28 janeiro 2011

Uma viola artesanal


Na região dos Dembos, no norte de Angola, vi e ouvi várias violas em tudo idênticas à que aqui se vê e ouve, menos num ponto: tinham dimensões um pouco mais reduzidas. A sua sonoridade, porém, era muito parecida com a desta.

Se esta viola fosse um bocadinho mais pequena e o seu executante cantasse em quimbundo, eu seria capaz de jurar que ele era um angolano dos Dembos. Mas não é. É um cidadão da República Centro-Africana e chama-se Pierre Gwa.




Um dos angolanos dos Dembos, que tinham uma viola artesanal semelhante a esta, era um homem chamado Gabriel António, que vivia em Zemba, no município de Nambuangongo. Não possuo nenhuma gravação em que se ouça a viola artesanal de Gabriel António. Possuo, isso sim, uma gravação em que se ouve Gabriel António cantar, enquanto se acompanha com uma viola de fabrico profissional. Ele estava tão contente por ter uma viola "a sério" nas suas mãos, que eu não tive coragem para lhe pedir para tocar a sua própria viola, em vez dessa.

Em 2006 eu já tinha publicado neste blogue um artigo com esta gravação. Peço licença para agora trazer a gravação para aqui, pedindo desculpa pela sua má qualidade técnica. Acho que ela é digna de ser ouvida, apesar de tudo.




Uma canção interpretada em quimbundo dos Dembos por Gabriel António, habitante de Zemba, Nambuangongo, Angola

23 janeiro 2011

Viena 1900

A Secession, de Joseph Maria Olbrich, que foi feita para que nela se realizassem exposições de arte, é talvez o edifício mais emblemático da "Arte Nova" vienense (Foto: Gryffindor)


Pormenor de um edifício de Otto Wagner, não muito afastado do centro da cidade (Foto: Sven Olaf Oehlsen)


Fachada de azulejos de um edifício contíguo ao anterior e que também se deve a Otto Wagner. Mais ou menos em frente a estes edifícios realiza-se o Flohmarkt, a interessantíssima "feira da ladra" de Viena (Foto: k.u.k. Stadtführungen Wien)


A estação do metro de Karlsplatz, uma praça onde há muito para ver. Este pavilhão também é de Otto Wagner


A estação do metro de Schönbrunn, que serve o antigo palácio imperial de verão e foi construída propositadamente para ser usada pelo imperador Francisco José (Foto: Debra)


Anjos de Othmar Schimkowitz, na fachada da Igreja de S. Leopoldo am Steinhof, do Hospital Psiquiátrico de Viena (Foto: Karina)


Fachada de uma farmácia, da autoria de Oskar Laske (Foto: Sven Olaf Oehlsen)


O Relógio da Âncora (Ankeruhr), que pode ser visto numa praça do centro histórico


Pormenor da fachada de uma casa no centro histórico (Foto: Monika)


O edifício chamado Looshaus, da autoria de Alfred Loos, no centro histórico, em frente ao Hofburg, o antigo palácio imperial (Foto: Gryffindor)


Uma moradia chamada Villa Wagner, por ser de Otto Wagner, que fica na 14ª Circunscrição (Bezirk), muito afastada do centro da cidade. Uma curiosidade fútil: o clube de futebol desta circunscrição é o conhecido Rapid. (Foto: Gerhard Stappen)

18 janeiro 2011

João Paulo Seara Cardoso


Fantoches, robertos, marionetas, bonifrates, títeres, etc. Enfim, bonecos com vida. Era este o mundo que apaixonava João Paulo Seara Cardoso e sobre o qual ele derramou a sua imensa criatividade artística. Infelizmente, um traiçoeiro cancro pôs fim a tanto talento, no dia 29 de outubro de 2010.

Não conheci pessoalmente João Paulo Seara Cardoso, mas conheci alguns frutos da sua prodigiosa arte. O seu desaparecimento do mundo dos vivos foi uma verdadeira perda para a cultura portuguesa. Isto dito assim pode parecer um lugar-comum, mas não é neste caso. Ele deixou mesmo um vazio difícil de preencher.

Ator, encenador, bonecreiro e outras coisas mais, João Paulo Seara Cardoso foi, nomeadamente, o fundador do Teatro de Marionetas do Porto. João Paulo Seara Cardoso morreu, mas deseja-se que a companhia do Teatro de Marionetas do Porto continue a sua extraordinária obra, apoiada no legado por si deixado.

A melhor forma de homenagearmos João Paulo Seara Cardoso será assistirmos ao seu último trabalho como encenador, trabalho este que a morte interrompeu, mas que o Teatro de Marionetas do Porto acabou por levar até ao fim: a peça Frágil, que estará em cena até ao próximo dia 6 de fevereiro no Balleteatro, que fica na Praça 9 de Abril, vulgo Jardim da Arca de Água, aqui no Porto. Depois disso, a companhia irá levar esta peça a outros pontos do país. Não falte. A arte de João Paulo Seara Cardoso merece ser aplaudida.



Cenas da peça Macbeth, de William Shakespeare, pelo Teatro de Marionetas do Porto


1ª parte do episódio "Voar!", da série televisiva A Árvore dos Patafúrdios, de João Paulo Seara Cardoso


2ª parte do episódio "Voar!", da série televisiva A Árvore dos Patafúrdios, de João Paulo Seara Cardoso

16 janeiro 2011

Como sofrem algumas crianças

Crianças numa escola em Angola (Foto: Marília Dourado)

Antes da independência de Angola, centenas de milhares de angolanos viviam refugiados na República do Zaire (atualmente chamada República Democrática do Congo), em consequência dos terríveis morticínios que ocorreram sobretudo durante os primeiros anos da guerra colonial, iniciada em 1961. Enquanto muitos destes refugiados acabaram por se fixar em cidades zairenses, como Matadi, Mbanza Ngungu ou Kinshasa, outros preferiram ficar tão perto de Angola quanto possível. Quem se abeirasse da fronteira que separava o norte de Angola da República do Zaire notaria, de imediato, uma gritante diferença na densidade populacional entre ambos os lados da linha divisória. Enquanto do lado de Angola a população estava muito rarefeita, do lado do Zaire um só relance do olhar permitia avistar cinco, seis ou mais sanzalas (aldeias), todas num raio de menos de uma dúzia de quilómetros!

Nos troços de fronteira entre Angola e o Zaire em que não houvesse obstáculos naturais, não existia qualquer vedação ou outra barreira que impedisse a comunicação entre ambos os lados. A fronteira estava apenas assinalada por marcos de pedra em forma de grossos obeliscos, com 2 metros de altura ou pouco mais, que mostravam o escudo da monarquia portuguesa, esculpido em baixo relevo, no lado virado para Angola, o da monarquia belga no lado virado para o Zaire e o ano de 1895 gravado por cima de cada um dos escudos. Os marcos fronteiriços estavam colocados a uma distância de cerca de 40 quilómetros uns dos outros, talvez, e estavam milimetricamente alinhados uns pelos outros, numa linha reta espantosamente rigorosa.

Como, nos troços onde não havia obstáculos naturais, a fronteira estava desimpedida, ela era atravessada por caminhos de pé posto, que todos os dias eram percorridos por pessoas que passavam "a salto" de Angola para o Zaire e vice-versa. O movimento de pessoas ao longo destes carreiros era bastante intenso. Angolanos (refugiados ou não) e zairenses circulavam de um lado para o outro ao longo do dia, em função, sobretudo, das feiras mensais e mercados rurais que de ambos os lados se iam realizando. Levavam os produtos das suas lavras (campos), a fim de os vender onde fossem mais caros, e traziam as mercadorias de que necessitavam, compradas onde elas fossem mais baratas. É evidente que os contrabandistas (havia bastantes) também faziam um uso intensivo destes caminhos transfronteiriços.

Assim que o sol nascia, nas zonas onde houvesse uma sanzala do lado de Angola que ficasse próxima da fronteira e estivesse dotada de uma escola, os caminhos referidos eram percorridos por crianças, vindas do Zaire para Angola, que vinham frequentar as aulas. Estas crianças percorriam a pé vários quilómetros a caminho da escola e eram as primeiras pessoas que atravessavam a fronteira logo pela manhãzinha.

Estas crianças eram filhas de angolanos refugiados no Zaire. Os seus encarregados de educação faziam questão em que elas frequentassem uma escola angolana, porque queriam que elas não se esquecessem das suas raízes (apesar de já terem nascido no exílio), se sentissem orgulhosas de Angola e soubessem falar, ler e escrever em português. Por esta razão, estas crianças saíam de casa todos os dias antes do nascer do sol e caminhavam vários quilómetros, como já disse, todas muito lavadinhas e cheias de sono, imprimindo na poeira do caminho as marcas dos seus pequenos pés descalços e carregando às costas o peso de livros e cadernos. À tarde elas faziam o trajeto inverso, visivelmente cansadas.

Se alguém perguntasse a um adulto angolano refugiado se não teria considerado a possibilidade de voltar para Angola, poupando assim às crianças este enorme sacrifício, ele responderia categoricamente: «Só volto quando Angola for independente». Ele justificaria esta sua inabalável determinação com a extrema violência ocorrida no início da guerra, que o forçara a deixar tudo para trás (incluindo muitos familiares mortos) e a procurar refúgio no país vizinho. Acrescentaria que tinha muito medo de que tamanha violência pudesse voltar a repetir-se, porque não tinha qualquer confiança na tropa portuguesa e por isso não regressaria enquanto houvesse algum militar português em solo angolano.

Era esta a razão por que estas crianças angolanas continuavam refugiadas na República do Zaire e se viam obrigadas pelas circunstâncias a percorrer todos os dias um longo trajeto a caminho da escola, com os seus livros e cadernos às costas, amarrados apenas por uma correia. Uma das pontas da correia era propositadamente deixada comprida, de modo a que elas a segurassem com uma das mãos. A correia passava-lhes por cima de um ombro e, na outra ponta, os livros e cadernos estavam suspensos atrás das costas. Era um pouco como se transportassem um saco às costas.

Com toda a certeza que, de entre os livros escolares que traziam, constava um livro de leitura. A título de curiosidade, reproduzo a seguir dois textos que faziam parte de um livro de leitura da 2ª classe que foi usado nas escolas rurais de Angola, chamado Já Sei Ler e editado pela Lello em 1968. É muito provável que estas crianças refugiadas estudassem por este livro ou por outro muito semelhante.


Um bom conselho

O Tiago e o Serafim encontraram-se à saída da missa, no domingo.

Começaram a conversar sobre a sua vida. O Serafim contou que ele e o pai fizeram uma horta junto da casa e que semearam milho em toda a volta.

-- Vocês fizeram mal -- disse o Tiago -- pois o milho deve semear-se um pouco afastado de casa, por causa dos mosquitos. Mais perto de casa podemos cultivar couves, feijão, tomateiros, soja, cebolas, cenouras e outros produtos da horta.

Serafim agradeceu o conselho e perguntou se ele todos os anos ocupava as terras com as mesmas culturas.

Não. Isso é um grande erro que muita gente comete. A minha horta está dividida em canteiros e talhões um pouco maiores. No mesmo canteiro, ou no mesmo talhão, nunca faço duas culturas iguais seguidas.

-- É, então, por isso que a tua horta é sempre a melhor de todas?

-- Sim, talvez seja por isso, e também porque todos os anos lhe ponho bastante estrume.


O jogo dos números

Tio Pedro esteve ontem em nossa casa. Ficámos muito contentes. Ele traz sempre alguma novidade.

Desta vez disse-me:

-- Tu sabes fazer contas fáceis?

-- Sei sim, senhor.

-- Então vou adivinhar o resultado de umas continhas que tu vais fazer. Presta atenção: pensa um número qualquer, mas não digas qual é.

-- Prontinho, já pensei.

-- Agora dobra esse número.

-- Pronto!

-- Soma com dez.

-- Está somado.

-- Divide por dois.

-- Já está.

-- Tira o número em que pensaste no princípio.

-- Já tirei.

E o tio Pedro respondeu, sem hesitar:

-- Dá cinco!

Era mesmo. Eu tinha pensado no número quatro; dobrei e deu oito; somei com 10 e deu 18; dividi por dois, e deu 9; tirei 4, número em que pensei primeiro, e deu cinco.

Repetimos o jogo com outros números; deu sempre cinco.

Quem tiver gostado deste jogo que experimente.


O livro de leitura Já Sei Ler e vários outros livros escolares e de apoio pedagógico, usados nas antigas colónias portuguesas em África, estão disponíveis no sítio Memória de África.


Ilustração que acompanha o texto "O jogo dos números", do livro de leitura para a 2ª classe Já Sei Ler

09 janeiro 2011

Happy birthday, Joan Baez!


Completa hoje 70 anos de idade a cantora norte-americana Joan Baez. Desde que lançou o seu primeiro disco em 1960, Joan Baez fez até hoje uma carreira consistente e coerente na defesa dos fracos e dos oprimidos. Sobretudo ao longo da década de 60 do século passado, a cantora juntou a sua bela voz à de todos quantos lutavam pelos direitos cívicos, contra a guerra do Vietname e por uma maior justiça nos Estados Unidos e no mundo. Merece, por isso, o nosso respeito e a nossa admiração. Parabéns, Joan Baez!



Diamonds and Rust, por Joan Baez



Amazing Grace, por Joan Baez



We Shall Overcome, por Joan Baez

07 janeiro 2011

Malangatana

Desenho de Malangatana


Faleceu num hospital próximo daqui da minha residência o moçambicano Malangatana Valente Ngwenya, pintor, escultor, desenhador, poeta, músico, etc. Enfim, um grande criador. A Cultura ficou de luto.


Cerâmicas de Malangatana

AMOR VERDE

Porque o amor não é sempre verde
que bom quando verde é
nem quero que mudes de cor
ó amor verde, verde, verde
ele é tão bom, bom, bom

Na cama quando passei a primeira noite
senti-me feliz quando corria dentro dela
a lágrima que nos fez amigos infinitos
porque dela veio quem nos chama: Papá e Mamã
o nosso primeiro filho, tão lindo, lindo.

Poema de Malangatana


Pintura de Malangatana

05 janeiro 2011

Requinte cingalês

Cofre do Sri Lanka (séc. XVI), pertencente ao tesouro da Residenz (o antigo palácio dos príncipes e reis da Baviera), em Munique, Alemanha. (Foto: Informationsdienst Wissenschaft)

«(...)na década de quarenta do século XVI, tomámos [os portugueses] declaradamente o (...) partido [de Bhuvanekabahu, o rei de Kotte] contra o irmão, Mayadunne, o rei de Sitawaka (1521-1581) [na ilha de Ceilão]. Bhuvanekabahu queria garantir a integridade do Reino, e colocar no trono o seu neto. Foi na sequência destas movimentações políticas entre Kotte, Goa e Lisboa, que o monarca enviou a Portugal o embaixador Sri Radaraksa Pandita, que esteve em Lisboa, em 1542 e 1543, e que numa aparatosa cerimónia fez coroar em figura o jovem neto e presuntivo herdeiro, Dharmapala (1551-1597), depois de baptizado com o nome de D. João.

(...) Os cronistas mais fiáveis, entre eles o padre Fernão de Queyroz, contam que a embaixada partiu de Goa na nau de Francisco de Sousa Tavares, da invocação de São Filipe, e arribou a Lisboa a 18 de Agosto de 1541. O rei de Kotte mandou inúmeros presentes, mas sobretudo uma imagem do próprio neto, que esta fonte diz ser de ouro e em tamanho natural, além de uma coroa feita na tradição cingalesa, para que D. João III simbolicamente a colocasse na sua cabeça.

Frei Paulo da Trindade diz que as esculturas enviadas de Kotte, as que representavam o monarca e o neto, eram de marfim, de bom tamanho e não estavam isoladas, antes o monarca levava pela mão o seu herdeiro. Quereria significar com esta iconografia que o entregava pessoalmente a D. João III, para que este, com a força das suas armas no Índico, garantisse os seus direitos. Não sabemos em que autor acreditar, quanto ao tipo de imagens e quanto ao material de que eram feitas.

Na verdade, este cofre é de pequenas dimensões: apenas com 18 cm de altura, 30 de largura, e 16 de fundo. É constituído por placas de marfim em baixo e médio-relevo, e a tampa tem uma parte horizontal e duas abas inclinadas. (...) As partes inclinadas possuem três placas por lado, com figuração de dançarinas e divindades. As faces verticais representam (...) a apresentação e coroação do príncipe pelo rei português D. João III. As ligações e o fecho são feitas com elementos de ouro cravejado de rubis e safiras. Na parte central pode admirar-se uma espantosa fechadura em ouro, com forma de brasão, constituído por rubis e safiras.

(...) na face principal temos à esquerda o rei Bhuvanekabahu, ou o embaixador Sri Radaraksa Pandita, embora nos inclinemos mais para que seja o primeiro, apresentando o príncipe a D. João III, num ambiente de luxo, estando duas outras personagens a assistir, uma portuguesa e outra cingalesa, em segundo plano, atrás dos respectivos monarcas. Na placa central há dois dignitários cingaleses, ambos com o leão sobre as cabeças, e tendo duas hamsas entre eles. (...) Na cena do lado direito do observador, o rei D. João III coloca a coroa do reino de Kotte sobre a cabeça da imagem do príncipe Dharmapala, que tem por trás, a assistir e a protegê-lo, o avô ou o embaixador. Ao lado do rei português está um dignitário, com a espada alçada. (...)»

Pedro Dias, in Arte de Portugal no Mundo, 12º volume (Ceilão), Público -- Comunicação Social, SA, janeiro de 2009

01 janeiro 2011

Aquela nuvem

Aquela nuvem
Parece um cavalo...

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
É uma barca à vela.

Não faz mal.
Queria embarcar nela.

Aquela?
Mas já não é um navio,
É uma torre amarela
A vogar no frio
Onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.
Quero ter asas
Para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar
Donde voam as nuvens
Para ir numa delas
Tomar mil formas
Com sabor a sal
- Labirinto de sombras e de cisnes
No céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal...

José Gomes Ferreira (1900-1985), in Poesia IV