29 novembro 2017

Garças

Zhuravlí (Garças), uma canção sobre a 2.ª Guerra Mundial, pelo grande barítono russo Dimtri Hvorotovsky (1962–2017), que faleceu há uma semana vitimado por um tumor no cérebro. Está disponível no vídeo uma tradução em português da letra desta canção, que pode ser selecionada nas definições (representadas pela roda dentada) do vídeo

27 novembro 2017

Mundo pequeno

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzama
e de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruas
de Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são mais
bonitas.

Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece. Caminha sobre estratos
de um mar extinto. Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra. Certa vez encontrou uma
voz sem boca. Era uma voz pequena e azul. Não
tinha boca mesmo. “Sonora voz de uma concha”,
ele disse. Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas. E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
decomposição lírica: “Aromas de tomilhos dementam
cigarras.” Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Iíngua-pássaro: “Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer”.
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
“Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos.” Foi sempre um ente abençoado a
garças. Nascera engrandecido de nadezas.

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

Manoel de Barros (1916–2014), poeta brasileiro



25 novembro 2017

O megaprocessador


Smartphones

Estamos numa época em que qualquer adolescente traz nas suas mãos um computador que é muitíssimo mais poderoso do que os computadores que nos anos 60 permitiram a ida do homem à Lua e que ocupavam salas e salas cheias de equipamento eletrónico até ao teto: é o telemóvel "inteligente" ou smartphone.

Um dos microprocessadores mais recentes que equipam smartphones, tablets, smartwatches e outros gadgets, o Snapdragon 835 da Qualcomm, por exemplo, tem três mil milhões de transistores lá dentro!!! Custa a acreditar, mas é verdade: o "cérebro" de um vulgar smartphone tem esses transistores todos lá dentro e cabem todos! A que ponto chegou a miniaturização na Eletrónica!


O processador Core i7-8700K, da Intel, por fora

O processador Core i7-8700K, da Intel, por dentro, com seis núcleos e um número de transistores ainda não revelado pelo fabricante

Os computadores portáteis e de secretária, por seu lado, têm processadores ainda mais poderosos, que têm várias vezes essa quantidade de transistores. As unidades de processamento gráfico (GPU), que nenhum computador minimamente digno desse nome nem nenhuma consola de jogos dispensa, têm um número idêntico de transistores ou ainda mais. E há um FPGA (field programmable gate array), da Xilinx, que contém mais de vinte mil milhões de transistores, dispostos em células lógicas programáveis!!!

A evolução da miniaturização ainda não acabou, longe disso, mas entretanto têm vindo a surgir novas arquiteturas e novas tecnologias, em que a velocidade de execução e o número de transistores deixam de ser tão importantes como são agora ou deixam mesmo de fazer qualquer sentido. É o caso das redes neuronais, dos computadores quânticos ou dos computadores baseados na manipulação de moléculas de ADN, por exemplo. Há muita investigação em curso nestes e noutros domínios e não se sabe aonde é que tudo isto vai parar, o que é muito promissor, mas também é muito assustador.

Estando as coisas neste pé, o que pensar, então, do trabalho e das despesas a que se entregou o engenheiro inglês James Newman, de Cambridge, ao construir um processador com transistores individuais, como se estivéssemos ainda nos anos 60 do século passado?


Alguns transistores individuais

Independentemente da evolução que a computação possa sofrer no futuro, a verdade é que, no presente, são idênticos na sua arquitetura fundamental quase todos os processadores de aplicação genérica usados em computadores, smartphones, tablets, etc. Estes processadores são uns chips genericamente chamados CPU (Central Processing Unit) que, juntamente com chips de memória, fazem parte de uma arquitetura programável proposta em 1946 pelo matemático John von Neumann. Quase todos os processadores genéricos atuais, portanto, baseiam-se na chamada "arquitetura de von Neumann", desde os mais simples microcontroladores PIC de 8 bits (não sei se há algum de 4 bits, mas talvez haja), até aos mais complexos microprocessadores multinúcleo de 64, 128 ou 256 bits da Intel, AMD, Apple, Qualcomm ou outro fabricante qualquer. Aqui reside o interesse do árduo trabalho desenvolvido pelo inglês James Newman: o seu processador de transistores individuais tem uma grande importância didática, porque permite ver como é constituído um processador, de um modo geral, e como é que ele funciona.

James Newman construiu na sua habitação aquilo a que chamou um "megaprocessador", por causa do seu tamanho. O megaprocessador de James Newman é uma "besta" constituída por sete painéis de 2 metros de altura e 10 metros de comprimento total, que contêm uma CPU completamente funcional, 256 bytes de memória RAM (Random Access Memory), interface I/O (entradas/saídas para comunicação com o exterior) e muitas luzinhas LED a acenderem e a apagarem. O homem demorou 4 anos a construir a sua máquina, que contém "apenas" 42 300 transistores individuais, todos soldados à mão!

O megaprocessador é um processador de 16 bits (exceto no caso das instruções de execução de programas, que são de 8 bits), tem uma Unidade Aritmética e Lógica (ALU), que além de somar e subtrair consegue executar algumas operações muito mais complexas, como multiplicação, divisão e cálculo de raiz quadrada(!), quatro registos de uso genérico (posições de memória que contêm os dados a serem trabalhados no imediato pela ALU, assim como resultados intermédios das operações efetuadas pela mesma), apontador de instruções de programas (program counter), apontador de pilha (stack pointer) e registo de estados (status register) com as respetivas flags (bits que indicam se uma determinada operação foi completada ou não, por exemplo, ou que dão outras indicações importantes para a correta execução dos programas). A nível de software, por outro lado, o nosso homem desenvolveu uma linguagem de baixo nível do tipo Assembler, com 256 instruções. Enfim, o megaprocessador de James Newman é bastante mais do que apenas uma cópia "king size" de um microprocessador Z80 ou equivalente, dos que eram usados nos princípio dos anos 80. E é muito útil para o ensino, tendo já sido encomendado por algumas universidades.


O megaprocessador em toda a sua glória (Foto: James Newman)

17 novembro 2017

Alfredo Keil


Leitura de uma Carta, 1874, óleo sobre tela de Alfredo Keil, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal


Alfredo Keil (1850–1907) é conhecido, sobretudo, como tendo sido o autor da música do Hino Nacional de Portugal, "A Portuguesa". O autor da letra foi Henrique Lopes de Mendonça.

Nascido em Lisboa e de ascendência alemã, tanto por parte do pai como da mãe, o português Alfredo Keil foi um compositor de grande mérito, tendo escrito diversas obras musicais, de entre as quais se destacam "A Portuguesa" e a ópera "Serrana", que é a ópera portuguesa mais levada à cena.

Além de compositor, Alfredo Keil foi poeta, arqueólogo, colecionador de arte e, sobretudo, pintor. Nesta última qualidade, Alfredo Keil pintou centenas de quadros, os quais se inserem na corrente do Romantismo. Pintou sobretudo paisagens melancólicas e interiores requintados.


O Aterro em 1881; No Cais do Tejo, 1881, óleo sobre madeira de Alfredo Keil, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal. Em Lisboa, o Aterro é a zona das docas compreendida entre o Cais do Sodré e o Cais de Alcântara, incluindo a Avenida 24 de Julho


Um Rebanho em Sintra, 1898, óleo sobre tela de Alfredo Keil, Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa, Portugal

13 novembro 2017

A viola campaniça




A Viola Campaniça e o despique no Baixo Alentejo, um programa de Michel Giacometti (com a ampla calvície que o caracterizava), incluído na sua série de programas "Povo que Canta", que foi transmitido pela RTP em 1971


A viola campaniça é um instrumento tradicional de uma região do Alentejo que abrange os concelhos de Aljustrel, Ourique, Castro Verde, Almodôvar e parte do concelho de Odemira. Há ainda referências à existência deste cordofone, em tempos passados, em Beja, Serpa, etc.

A viola campaniça pertence ao conjunto de cordofones genericamente chamados violas de arame, conjunto este que inclui as violas braguesa (originária de Braga), ramaldeira (de Ramalde, Porto), amarantina (de Amarante), da terra (das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), etc. A viola campaniça é a maior delas todas, com cerca de 95 cm de comprimento, apresenta uma "cintura" muito apertada e tem tradicionalmente dez cordas, ou melhor, cinco ordens de cordas duplas.

Quando, no princípio da década de 70 do século passado, o grande etnomusicólogo Michel Giacometti filmou para a RTP o seu programa sobre a viola campaniça, para a série "Povo que Canta", esta viola estava em franco declínio. Adivinhava-se já a sua completa extinção a breve prazo.

Nos anos 80, a viola campaniça já se encontrava quase extinta. Foi então que José Alberto Sardinha, que é um advogado apaixonado pela música tradicional portuguesa, a ponto de se tornar um respeitadíssimo etnomusicólogo, se interessou por ela e editou, em 1986, um disco em vinil intitulado “Viola Campaniça, o Outro Alentejo”, com gravações dos dois únicos tocadores desta viola que ainda estavam vivos: Manuel Bento e o seu tio Francisco António, naturais da Aldeia Nova (Ourique).

O trabalho de José Alberto Sardinha frutificou e despertou o interesse de outras pessoas, que deram continuidade à reabilitação e recuperação deste instrumento de som tão rústico e tão belo. Foi o caso dos produtores de rádio Rafael Correia, através do seu programa "Lugar ao Sul", transmitido para todo o país pela Antena 1, e José Francisco Colaço Guerreiro, através do seu programa "Património", transmitido pela Rádio Castrense, de Castro Verde.

Presentemente, a viola campaniça está viva e bem viva, graças, nomeadamente, à sua divulgação junto das escolas da região, e é completamente impossível falar-se dela sem fazer referência ao nome de Pedro Mestre, grande cultor e divulgador deste intrumento tradicional do Alentejo.



Viola Campaniça e Pedro Mestre, programa da série "O Povo Que Ainda Canta", realizada para a RTP por Tiago Pereira, mentor do projeto "A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria"

11 novembro 2017

O caminho das estrelas

Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade

Simples nota musical
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano

preciso e inevitável
como o inevitável passado escravo
através das consciências
como o presente

Não abstrato
incolor entre ideais sem cor
sem ritmo entre as arritmias do irreal
inodoro
entre as selvas desaromatizadas
dos troncos sem raiz



Mas concreto
vestido do verde
do cheiro das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovão
as mãos amparando a germinação do riso
sobre os campos da esperança

A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas luz
vermelha das fogueiras infinitas nos capinzais violentados
harmonias spiritual de vozes tamtam
num ritmo claro de África

Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.

Agostinho Neto (1922–1979)


08 novembro 2017

The Negro Speaks of Rivers

I've known rivers:
I've known rivers ancient as the world and older than the
flow of human blood in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln
went down to New Orleans, and I've seen its muddy
bosom turn all golden in the sunset.

I've known rivers:
Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.

Langston Hughes (1902–1967), poeta norte-americano


05 novembro 2017

As Índias Galantes


Rondeau "Forêts Paisibles", da ópera-ballet Les Indes Galantes, do compositor francês Jean-Philippe Rameau (1683–1764), por Patricia Petibon, no papel de Zima, Nicolas Rivenq, no papel de Adario, orquestra Les Arts Florissants, dirigida por William Christie, coro da Ópera de Paris e um corpo de bailarinos executando uma coreografia de Blanca Li

02 novembro 2017

Uma escultura helenística


Alto-relevo em calcáreo, datado de ca. 325–300 A.C., provavelmente oriundo da cidade de Tarento, no sueste de Itália, que foi uma rica colónia grega. Esta escultura representa uma mulher e um guerreiro diante de um altar (parcialmente visível à esquerda), por certo chorando um outro guerreiro morto. Entre eles encontra-se um vaso para libações, no chão, e objetos pertencentes ao guerreiro falecido dependurados na parede do fundo: um elmo, uma couraça e uma espada. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque, Estados Unidos da América