Nesta fotografia, feita na noite de Natal de 1973 em Banza Sosso, Maquela do Zombo, Angola, o Afonso parece mais crescido do que era na realidade
No posto fronteiriço do Banza Sosso só havia polícias e agentes da PIDE/DGS, além dos militares. Não admira, portanto, que a população civil evitasse o Banza Sosso como se tivesse peste. Com toda a razão. O Banza Sosso era um lugar muito mal frequentado. Por isso, foi com grande espanto meu que, poucos dias antes do Natal de 1973, apareceu no destacamento militar do Banza Sosso um rapaz chamado Afonso, acompanhado de um irmão mais novo. Vieram ter comigo e pediram-me alojamento no quartel, até que conseguissem uma boleia para Kinshasa.
Todos os dias passava pelo Banza Sosso um camião carregado de peixe a caminho de Kinshasa, pelo menos, e o Afonso esperava convencer algum camionista a dar‑lhes boleia.
— O que é que vocês vão fazer a Kinshasa? — perguntei.
O Afonso respondeu-me de lágrimas nos olhos que a mãe deles vivia em Kinshasa, sentiam imensas saudades dela e queriam passar o Natal com ela.
— E ides assim sozinhos? Quem vos deu autorização? O vosso tio sabe? — perguntei de novo.
— Sabe, sabe — respondeu o Afonso. — O nosso tio disse que podíamos ir, mas que tínhamos que estar de volta antes do fim das férias de Natal, para não faltarmos à escola. Disse que nos castiga se faltarmos a alguma aula.
Se isto se passasse na Europa, eu não teria a mínima dúvida em mandá-los de volta para casa a grande velocidade. Mas eu estava em África, onde os costumes eram diferentes, nomeadamente no que diz respeito à educação das crianças.
Numa sociedade bantu matrilinear como era a dos
bakongo, enquanto as meninas eram educadas pelas suas mães, os rapazes não eram educados pelos seus pais, mas sim por tios maternos. Ao contrário do que acontece na Europa, os pais não tinham qualquer autoridade sobre os seus filhos. Os tios é que tinham. «Então os pais não contavam para nada?», perguntar-se-á. Os pais contavam, e muito, mas não mandavam nos filhos. Estranho, não é?
O pai interessava-se pelos seus filhos, preocupava-se com o seu bem-estar, acarinhava-os e aconselhava-os, como se fosse um seu irmão mais velho, mais sábio e mais sensato. O pai sentia um verdadeiro amor pelos seus filhos e os filhos sentiam um verdadeiro amor pelo seu pai. Era um sentimento fortíssimo, este, mas era ao tio que competia dar a educação aos rapazes. O pai dava-lhes apenas amor. E era correspondido com amor.
Por outro lado, assim que abandonavam a cubata da mãe, o que acontecia por volta dos oito ou nove anos de idade, os rapazes iam viver para uma outra cubata, partilhada com outros rapazes da mesma idade, e passavam a gozar de uma grande liberdade de movimentos, ainda que sempre sob a vigilância dos seus tios. Digamos que esta era uma primeira fase na sua preparação para uma futura vida adulta, na qual só entrariam mais tarde, depois de terem passado pelos rituais da puberdade, incluindo uma circuncisão. Ora o Afonso, pela idade que aparentava ter, não era ainda um adulto, por não ter passado ainda pelos rituais referidos, mas já gozava de uma grande autonomia. E já podia tomar conta do irmão. Já era um homenzinho. A história que ele me contou tinha toda a aparência de ser verdadeira.
Dei alojamento a ambos, num quarto vago que por acaso havia no quartel, mas eles não puderam ir a Kinshasa passar o Natal com a mãe. O ditador Mobutu fechou as fronteiras do Zaire e nenhum camião passou pelo Banza Sosso. O Afonso e o irmão acabaram por passar o Natal connosco. Como, depois disso, a fronteira permanecia fechada e o Natal já tinha passado, mandei que eles fossem levados de regresso para a sua sanzala. Na volta, recebi um recado do tio deles, agradecendo a hospitalidade que dei aos seus educandos e acrescentando que, se eu precisasse de alguma coisa, era só dizer.