Antes da independência de Angola, centenas de milhares de angolanos viviam refugiados na República do Zaire (atualmente chamada República Democrática do Congo), em consequência dos terríveis morticínios que ocorreram sobretudo durante os primeiros anos da guerra colonial, iniciada em 1961. Enquanto muitos destes refugiados acabaram por se fixar em cidades zairenses, como Matadi, Mbanza Ngungu ou Kinshasa, outros preferiram ficar tão perto de Angola quanto possível. Quem se abeirasse da fronteira que separava o norte de Angola da República do Zaire notaria, de imediato, uma gritante diferença na densidade populacional entre ambos os lados da linha divisória. Enquanto do lado de Angola a população estava muito rarefeita, do lado do Zaire um só relance do olhar permitia avistar cinco, seis ou mais sanzalas (aldeias), todas num raio de menos de uma dúzia de quilómetros!
Nos troços de fronteira entre Angola e o Zaire em que não houvesse obstáculos naturais, não existia qualquer vedação ou outra barreira que impedisse a comunicação entre ambos os lados. A fronteira estava apenas assinalada por marcos de pedra em forma de grossos obeliscos, com 2 metros de altura ou pouco mais, que mostravam o escudo da monarquia portuguesa, esculpido em baixo relevo, no lado virado para Angola, o da monarquia belga no lado virado para o Zaire e o ano de 1895 gravado por cima de cada um dos escudos. Os marcos fronteiriços estavam colocados a uma distância de cerca de 40 quilómetros uns dos outros, talvez, e estavam milimetricamente alinhados uns pelos outros, numa linha reta espantosamente rigorosa.
Como, nos troços onde não havia obstáculos naturais, a fronteira estava desimpedida, ela era atravessada por caminhos de pé posto, que todos os dias eram percorridos por pessoas que passavam "a salto" de Angola para o Zaire e vice-versa. O movimento de pessoas ao longo destes carreiros era bastante intenso. Angolanos (refugiados ou não) e zairenses circulavam de um lado para o outro ao longo do dia, em função, sobretudo, das feiras mensais e mercados rurais que de ambos os lados se iam realizando. Levavam os produtos das suas lavras (campos), a fim de os vender onde fossem mais caros, e traziam as mercadorias de que necessitavam, compradas onde elas fossem mais baratas. É evidente que os contrabandistas (havia bastantes) também faziam um uso intensivo destes caminhos transfronteiriços.
Assim que o sol nascia, nas zonas onde houvesse uma sanzala do lado de Angola que ficasse próxima da fronteira e estivesse dotada de uma escola, os caminhos referidos eram percorridos por crianças, vindas do Zaire para Angola, que vinham frequentar as aulas. Estas crianças percorriam a pé vários quilómetros a caminho da escola e eram as primeiras pessoas que atravessavam a fronteira logo pela manhãzinha.
Estas crianças eram filhas de angolanos refugiados no Zaire. Os seus encarregados de educação faziam questão em que elas frequentassem uma escola angolana, porque queriam que elas não se esquecessem das suas raízes (apesar de já terem nascido no exílio), se sentissem orgulhosas de Angola e soubessem falar, ler e escrever em português. Por esta razão, estas crianças saíam de casa todos os dias antes do nascer do sol e caminhavam vários quilómetros, como já disse, todas muito lavadinhas e cheias de sono, imprimindo na poeira do caminho as marcas dos seus pequenos pés descalços e carregando às costas o peso de livros e cadernos. À tarde elas faziam o trajeto inverso, visivelmente cansadas.
Se alguém perguntasse a um adulto angolano refugiado se não teria considerado a possibilidade de voltar para Angola, poupando assim às crianças este enorme sacrifício, ele responderia categoricamente: «Só volto quando Angola for independente». Ele justificaria esta sua inabalável determinação com a extrema violência ocorrida no início da guerra, que o forçara a deixar tudo para trás (incluindo muitos familiares mortos) e a procurar refúgio no país vizinho. Acrescentaria que tinha muito medo de que tamanha violência pudesse voltar a repetir-se, porque não tinha qualquer confiança na tropa portuguesa e por isso não regressaria enquanto houvesse algum militar português em solo angolano.
Era esta a razão por que estas crianças angolanas continuavam refugiadas na República do Zaire e se viam obrigadas pelas circunstâncias a percorrer todos os dias um longo trajeto a caminho da escola, com os seus livros e cadernos às costas, amarrados apenas por uma correia. Uma das pontas da correia era propositadamente deixada comprida, de modo a que elas a segurassem com uma das mãos. A correia passava-lhes por cima de um ombro e, na outra ponta, os livros e cadernos estavam suspensos atrás das costas. Era um pouco como se transportassem um saco às costas.
Com toda a certeza que, de entre os livros escolares que traziam, constava um livro de leitura. A título de curiosidade, reproduzo a seguir dois textos que faziam parte de um livro de leitura da 2ª classe que foi usado nas escolas rurais de Angola, chamado
Já Sei Ler e editado pela Lello em 1968. É muito provável que estas crianças refugiadas estudassem por este livro ou por outro muito semelhante.
Um bom conselho
O Tiago e o Serafim encontraram-se à saída da missa, no domingo.
Começaram a conversar sobre a sua vida. O Serafim contou que ele e o pai fizeram uma horta junto da casa e que semearam milho em toda a volta.
-- Vocês fizeram mal -- disse o Tiago -- pois o milho deve semear-se um pouco afastado de casa, por causa dos mosquitos. Mais perto de casa podemos cultivar couves, feijão, tomateiros, soja, cebolas, cenouras e outros produtos da horta.
Serafim agradeceu o conselho e perguntou se ele todos os anos ocupava as terras com as mesmas culturas.
Não. Isso é um grande erro que muita gente comete. A minha horta está dividida em canteiros e talhões um pouco maiores. No mesmo canteiro, ou no mesmo talhão, nunca faço duas culturas iguais seguidas.
-- É, então, por isso que a tua horta é sempre a melhor de todas?
-- Sim, talvez seja por isso, e também porque todos os anos lhe ponho bastante estrume.
O jogo dos números
Tio Pedro esteve ontem em nossa casa. Ficámos muito contentes. Ele traz sempre alguma novidade.
Desta vez disse-me:
-- Tu sabes fazer contas fáceis?
-- Sei sim, senhor.
-- Então vou adivinhar o resultado de umas continhas que tu vais fazer. Presta atenção: pensa um número qualquer, mas não digas qual é.
-- Prontinho, já pensei.
-- Agora dobra esse número.
-- Pronto!
-- Soma com dez.
-- Está somado.
-- Divide por dois.
-- Já está.
-- Tira o número em que pensaste no princípio.
-- Já tirei.
E o tio Pedro respondeu, sem hesitar:
-- Dá cinco!
Era mesmo. Eu tinha pensado no número quatro; dobrei e deu oito; somei com 10 e deu 18; dividi por dois, e deu 9; tirei 4, número em que pensei primeiro, e deu cinco.
Repetimos o jogo com outros números; deu sempre cinco.
Quem tiver gostado deste jogo que experimente.
O livro de leitura
Já Sei Ler e vários outros livros escolares e de apoio pedagógico, usados nas antigas colónias portuguesas em África, estão disponíveis no sítio
Memória de África.
Ilustração que acompanha o texto "O jogo dos números", do livro de leitura para a 2ª classe Já Sei Ler