30 maio 2018

André Reinoso


Milagre de S. Francisco Xavier, óleo sobre tela de André Reinoso, Igreja de S. Roque, Lisboa, Portugal

Quase nada se sabe sobre a vida do pintor André Reinoso. Apenas se sabe que foi o primeiro pintor barroco português, deve ter nascido por volta de 1590 na região das Beiras, esteve ativo a partir de 1610 e faleceu em 1641. Sabe-se ainda que em 1619 executou vinte pinturas sobre a vida e obra de Francisco Xavier, integradas numa campanha que tinha em vista a rápida canonização deste missionário jesuíta, a qual ocorreu em 1622. Além do seu valor artístico, esta coleção dedicada a São Francisco Xavier documenta de forma expressiva a diversidade étnica e cultural da população de Goa nos sécs. XVI e XVII.


Pregação de S. Francisco Xavier em Goa, óleo sobre tela de André Reinoso, Igreja de S. Roque, Lisboa, Portugal

Naufrágio de S. Francisco Xavier na viagem do Japão para a Índia, óleo sobre tela de André Reinoso, Igreja de S. Roque, Lisboa, Portugal

25 maio 2018

Ondas do mar de Vigo


Ondas do Mar de Vigo, cantiga de amigo de Martim Codax (este x pronuncia-se como em caixa ou em enxame), jogral galego que viveu entre meados do séc. XIII e princípios do séc. XIV, por intérpretes lamentavelmente não identificados. Tanto o poema desta cantiga de amigo como a sua música são originais do próprio Martim Codax, tal como figuram num pergaminho descoberto por Pedro Vindel no início do séc. XX e que por isso é chamado pergaminho Vindel

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
E ai, Deus!, se verrá cedo!

Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Se vistes meu amado,
por que hei gran cuidado!
E ai Deus!, se verrá cedo!

Martim Codax (meados do séc. XIII – inícios do séc. XIV)

19 maio 2018

Uma viagem à Lua em 1902


A Viagem à Lua, filme mudo realizado em 1902 por Georges Méliès (1861–1938)

A Viagem à Lua é um filme mudo realizado em 1902 pelo cineasta francês Georges Méliès. Este filme, que é o primeiro filme de ficção científica da história do cinema, é também o primeiro filme a utilizar um conjunto de efeitos especiais que julgaríamos impossíveis de realizar naqueles tão recuados tempos. Não admira, porém, que tais efeitos tivessem podido ser levados a cabo. Além de cineasta, Méliès era um ilusionista, dos mais inspirados, inovadores e aplaudidos do seu tempo. A sua criatividade e imaginação fizeram deste filme um dos mais importantes filmes de sempre, que rasgou novos caminhos por onde muitos outros realizadores se aventuraram depois.

A história contada por este filme pode resumir-se da seguinte forma:

Num colóquio de astronomia, o professor Barbenfouillis surpreende o seu auditório quando lhe dá conta do seu projeto de uma viagem à Lua. De seguida, ele organiza uma visita às oficinas onde é construída uma cápsula espacial, que será disparada em direção à Lua por um canhão gigante de 300 metros de comprimento.

Feito o lançamento, seis astrónomos desembarcam na Lua e assistem a um erguer da Terra acima do horizonte lunar. Cansados da viagem, eles deitam-se no chão e adormecem. Aparecem sete estrelas, que representam a constelação da Ursa Maior, e a seguir dois astros: o planeta Saturno e o seu satélite Febo. Ocorre uma tempestade de neve provocada por Saturno e Febo, que os acorda. Refugiam-se numa abertura no solo, onde descobrem cogumelos gigantes, assim como selenitas, habitantes da Lua que os aprisionam e os levam à presença do seu rei. Um dos prisioneiros lança-se sobre o rei, atira-o por terra e conseguem todos escapar, perseguidos pelos selenitas. Um dos perseguidores agarra-se à fuselagem da cápsula que toma o caminho da Terra e cai no mar. Os sábios são recebidos como heróis e exibem triunfalmente o selenita como troféu. Uma estátua em homenagem a Barbenfouillis é erguida na praça principal da cidade, acompanhada da inscrição latina Labor omnia vincit (o trabalho tudo vence).

Este filme foi realizado, como não podia deixar de ser, numa película a preto e branco, pois a complexa fotografia a cores ainda não tinha sido inventada. No entanto, Georges Méliès fez colorir (o termo técnico é "colorizar") uma cópia deste filme. Esta "colorização" foi feita à mão, fotograma a fotograma, num total de 13 375 imagens. A cópia "colorizada" tinha sido dada como perdida, mas foi encontrada em Barcelona em 1993 e restaurada, num processo que custou, ao todo, cerca de 400 000 euros.

15 maio 2018

As Sonsas (conto popular português)


Lagoa das Sete Cidades, Ilha de São Miguel, Açores (Foto: Viagens Castor)

Havia um rei, e na sua corte andavam dois cavaleiros; um falava nas suas três filhas, que eram muito devotas e que não se importavam com as vaidades do mundo; o outro tinha uma filha só, que era muito alegre e divertida. Juntaram-se um dia muitas senhoras e falaram nas suas filhas, aonde estava também o príncipe, que, ouvindo as conversas, foi ter com a rainha e pediu-lhe as suas joias. Vestiu-se em adela e foi a casa do fidalgo que tinha as três filhas beatas. Bateu à porta; os criados foram chamar a dona da casa, mãe das meninas, e ela lhe disse:

— As minhas filhas não hão de querer agora joias, pois elas não fazem outra coisa senão rezar.

Mas a adela pediu que ao menos a recolhessem do ar da noite, e queria que a deixassem ficar no quarto das meninas, porque assim ficava mais segura com as joias que trazia, que eram de muito valor. A mãe falou nisto às filhas; e elas:

— Nós não queremos cá velhas; temos muito que rezar.

A mãe disse:

— Ela fica aí para um canto do quarto, porque não quero que em minha casa aconteça a desgraça de a roubarem.

A adela entrou para o quarto das meninas; deitou-se e fingiu que dormia. Lá por alta noite entraram três mancebos, que eram os namorados das três meninas, e cada um deixou uma coisa. A adela, assim que viu esses objetos, agarrou neles e abalou.

No dia seguinte, o príncipe que era a dita adela, esperou que anoitecesse, e foi a casa da filha do outro fidalgo, bateu à porta, veio a mãe da menina; disse que trazia ali umas joias, para ver se a menina quereria comprar.

Veio ela muito contente, esteve a ver as joias, e, como isto levou tempo, disse:

— Minha rica velhinha, eu não quero nada; mas como é tarde há de cá dormir, e fica no meu quarto.

Depois deram a ceia à velha, e ela foi deitar-se para o quarto da menina, que lhe deu também a sua cama. A velha fingia que dormia; a menina veio deitar-se. Penteou-se, rezou, despiu-se e deitou-se sem camisa na cama. A adela, assim que a apanhou dormindo, pegou na camisa e foi-se embora.

No fim de dias o príncipe mandou avisar, para todos os fidalgos irem ao palácio com as suas famílias; quando estavam presentes, chamou um cavaleiro e mostrou-lhe uma prenda e perguntou se a conhecia.

O cavaleiro disse que sim, e que a tinha deixado no quarto de uma menina. Fez mais perguntas iguais aos outros mancebos, e as três beatas estavam muito envergonhadas. Chegou por fim a vez da menina da camisa; chamou-a, e ela desatou a rir.

A mãe disse-lhe:

— Sustei-vos, filha, não vos rides.

— Ai, senhora! Agora é que eu vejo que o príncipe era a velha adela que me furtou a camisa.

O príncipe perguntou-lhe:

— Será esta a camisa?

— É, sim, senhor.

— Pois bem, aqui tem a sua camisa, e saiba que deste instante por diante fica minha verdadeira esposa, e a estas meninas dou-lhes a sentença que, como são muito beatas, se faça um convento para as meter para sempre.

Conto tradicional da Ilha de São Miguel, Açores, in Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843–1924)

11 maio 2018

Comerciantes do mato



[Depois de bem comidos,] Aristides, Armando e Sebastião passaram então à loja, que ocupava toda a parte direita da casa.

Sem horário de trabalho, era uma loja igual a tantas outras que comerciavam naquela época com os negros. Mais armazém do que estabelecimento de venda, guardava lá dentro uma profusão enorme de artigos, que pareciam não ter relação entre si. Havia de tudo: nas prateleiras corridas, peças de pintado, utensílios de mesa de esmalte e alumínio (canecas, pratos, travessas), miudezas de retrosaria (carros de linhas, agulhas, botões), pulseiras reluzentes de latão e colares coloridos de missangas; sobre o pavimento, espiras de tabaco escuro, fardos de pexelim e toqueia, sacos de fuba[g] e feijão; ao fundo, postos de pé e com as torneiras em baixo, dois barris de vinho.

Outros produtos deviam estar ali certamente, embora invisíveis: os cheiros que pairavam no ar não podiam provir só da mercadoria exposta, mas de alguma crueira, óleo de palma e petróleo guardados em qualquer sítio.

Por duas janelas estreitas que não abriam nunca, o sol entrava como que a medo, iluminando mal o ambiente. Quem se encontrasse aí pela primeira vez, ficaria surpreendido; admirado com o que via, teria nesse momento a impressão de que estava num sítio estranho, tão sombrio e misterioso como a caverna de Aladino.

Tolhido pela surpresa, Armando não disse nada; mas minutos depois, desabafava consigo próprio que era num lugar insólito como aquele, perdido no fim de mundo, que teria de lutar pelo futuro.

Mas como? Alguém poria as finanças em ordem vendendo a retalho tantas bugigangas? Ganharia sequer o suficiente para pagar aos fornecedores?

Parecendo vaidoso do seu estabelecimento, Aristides observou:

— Como estão a ver, não é com artigos valiosos que ganho e amealho uns cobres. Coitados dos biés!: eles jamais poderiam pagar coisas caras.

Formulou então a regra essencial que qualquer comerciante digno do nome devia cumprir para ter sucesso:

— Olhinhos!, olhinhos! O que há a fazer é comprar bem e vender melhor!

Duas ou três horas mais tarde, Armando compreenderia o significado de tal asserção.

De quindas na cabeça com os produtos colhidos das lavras, as mulheres vinham da mata, atravessavam em fila ruidosa o terreiro e entravam na loja; com um esforço que parecia desmesurado para os seus braços frágeis, alijavam a carga na balança.

Aristides pegava nos pesos, dava uma volta ao balcão, tapava com o corpo a luz esmaecida que passava pelas janelas. Desde que iniciava essa espécie de ritual, não se calava: em voz alta, meio em umbundo, meio em português, fazia as perguntas e dava as respostas.

No momento adequado, fingia fazer contas de cabeça, para concluir:

— Ora bem, vejamos, tantos quilos a tantos angolares dá tanto…

É claro que aqueles «tantos» todos ficavam sempre aquém, quer dos quilos indicados pela balança, quer dos angolares que deviam resultar da conta.

As mulheres coçavam a carapinha e franziam a testa. Com a ponta acesa do cigarro metida dentro da boca, não protestavam, pelo menos explicitamente. Quando recebiam a quantia anunciada, permaneciam de mão estendida, mostrando assim que aquele lombongo era pouco. Tão pouco que não chegava quase para pagar a fuba, o peixe seco e os condutos que compravam de seguida.

Aristides observava a propósito que o dinheiro era um maganão, ladino que nem um azougue: tão depressa lhe saía da gaveta quanto lhe entrava no bolso.

Quem não tivesse jeito para o ofício, que fosse cavar batatas e mudasse de ramo…

Excerto do romance Na Babugem do Êxodo, de Inácio Rebelo de Andrade (1935–2017). Texto reproduzido de Cultura — Jornal Angolano de Artes e Letras


GLOSSÁRIO

Pintado - Tecido estampado

Pexelim - Peixe seco miúdo do mar, o mesmo que peixelim

Toqueia - Peixe seco de rio, capturado nas anharas ou chanas (savanas alagadiças) do Leste de Angola

Fuba - Farinha de mandioca, de milho ou outros cereais

Crueira - Restos de mandioca ralada, que sobram depois de a respetiva farinha ter sido peneirada

Biés - Pessoas pertencentes a uma etnia de língua umbundo que deu o nome à província do Bié, no centro de Angola

Quinda - Cesta; balaio

Lavra - Campo de cultivo

Umbundo - Língua bantu falada nas províncias de Benguela, Huambo e Bié, assim como em regiões vizinhas das províncias do Cuanza Sul, Malanje, Huíla e Namibe. É a segunda língua mais falada em Angola, a seguir ao português

Angolar - Unidade monetária antiga de Angola

Lombongo - Dinheiro


07 maio 2018

Música negra das prisões do Texas



Negro Folklore from Texas State Prisons foi um disco de vinil, em formato LP, publicado em 1965 por Bruce Jackson, um etnomusicólogo, escritor, realizador de documentários, fotógrafo e professor da Universidade de Buffalo, no Estado de Nova Iorque, Estados Unidos da América. Bruce Jackson é um homem particularmente interessado no sistema prisional norte-americano e na música afro-americana. Movido por estes seus dois interesses, ele visitou, a partir de julho de 1964, diversas colónias penais agrícolas no estado do Texas destinadas só a negros, onde gravou um conjunto de canções de trabalho, blues, espirituais negros, pregações, narrativas improvisadas e ritmadas, etc. Do acervo reunido, Bruce Jackson selecionou algumas das gravações efetuadas e publicou-as no disco referido. O valor deste disco é enorme, porque documenta uma tradição que deixou de existir. As prisões do Texas deixaram de ser segregadas e a brutalidade que nelas era aplicada deixou de existir.

O que aqui se ouve não é "bonito"; é autêntico. Nada aqui foi "embelezado". À semelhança do que fizeram em Portugal Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, José Alberto Sardinha e outros, Bruce Jackson gravou estas canções tal e qual como elas foram interpretadas, neste caso por autênticos presidiários negros do Texas.

Os títulos das faixas deste disco e os nomes dos seus intérpretes, assim como um texto explicativo em inglês, escrito pelo próprio Bruce Jackson, estão impressos na contracapa do disco, que é mostrada na imagem seguinte. Queira clicar na imagem para ampliá-la e ler o seu conteúdo.


01 maio 2018

Calçada de Carriche

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe
sobe a calçada.

Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu da sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa.
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil,
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá-lhe a mamada;
veste-se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina,
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueja
pela calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
António Gedeão (1906–1997)


(Foto: CGTP-IN)