Concerto nº 5, "Imperador", de Beethoven
Concerto para piano e orquestra nº 5, em mi bemol maior, op. 73, a que chamam Imperador, de Ludwig van Beethoven, pelo pianista polaco Krystian Zimerman e a Orquestra Filarmónica de Viena dirigida pelo maestro norte-americano Leonard Bernstein. Primeiro andamento: Allegro. Segundo andamento: Adagio un poco mosso. Terceiro andamento: Rondò (Allegro)
Sempre que escuto esta belíssima peça de Beethoven, lembro-me de Luanda e da infinita tranquilidade com que o meu espírito ansioso ficava então inundado.
Eu explico. Quando já não faltavam muitos meses para terminar o meu serviço militar em Angola, o meu equilíbrio mental começou a deteriorar-se, a tal ponto que o médico do batalhão a que eu pertencia resolveu enviar-me à consulta externa de Psiquiatria, no Hospital Militar de Luanda.
Em rigor, o serviço de Psiquiatria não ficava no Hospital Militar propriamente dito, mas sim numa dependência situada na zona da Samba, longe, portanto, dos olhares indiscretos. Eram umas instalações verdadeiramente tenebrosas, cercadas de altíssimos muros encimados por arame farpado. Eram uma coisa capaz de fazer inveja aos piores campos de concentração nazis.
Assim que transpus a porta de entrada, fiquei aterrado com as instalações e com a aparência dos doentes que nelas estavam, arrastando-se pelas paredes de olhar perdido e inexpressivo, encharcados de drogas.
Quando me viram, dois ou três doentes aproximaram-se de mim com o ar mais inofensivo do mundo. Perguntaram-me com uma fala entaramelada se eu estava ali para uma consulta externa. Sem vontade nenhuma de conversar com quem quer que fosse, acabei por lhes responder que sim. Perguntaram-me se era a primeira vez que eu lá ia. Respondi-lhes também que sim. Disseram-me eles então:
— Oh, pá! Tu não queiras ser internado aqui. Se eles te quiserem internar, recusa. Recusa sempre, o mais que puderes, porque isto aqui é mesmo muito mau. O pior de tudo não são as instalações nem o ambiente que se respira aqui dentro, que é o que tu vês. O pior de tudo são os eletrochoques que eles nos aplicam. Isto de os gajos aplicarem choques elétricos às cabeças das pessoas é a mais atroz de todas as torturas. Não fazes ideia do sofrimento que provoca. É preferível partir as duas pernas e os dois braços, mais duas dúzias de costelas e ainda rachar a cabeça, tudo ao mesmo tempo, a sofrer eletrochoques. Tu recusa ficar aqui, se eles te quiserem internar. Recusa sempre.
Fui chamado para a consulta e fui atendido por um psiquiatra que, depois de me ter feito três ou quatro perguntas, me diagnosticou um esgotamento. Disse que o que eu tinha não era grave, era apenas o resultado de muitos meses de tensão. Acrescentou que eu só precisava de repouso, num ambiente calmo e descontraído, e que o tratamento seria em regime ambulatório, sem necessidade de internamento. Receitou-me uns antidepressivos e uns ansiolíticos e mandou-me embora, depois de marcar uma nova consulta para dali a poucos dias.
Acabei por ficar um mês em Luanda. Consegui que me emprestassem um gira-discos e alguns discos, de variados artistas e géneros: Ravi Shankar, Led Zeppelin, Chico Buarque e mais alguns. Mas o disco a que fiquei fascinadamente preso foi um que tinha o Concerto Imperador, de Beethoven. Perdi a conta ao número de vezes em que ouvi este disco. O som quente e envolvente deste sublime concerto foi o melhor complemento que eu poderia ter arranjado para o tratamento que estava a fazer. Ouvia o concerto e sentia-me no céu. Voltava a ouvi-lo e voltava a sentir-me no céu. Nunca me cansei deste concerto. Que paz ele me provocava!
Continuei a ir regularmente ao Serviço de Psiquiatria, para que o médico acompanhasse o evoluir da minha situação e corrigisse a medicação em conformidade. Ao fim de um mês, informou-me que o tempo do meu regime ambulatório tinha acabado. Para que eu pudesse continuar em Luanda, ele teria que me internar, o que não queria fazer, pois registava nítidas melhorias no meu estado. Mandou-me de volta para a minha companhia com um punhado de receitas por ele passadas, a fim de que eu pudesse continuar a tomar a medicação. Fez-me uma fortíssima recomendação (fortíssima!) de que em circunstância nenhuma eu deveria aumentar as doses. Se eu deixasse de sentir os efeitos dos medicamentos, deveria deixar de os tomar pura e simplesmente. Cumpri escrupulosamente a recomendação.
Não tenha pena de mim. Não preciso da compaixão de ninguém. Acabei por ficar bem. Não sofro de stress pós-traumático, ao contrário do que acontece com muitos milhares de outros antigos combatentes da guerra colonial. Dou graças a Beethoven e ao tratamento recebido em Luanda, que foi eficaz porque foi feito a tempo.
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