairro Estrela d'Ouro, situado entre a Rua da Graça e a capela da Senhora do Monte, foi mandado construir em 1908 por um imigrante galego que fez fortuna em Lisboa na área da pastelaria, chamado Agapito Serra Fernandes. Ora o sr. Agapito, que fez construir a sua própria residência no meio do bairro, resolveu chamar Estrela d'Ouro ao bairro e espalhar estrelas de cinco pontas por todos os lados. Provavelmente, tratou-se de uma homenagem que ele prestou à cidade de Santiago de Compostela, que no tempo dos romanos se chamava Campus Stellæ, isto é, Campo da Estrela.

Reportagem televisiva sobre o Bairro Estrela d'Ouro

A Vila Berta, situada numa rua perpendicular à Rua do Sol à Graça, na encosta que do Largo da Graça desce para os lados de Santa Apolónia, é uma verdadeira graça... É um oásis de beleza e de paz, que nos faz querer ficar a morar ali para o resto dos nossos dias. Foi construída por volta de 1900 por um tal Joaquim Francisco Tojal, que deu à "vila" o nome da sua filha, que se chamava Berta.

Mesmo que não se tenha tempo para ver mais nada na zona da Graça (e há muito para ver, desde a igreja e miradouro até à Voz do Operário), perca-se ao menos um minuto a admirar a Vila Berta. É um encanto.

Vila Berta, Graça, Lisboa (Foto: Dias dos Reis)

14 maio 2012

Concerto nº 5, "Imperador", de Beethoven


Concerto para piano e orquestra nº 5, em mi bemol maior, op. 73, a que chamam Imperador, de Ludwig van Beethoven, pelo pianista polaco Krystian Zimerman e a Orquestra Filarmónica de Viena dirigida pelo maestro norte-americano Leonard Bernstein. Primeiro andamento: Allegro. Segundo andamento: Adagio un poco mosso. Terceiro andamento: Rondò (Allegro)


Sempre que escuto esta belíssima peça de Beethoven, lembro-me de Luanda e da infinita tranquilidade com que o meu espírito ansioso ficava então inundado.

Eu explico. Quando já não faltavam muitos meses para terminar o meu serviço militar em Angola, o meu equilíbrio mental começou a deteriorar-se, a tal ponto que o médico do batalhão a que eu pertencia resolveu enviar-me à consulta externa de Psiquiatria, no Hospital Militar de Luanda.

Em rigor, o serviço de Psiquiatria não ficava no Hospital Militar propriamente dito, mas sim numa dependência situada na zona da Samba, longe, portanto, dos olhares indiscretos. Eram umas instalações verdadeiramente tenebrosas, cercadas de altíssimos muros encimados por arame farpado. Eram uma coisa capaz de fazer inveja aos piores campos de concentração nazis.

Assim que transpus a porta de entrada, fiquei aterrado com as instalações e com a aparência dos doentes que nelas estavam, arrastando-se pelas paredes de olhar perdido e inexpressivo, encharcados de drogas.

Quando me viram, dois ou três doentes aproximaram-se de mim com o ar mais inofensivo do mundo. Perguntaram-me com uma fala entaramelada se eu estava ali para uma consulta externa. Sem vontade nenhuma de conversar com quem quer que fosse, acabei por lhes responder que sim. Perguntaram-me se era a primeira vez que eu lá ia. Respondi-lhes também que sim. Disseram-me eles então:

— Oh, pá! Tu não queiras ser internado aqui. Se eles te quiserem internar, recusa. Recusa sempre, o mais que puderes, porque isto aqui é mesmo muito mau. O pior de tudo não são as instalações nem o ambiente que se respira aqui dentro, que é o que tu vês. O pior de tudo são os eletrochoques que eles nos aplicam. Isto de os gajos aplicarem choques elétricos às cabeças das pessoas é a mais atroz de todas as torturas. Não fazes ideia do sofrimento que provoca. É preferível partir as duas pernas e os dois braços, mais duas dúzias de costelas e ainda rachar a cabeça, tudo ao mesmo tempo, a sofrer eletrochoques. Tu recusa ficar aqui, se eles te quiserem internar. Recusa sempre.

Fui chamado para a consulta e fui atendido por um psiquiatra que, depois de me ter feito três ou quatro perguntas, me diagnosticou um esgotamento. Disse que o que eu tinha não era grave, era apenas o resultado de muitos meses de tensão. Acrescentou que eu só precisava de repouso, num ambiente calmo e descontraído, e que o tratamento seria em regime ambulatório, sem necessidade de internamento. Receitou-me uns antidepressivos e uns ansiolíticos e mandou-me embora, depois de marcar uma nova consulta para dali a poucos dias.

Acabei por ficar um mês em Luanda. Consegui que me emprestassem um gira-discos e alguns discos, de variados artistas e géneros: Ravi Shankar, Led Zeppelin, Chico Buarque e mais alguns. Mas o disco a que fiquei fascinadamente preso foi um que tinha o Concerto Imperador, de Beethoven. Perdi a conta ao número de vezes em que ouvi este disco. O som quente e envolvente deste sublime concerto foi o melhor complemento que eu poderia ter arranjado para o tratamento que estava a fazer. Ouvia o concerto e sentia-me no céu. Voltava a ouvi-lo e voltava a sentir-me no céu. Nunca me cansei deste concerto. Que paz ele me provocava!

Continuei a ir regularmente ao Serviço de Psiquiatria, para que o médico acompanhasse o evoluir da minha situação e corrigisse a medicação em conformidade. Ao fim de um mês, informou-me que o tempo do meu regime ambulatório tinha acabado. Para que eu pudesse continuar em Luanda, ele teria que me internar, o que não queria fazer, pois registava nítidas melhorias no meu estado. Mandou-me de volta para a minha companhia com um punhado de receitas por ele passadas, a fim de que eu pudesse continuar a tomar a medicação. Fez-me uma fortíssima recomendação (fortíssima!) de que em circunstância nenhuma eu deveria aumentar as doses. Se eu deixasse de sentir os efeitos dos medicamentos, deveria deixar de os tomar pura e simplesmente. Cumpri escrupulosamente a recomendação.

Não tenha pena de mim. Não preciso da compaixão de ninguém. Acabei por ficar bem. Não sofro de stress pós-traumático, ao contrário do que acontece com muitos milhares de outros antigos combatentes da guerra colonial. Dou graças a Beethoven e ao tratamento recebido em Luanda, que foi eficaz porque foi feito a tempo.

13 maio 2012

Recordações


Há dias, voltei a ouvir, pela primeira vez ao fim de quarenta anos, uma canção de Paul Simon chamada Mother and Child Reunion. Senti um intenso arrepio percorrer-me as costas, não por causa do conteúdo da letra da canção, mas por causa das recordações intensíssimas que ela fez aflorar ao meu espírito. Foi como se eu vivesse de novo a situação em que me encontrava no tempo em que esta canção estava nos tops e eu a ouvia repetidas vezes em disco e no rádio. Cumpria eu então o serviço militar obrigatório e aguardava em Santa Margarida a partida para a guerra colonial em Angola.

Na sequência desta primeira e vivíssima recordação, outras recordações me surgiram com grande vigor atrás dela, assim como algumas outras músicas que, independentemente do seu conteúdo, a elas ficaram indelevelmente associadas no meu espírito, porque então as ouvia frequentemente. Permita-me que narre algumas destas recordações, acompanhadas pelas músicas respetivas. Procurei colocar as músicas junto dos acontecimentos que me evocam.


O Charlatão, por Sérgio Godinho

No tempo da guerra colonial, para qualquer jovem português mobilizado para a guerra, os dias de espera pela hora da partida para África eram dias de angústia, evidentemente. Para mim, eles foram mais do que isso; foram dias de uma ansiedade tal que chegou a roçar o desespero, em resultado de um acontecimento inesperado. Por vezes acontecem situações na nossa vida que nos levam a dizer: «Isto só a mim!» «Que mal é que eu fiz para merecer isto?» Foi o que me aconteceu então.

O batalhão de caçadores a que pertenci e no qual fui mobilizado para Angola no cumprimento do serviço militar obrigatório, como alferes miliciano atirador de Infantaria, foi um batalhão constituído por militares portugueses ("metropolitanos", como se dizia naquele tempo) e por militares angolanos ("de incorporação da província", como então se dizia também). Portanto, o batalhão começou por se formar cá em Portugal, só com os elementos portugueses, e completou-se mais tarde em Angola, com os elementos angolanos.

No início da constituição do batalhão cá em Portugal, eu não conhecia nenhum dos soldados que então foram nomeados para fazer parte da minha companhia. Os outros três aspirantes da companhia (ainda não éramos alferes nesse momento) conheciam aqueles homens, porque já lhes tinham dado instrução militar (especialidade). Conheciam-lhes os méritos e os deméritos, as qualidades e os defeitos, mas eu não conhecia.

No momento inicial de distribuir os homens pelos quatro grupos de combate, o comandante da companhia mandou fazer uma formatura em linha e ordenou:

— Agora os senhores aspirantes façam o favor de escolher os homens que querem.

Eu objetei, tentando dizer que não estava em condições de fazer uma tal escolha, porque não conhecia aqueles homens, contrariamente aos outros aspirantes. O comandante da companhia não me deixou falar, interrompendo-me e insistindo repetidamente comigo:

— Escolhe. Tens de escolher os homens que queres. Os outros aspirantes já estão a escolher. Tu também tens que escolher. Olha que assim ficas com os piores...

Quanto mais eu procurava explicar-lhe que não estava nas mesmas condições que os outros para poder escolher, mais ele me interrompia, gritando:

— Escolhe, já disse! Tens de escolher! Sou eu que te mando!

A dado momento, os outros aspirantes deram por finda a sua escolha, sem que eu tivesse escolhido quem quer que fosse e sem que o comandante da companhia me tivesse dado ouvidos. Disse-me este:

— Estás a ver o resultado? Os outros aspirantes já escolheram e tu acabaste por ficar com os piores. Quer gostes, quer não gostes, vai ser com esses que vais ficar. Foste tu que assim quiseste. E não esperes nenhum tratamento de favor da minha parte.

Já só me limitei a responder:

— Pode ter a certeza absoluta de que nunca lhe irei pedir favor nenhum.

Olhei para os soldados que me estavam destinados e senti-me desfalecer. Pensei: «Sou um homem morto! É com este pessoal que eu vou para a guerra? Estou morto. Eu com homens neste estado não vou durar nem uma semana em Angola! Já me estou a imaginar a regressar dentro de um caixão...»

Com efeito, o aspeto dos meus novos subordinados portugueses era arrepiante. Não admirava que tivessem sido rejeitados pelos outros aspirantes. Alguns daqueles soldados pareciam atrasados mentais; outros pareciam sifilíticos ou coisa parecida. Todos eles pareciam completamente impróprios para servirem como soldados numa guerra. Nem um só se aproveitava. Os três excelentes furriéis milicianos que comandei (então ainda só tinham o posto de primeiros-cabos milicianos) pareciam tão aterrados como eu.

«Que mal é que eu fiz para merecer isto?», pensava eu e pensavam, certamente, os cabos milicianos. «O que é que vai ser de nós, na guerra, com homens assim? Isto não pode ser verdade. Eu devo estar a sonhar e isto é um pesadelo». Mas não era pesadelo nenhum. Era a realidade, que eu tinha que enfrentar custasse o que custasse.


Casa Comigo Marta, por José Mário Branco

Completado o batalhão no que à sua parte europeia dizia respeito, fomos enviados para o Campo Militar de Santa Margarida, onde iríamos aguardar o dia da nossa partida para Angola, o que deveria acontecer dentro de perto de dois meses. Achei que, durante esse tempo, talvez ainda fosse possível fazer algum esforço para melhorar a preparação dos soldados que me tinham calhado em sorte, mas as coisas não se passaram tal como eu esperava.

Naquele tempo, os batalhões e companhias que estavam aquartelados em Santa Margarida, à espera de embarque para as colónias, eram habitualmente ocupados com uma intensa atividade de preparação para a guerrilha, que era a chamada IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional). Mas o meu batalhão estava incompleto e, por isso, não podia receber a IAO em Santa Margarida; só depois, já em Angola, é que poderia recebê-la. Assim, enquanto permaneceu em Santa Margarida, o meu batalhão não teve qualquer atividade superiormente programada, nem qualquer orçamento atribuído para esse efeito, nem coisa nenhuma. Apenas lhe foram reservados os alojamentos que ocupou até ao dia do embarque e mais nada.

Nestas condições, ao pessoal do batalhão foi sendo dada uma instruçãozinha de meia-tigela, que tinha como única finalidade mantê-lo ocupado com alguma coisa até ao dia do embarque. Fazia-se alguma ginástica, dava-se uma ou outra lição de tática, havia umas quantas palestras "patrióticas" feitas pelo comandante, muitas e longas pausas e muitas e longas horas de ordem unida. Ordem unida, imagine-se! Pôr soldados que vão para uma guerra no mato africano a marchar para a frente e para trás, um-dois-esquerdo-direito, durante horas a fio, não lembrava ao diabo! Eu estava exasperado. O tempo urgia cada vez mais e nós estávamos a desperdiçá-lo com aquelas mariquices!

Resolvi então atuar por minha conta e risco, mandar o batalhão à fava e ser eu sozinho a dar aos meus subordinados a instrução de que eles necessitavam com tanta urgência. Se eu viesse a ser punido por isso, pouco me importava. Eu ia para a guerra, pior não me poderia acontecer.

Descobri por acaso uma maneira de levar os meus homens para fora do Campo Militar, para a charneca vizinha, onde lhes poderia ensinar tática militar sem sofrer interferência dos meus superiores hierárquicos. Descobri também que poderia usar a carreira de tiro do Campo, onde o meu pessoal poderia gastar algumas das muitas munições excedentárias que, como vim também a descobrir, havia na arrecadação de material de guerra.

Afastados assim os possíveis obstáculos à minha decisão de ministrar uma espécie de IAO privativa aos meus subordinados, passei a pôr diariamente em prática um programa de atividades, que incluía muita preparação física, muito tiro e, sobretudo, muita tática de guerrilha. Devidamente apoiado pelos meus excelentes cabos milicianos, procurei ensinar-lhes tudo quanto eu próprio tinha aprendido em Mafra.


Mother And Child Reunion, por Paul Simon

Aquelas semanas em Santa Margarida foram muito duras para mim. Muitas e muitas vezes me senti profundamente desanimado e com vontade de desistir, pois dificilmente eu conseguia vislumbrar algum progresso na preparação militar dos meus homens. Quando vim gozar a semana de licença que era costume dar, pouco tempo antes do embarque, aos militares que estavam mobilizados para a guerra (as "normas" ou qualquer coisa assim parecida; já não me lembro do nome da licença), sentia-me profundamente deprimido, quase à beira do desespero. Todo o esforço dispendido naquela corrida contra o tempo me parecia ter sido inútil.

Mas quando regressei a Santa Margarida no fim da licença e voltei a encontrar os meus subordinados, eu nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Foi só após aquela semana de ausência que eu me apercebi, com grande espanto meu, que eles tinham mesmo evoluído, e até de forma verdadeiramente espetacular. Pareceram-me mais aprumados do que os outros, mais rijos do que os outros e mais confiantes do que os outros. Os "sifilíticos" e os "atrasados mentais" de outrora já não existiam mais. Alguns estavam mesmo irreconhecíveis. «Tenho homens!», pensei, espantado com tão grande transformação. «Como é possível que eu não me tenha apercebido deste milagre antes? Tenho homens!»


Cantigas do Maio, por José Afonso

Um dia, ainda em Santa Margarida, os aspirantes das três companhias de caçadores pertencentes ao batalhão, incluindo eu próprio, tomaram em conjunto uma resolução, que iria pautar a sua conduta ao longo de toda a sua estadia em Angola. Foi uma resolução tomada espontaneamente e não de forma organizada, mas foi uma resolução muito séria e muito decidida, em que cada um de nós ficou como testemunha e como futuro juíz dos restantes. Uns perante os outros, tomámos então a seguinte resolução:

«Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentrar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Não sabemos sequer se estaremos no lado certo ou no lado errado da guerra. Só em Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos ou não no lado certo, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, iremos procurar agir sempre dentro dos limites éticos que a nossa consciência nos impuser. Talvez esta seja uma tarefa impossível de cumprir no meio de uma guerra, não sabemos, mas pelo menos iremos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para agir de acordo com a nossa consciência, custe o que custar».

Quando embarquei no avião da Força Aérea que me iria levar para Angola, juntamente com a parte europeia da minha companhia, eu sentia-me fortalecido com a resolução tomada, que estava disposto a cumprir. O mesmo se passava com os outros alferes.


Águas de Março, por Elis Regina

À chegada ao quartel do Grafanil, em Luanda, fomos informados de que a companhia que íamos render tinha a sua partida marcada para muito brevemente e, por isso, a nossa Instrução de Aperfeiçoamento Operacional teria que durar apenas uma semana. «Isto começa mal», pensei.

No dia seguinte, de manhã, chegaram os camaradas angolanos que iriam fazer parte da nossa companhia, vindos diretamente da cidade do Lubango, então chamada Sá da Bandeira.

«Estou salvo», pensei, dando um grande suspiro de alívio, assim que vi todos aqueles negros e mestiços de ar desempoeirado, porte digno e olhar inteligente. «Estou salvo. Quaisquer que sejam os que vierem a ficar comigo, serão bons com certeza».

Como já tinha acontecido em Portugal, o capitão mandou os angolanos formar em linha e ordenou:

— Os alferes escolham os homens que querem.

— Eu não escolho — repliquei de modo displicente.

— Estás doido?! — gritou o capitão. — Tu já tens os piores dos brancos e agora queres ficar com os piores dos africanos? És suicida ou quê? Escolhe! É uma ordem!

— Não escolho — teimei, pensando: «Só agora é que ele se preocupa? Agora é tarde demais. Assim como consegui resolver o problema de uns, também hei de resolver o dos outros, que nem problema parece ser. Agora é que não escolho mesmo». Acrescentei:

— Isto não é maneira de distribuir pessoas. Eles são seres humanos, não são animais. Não se devem escolher homens como quem escolhe cabeças de gado.

Enquanto o capitão e eu discutíamos, os outros alferes iam fazendo as suas escolhas. No fim, fiquei com os angolanos que restaram. «Nada mau», pensei ao vê-los. «Não me parecem piores do que os outros».

Foi imediatamente bom o relacionamento que se estabeleceu entre angolanos e portugueses. O enorme companheirismo dos angolanos logo derrubou barreiras e dissipou desconfianças. Ao fim de um par de horas, já parecia que eram todos amigos de longa data. É claro que o facto de todos eles estarem nas mesmas difíceis circunstâncias também desempenhou um papel muito importante na sua aproximação.

Ao fim do dia, quando ficámos livres das nossas obrigações e pudemos sair do quartel, todos os angolanos da companhia saíram logo disparados a correr pela porta fora. Os que eram de Luanda foram os primeiros a sair, ansiosos por voltar a casa e reencontrar os seus familiares. Desde que tinham sido incorporados no serviço militar obrigatório e enviados para o Regimento de Infantaria 22, no Lubango, a fim de fazerem a recruta e a especialidade, nunca mais puderam estar junto dos seus. Tendo sido colocados a mil quilómetros de distância, é evidente que não tinham podido vir passar os fins de semana a casa...

Os restantes angolanos também saíram cheios de pressa. Meteram-se em táxis e foram diretamente à Ilha de Luanda, para verem o mar antes que a noite caísse. A maior parte deles nunca tinha visto o mar. A forte impressão que a visão do mar lhes causou foi depois motivo para muitas horas de conversa.

O dia seguinte era para ser o dia da nossa partida para o Úcua, mesmo ao pé da zona de guerra, onde iríamos receber a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional. Era para ser, mas não foi. Partimos, sim, mas para a própria guerra...

— Vamos render imediatamente a companhia que está à nossa espera — comunicou-nos o capitão. — Não vamos receber IAO nenhuma, porque não há tempo para isso. Quem estiver preparado, está; quem não estiver, estivesse.

Avançámos para o norte, com o coração aos saltos. «Olha se eu não tivesse dado aquela instrução toda em Santa Margarida...», pensei. «Agora estaria em maus lençóis».


Have You Ever Seen The Rain?, por Creedence Clearwater Revival

Ao longo de toda a comissão militar em Angola, que durou dois anos e dois meses, todos os meus subordinados — furriéis, cabos e soldados; portugueses e angolanos sem distinção — comportaram-se de uma forma que ultrapassou tudo o que de melhor eu poderia esperar. Eles foram verdadeiramente insuperáveis no esforço, na generosidade e na valentia.

Dou apenas um pequeno exemplo da sua espantosa coragem. No decurso de uma operação militar, eles avançaram, sem vacilar, por um trilho minado e armadilhado, sabendo antecipadamente que o trilho estava minado! Ainda por cima, numa operação anterior, já um seu camarada tinha ficado sem uma perna por ter pisado uma mina! É evidente que eles tomaram todas as cautelas possíveis e transpiraram litros de suores frios. Avançaram lenta e cuidadosamente pelo trilho, mas avançaram sem hesitar.

Por outro lado, nem uma só vez eles se comportaram como cães de guerra espalhando a morte à sua volta, como o capitão gostaria que eles fizessem. O próprio lema da companhia, que o capitão escolheu, era um incitamento repugnante: «A cada um a sua própria morte»! De maneira nenhuma os outros três alferes e eu próprio estávamos dispostos a permitir um tão odioso comportamento. Felizmente nunca foi precisa qualquer intervenção nossa a este respeito. O nosso pessoal nunca se deixou desumanizar, apesar de algumas situações extremas que se viveram. Nunca, em tempo algum, os nossos homens deixaram de ser sensíveis à morte e ao sofrimento humano.


Tata Nkento, por Alberto Teta Lando

Sinto um orgulho enorme nos subordinados que me coube comandar. Eles foram, verdadeiramente, os melhores. Isto mesmo foi publicamente reconhecido pelos outros camaradas que com eles comeram o pão que o diabo amassou no inferno verde do norte de Angola.

— Só ao lado deles é que nos sentimos seguros — disseram, textualmente, os outros a seu respeito. — São os únicos em quem temos confiança.

Isto não aconteceu por acaso e a explicação é simples. Quando, no início, foram rejeitados pelos outros alferes, os meus cabos e soldados sentiram-se feridos na sua dignidade pessoal. Este facto levou-os a procurar provar aos outros e sobretudo a si próprios que tinham tanto valor como eles. Superaram-se e conquistaram com sangue, suor e lágrimas o respeito que lhes fora negado. Posso, por isso, afirmar categoricamente que fui um privilegiado por ter tido a meu lado companheiros dotados de uma tal fibra.

Fui ainda mais privilegiado porque entre eles havia angolanos, que foram as pessoas mais extraordinárias que conheci. Não há dinheiro no mundo que pague toda a sua sabedoria, toda a sua generosidade e toda a sua sensibilidade. Depois de os ter conhecido, nunca mais fui o mesmo. Tenho os seus nomes escritos em letras de ouro no meu coração: Domingos Amado Neto, Silva Alfredo dos Santos, Domingos Cangúia, Diogo Manuel, Ramiro Elias da Silva, Domingos Jonas, Mateus Tchinguri, Jonas Vitorino, Lucas Quinta, Henrique Luneva, Raimundo Nunulo, Domingos Dala, Fortunato Francisco João Diogo e Simão João Leitão Cavaleiro. Nunca os esquecerei.

Só lamento não ter conseguido ser um alferes à altura do que todos eles — angolanos e portugueses — mereciam.


Muimbu Ua Sabalu, por Barceló de Carvalho (Bonga)

07 maio 2012

Ermida do Paiva


A poucos quilómetros de Castro Daire e muito perto da tortuosa estrada que, acompanhando o vale do Rio Paiva, liga Castro Daire a Alvarenga e a Castelo de Paiva, fica um templo muito curioso. É a Ermida do Paiva, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Construída em finais do séc. XII, esta ermida fazia parte de um antigo mosteiro, de que restam alguns vestígios, nomeadamente alguns arcos do claustro. Trata-se de uma igreja construída em granito, em sólido estilo românico, embora a existência de alguns arcos ogivais sugiram já o despontar do estilo gótico.

Quando nos aproximamos da igreja vindos da estrada acima referida (EN 225), não nos damos conta do interesse que aquele templo tem. Parece-nos ser apenas mais uma igreja românica, semelhante a muitas outras que existem por todo o norte de Portugal, uma igreja bonita, como todas as igrejas românicas são, mas nada mais. Só quando nos abeiramos dela é que nos damos conta da sua especificidade e do seu grande interesse: praticamente todas as pedras que compõem a ermida apresentam, de forma bem visível, uma sigla gravada. Há siglas de variadas formas, como estrelas de cinco e de seis pontas, cruzes, espirais, linhas compostas, etc. Diante de tanta profusão de siglas, sentimo-nos fascinados e intrigados. O que será que aquilo quer dizer?


Não há a certeza de quais serão a razão e o significado daquelas siglas. Há quem indique que elas são símbolos usados em práticas ocultistas, que os monges do antigo mosteiro praticariam; há mesmo quem relacione os monges com os templários; mas há também quem, muito prosaicamente, sugira que as siglas não são mais do que marcas identificativas dos canteiros que trabalharam aquelas pedras. Como naquele tempo os pedreiros não sabiam escrever, eles adotariam um símbolo geométrico específico, que seria uma espécie de assinatura individual, para afirmar: «Este bloco de pedra fui eu que o trabalhei». Parece que na Idade Média era frequente o uso de símbolos individuais como identificação dos artífices.

Seja como for, a verdade é que a Ermida do Paiva merece uma visita. E mesmo que não o merecesse, merece com certeza uma visita toda a região que a envolve, que é uma região isenta de poluição e cheia de enormes belezas naturais. Agora que os dias bonitos vão começar, recomendo que se vá até Ermida do Paiva e se deem umas voltas por Castro Daire, a Serra de Montemuro, o Alto de São Macário, o Rio Paiva de águas frescas e margens convidativas, as aldeias de Drave, Covas do Monte, Covas do Rio, Janarde e outras, e se conclua o passeio com um jantar em Alvarenga, onde se comem os melhores bifes do mundo.

(Foto: GM)

03 maio 2012

Marretas

Uma louca reinterpretação de Bohemian Rhapsody, dos Queen

01 maio 2012

Perguntas de um operário letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
da Lima dourada moravam os seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China, para onde
foram os seus pedreiros? A grande Roma
está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
só tinha palácios
para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
na noite em que o mar a engoliu
viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias.
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos.
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas

Bertolt Brecht (1898-1956)


Desenho de José Dias Coelho (1923-1961)