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O convento de Mafra (Foto: Henrique Ruas) |
Sempre que vou a Mafra, sinto um arrepio percorrer-me as costas. Este arrepio é um resquício, que nunca consegui eliminar completamente, do tempo em que comecei a cumprir o serviço militar obrigatório. Frequentei durante seis meses o Curso de Oficiais Milicianos na Escola Prática de Infantaria, instalada nas traseiras do gigantesco convento. Não consigo, por isso, gostar de tão monstruoso e pesadão edifício, fruto da megalomania de um rei pelo qual também não sinto qualquer simpatia: D. João V.
Todo o convento de Mafra foi construído para nos fazer sentir, a nós comuns mortais, o peso esmagador da glória do rei, que a exploração desenfreada das riquezas do Brasil possibilitou. Tudo no convento foi feito para nos fazer sentir insignificantes. Tudo nele é desmesurado e desumano. A única coisa de que gosto no convento é a sua espantosa biblioteca; só ela é que me faz voltar a Mafra uma e outra vez. De resto, até a basílica é para mim completamente gelada, mesmo no mais escaldante dia de verão, talvez por causa da sua extraordinária profusão de frios mármores (todos eles portugueses, diga-se em abono do rei), assim como das suas estátuas e imagens, que são igualmente frias e impessoais, apesar de serem valiosíssimas de um ponto de vista estritamente artístico.
Como disse, tudo no convento de Mafra é desmedido. Tudo, até... os ratos! Ou não? Afinal, o que é que há de verdade e o que é que há de mentira nas histórias que se contam a respeito dos ratos do convento de Mafra?
Quando eu estava a cumprir a tropa em Mafra e vinha passar os fins de semana a casa, as pessoas faziam-me frequentemente perguntas acerca dos famosos ratos. «É verdade que os ratos de Mafra são cegos? É verdade que os ratos de Mafra são pelados? É verdade que os ratos de Mafra são grandes como coelhos? É verdade que os ratos de Mafra até os gatos comem?», perguntavam-me. E eu respondia que não sabia de nada disso, porque nunca tinha visto nenhum... As pessoas zangavam-se com a minha resposta e achavam que eu estava a gozar com elas. Algumas, mesmo, sentiam-se profundamente ofendidas! Como era possível que eu nunca tivesse visto um rato em Mafra?! Por quem é que eu as tomava, para lhes mentir tão descaradamente? TODA A GENTE sabia que nos subterrâneos do convento havia ratos aos milhões. Ratos pelados, cegos, carnívoros e tudo!
Pois bem. Não há ratos pelados, cegos e carnívoros em Mafra. Não há. Nem eles são aos milhões. Também não são. Para dizer a verdade, não há em Mafra mais ratos do que em qualquer outra povoação de idênticas dimensões. Não há mesmo! E os que existem não são ratos mutantes; são ratos iguais aos outros ratos. Porque a verdade é esta: no convento de Mafra também não existem os medonhos subterrâneos que muitas pessoas julgam que existem. Não existem! O que existe é uma rede de esgotos, que é extraordinariamente engenhosa segundo dizem os entendidos. É claro que em todos os esgotos vivem ratos e nos do convento também se devem encontrar alguns. Mas não aos milhões! Se duvida do que acabo de afirmar, peço-lhe que visite a seguinte página do portal
Monumento de Mafra Virtual, intitulada "Os ratos-gambozinos de Mafra":
http://www.cesdies.net/monumento-de-mafra-virtual/os-ratos-gambozinos-de-mafra.
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Uma galeria da rede de esgotos do convento de Mafra. Onde estão os ratos? (Foto: Manuel J. Gandra) |
Pode ir a Mafra à vontade, passear pela vila e visitar as dependências do convento que estão abertas ao público, nomeadamente a basílica e o palácio real. Pode maravilhar-se com a magnífica biblioteca, onde milhares e milhares de preciosíssimos livros se mantêm intactos há mais de duzentos anos, sem que algum rato tenha alguma vez feito estragos neles. Os únicos habitantes habituais da biblioteca do convento de Mafra, aliás, não são ratos; são morcegos, que comem os bichos que poderiam destruir os livros que na biblioteca se guardam.
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Na biblioteca do convento de Mafra há milhares e milhares de livros em que nunca rato algum tocou (Foto de autor desconhecido) |
Se for a Mafra e se fartar da presença esmagadora e totalitária do convento, vire-lhe a costas e percorra a comprida rua que se encontra mesmo em frente à basílica e à sua escadaria. Ao fundo dessa rua encontrará um outro monumento de Mafra: a igreja de Santo André. Ao contrário do convento, esta igreja não tem nada de extraordinário. É um templo bastante rústico, até, de estilo gótico, embora ainda apresente alguns vestígios do românico. É uma igreja simples e bonita e é uma das igrejas mais antigas de toda a região saloia. Em toda esta região, talvez só a igreja de Santa Maria, em Sintra, que foi mandada construir pelo rei D. Afonso Henriques, é que é mais antiga.
Há ainda a referir que há quem diga, mas parece que não há provas que confirmem esta afirmação, que entre os párocos de Santo André de Mafra se contou Pedro Julião, que também foi chamado Pedro Hispano e que veio a ser o único papa português, o papa João XXI.
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Capitéis do portal principal da igreja de Santo André, em Mafra (Foto: IGESPAR) |
Eu comecei por escrever que, sempre que vou a Mafra, sinto um arrepio percorrer-me as costas. Isto acontece-me porque o tempo de tropa que passei em Mafra foi bastante traumatizante, em consequência dos mortos e dos feridos que houve entre os meus camaradas de companhia, fruto da brutalidade da instrução militar que nos foi ministrada na Escola Prática de Infantaria. Durante a instrução do primeiro ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, houve entre os soldados-cadetes da minha incorporação três mortos, por afogamento, e ainda dois feridos, também da minha companhia de instrução, num outro incidente, um dos quais ficou cego de um olho.
Estes casos passaram-se em junho de 1971 e nunca vieram a público, porque a censura não permitiu. Só o
Avante!, jornal clandestino do clandestino Partido Comunista Português é que deu a notícia do afogamento e da subsequente reação dos soldados-cadetes, eu incluído. Independentemente do tom militante e combativo em que a notícia do
Avante! foi escrita, ela é verdadeira, com exceção do número de mortos. Na verdade morreram três soldados-cadetes e não quatro. O resto da notícia corresponde à verdade. Estive lá e vivi os acontecimentos relatados.