30 março 2018
28 março 2018
Rostos na floresta
Philippe Echaroux é um artista francês nascido em 1983, que tem fotografado muitas celebridades, sobretudo do mundo do desporto, além de produzir arte urbana através de projeções de luz.
No âmbito desta sua última função, Philippe Echaroux realizou um trabalho com um povo indígena do Brasil: os índios Suruí, que a si próprios se chamam Paiter, os quais foram contactados pela primeira vez em 1969 e vivem nos estados de Rondônia e Mato Grosso. Os Suruí têm tido graves problemas resultantes da invasão e devastação das suas terras por parte de madeireiros, garimpeiros e outros invasores.
Com a finalidade de promover a defesa da floresta amazónica, Philippe Echaroux realizou uma sessão de projeção de rostos de índios Suruí nas árvores da floresta. O resultado pode ser observado no vídeo acima.
27 março 2018
Mocímboa do Rovuma
(11.Janeiro.1971)
O capim está prestes a estalar
O suor ácido a nublar-nos o olhar
O medo a fermentar
No silêncio fúnebre que paira no ar
O olhar cansado de estar atento
Um tique doloroso em cada movimento
Um gole de água a matar a sede
Por um breve momento
E nem uma pontinha de vento
Para nosso desalento
Um alto para comer o que sobra da ração
Para enganar a fome na última migalha de pão
Num descanso no regaço da inquietação
E num segundo
Como se fosse o fim do mundo
Uma terrível explosão
Pedaços de um corpo espalhados na picada
Um fumo negro e espesso
A esconder ferros torcidos
Um castigo que não mereço
Gritos a abafar o ruído da metralha
Vindo da emboscada
Um morto e tantos feridos
O preço desta guerra canalha
E chorei desalentado
Como se fosse eu o culpado
Daquele corpo mutilado
Lamentei não ter desertado
E até perdi a fé
Por Deus não estar do nosso lado.
16. Maio.2004
Carlos Luzio (1947–2004), ex-alferes miliciano em Moçambique, in Pescador de Sonhos (Poemas de Guerra), edição póstuma, 2005. Poema transcrito do blog Notícias de Bustos
Cena da Guerra Colonial (1961–1974). Consequências do acionamento de uma mina terrestre por uma viatura militar portuguesa em 10 de fevereiro de 1970, entre Massibi e Caianda, no Alto Zambeze, Leste de Angola, de que resultaram 1 morto e 12 feridos (Foto: João Petrucci)
24 março 2018
O arpeggione
O instrumento musical chamado arpeggione (Foto de autor desconhecido)
O arpeggione é um instrumento musical de cordas inventado em Viena por volta de 1823 por Johann Georg Stauffer e Peter Teufelsdorfer. É um instrumento híbrido, que parece resultar do cruzamento entre a viola da gamba (semelhante ao violoncelo, mas mais pequena) e a guitarra clássica. O arpeggione tem seis cordas e braço com trastes, à semelhança da guitarra clássica, mas toca-se esfregando as suas cordas com um arco, tal como a viola da gamba e o violoncelo.
O arpeggione gozou de alguma popularidade pouco depois da sua invenção, mas a seguir foi esquecido. Ainda assim, o compositor austríaco Franz Schubert escreveu uma sonata para arpeggione e pianoforte ("antepassado" imediato do piano), que ainda hoje se toca, numa versão para violoncelo e piano ou, então, para violeta e piano. Os vídeos que se seguem procuram dar-nos a sonoridade original desta sonata, produzida pelo próprio arpeggione e um pianoforte da época de Schubert.
Primeiro andamento (Allegro moderato) da Sonata em Ré para arpeggione e pianoforte, D. 821, de Franz Schubert (1797–1828), por Nicolas Deletaille, em arpeggione, e Alain Roudier, em pianoforte
Segundo andamento (Adagio) e terceiro andamento (Allegreto) da Sonata em Ré para arpeggione e pianoforte, D. 821, de Franz Schubert (1797–1828), por Nicolas Deletaille, em arpeggione, e Alain Roudier, em pianoforte
21 março 2018
17 março 2018
Stephen Hawking (1942–2018)
«Podem ouvir-me? Foi um tempo glorioso estar vivo e fazer investigação em Física Teórica. A nossa visão do universo mudou muito nos últimos 50 anos e sinto-me feliz se tiver conseguido fazer uma pequena contribuição para tal. O facto de que nós, humanos — que somos, nós próprios, meros conjuntos de partículas fundamentais da natureza —, tenhamos sido capazes de nos aproximarmos da compreensão das leis que nos governam, assim como ao universo, é um grande triunfo. Quero partilhar a minha excitação e entusiasmo com esta procura. Portanto, lembrem-se de olhar para as estrelas e não para os pés. Tentem compreender o que veem e perguntem-se sobre o que faz o universo existir. Sejam curiosos e, por muito difícil que a vida possa parecer, há sempre algo que podem fazer e conseguir ter êxito. É importante que não desistam. Obrigado por me escutarem.» — Stephen Hawking (1942–2018)
Já praticamente foi dito tudo o que havia para se dizer sobre Stephen Hawking, a sua genialidade, a sua doença neurodegenerativa e a sua incrível força de vontade para superá-la, recusando-se a deixar-se ficar preso num corpo imóvel e grotesco, como um vegetal. Quase totalmente impossibilitado de comunicar com o mundo à sua volta, Stephen Hawking, em vez de se fechar sobre si mesmo, conseguiu abranger o Universo todo! Não se dedicou apenas à sua pessoa, à sua terra natal, ao seu país, ao seu planeta, mas ao Universo TODO, em todas as suas dimensões espácio-temporais!
Stephen Hawking foi um físico teórico, como só a sua doença lhe permitia ser. Formulou diversas teorias a partir do seu fulgurante raciocínio, de entre as quais sobressai a teoria de que os buracos negros, afinal, não serão tão negros como se diz, isto é, não serão as singularidades cuja atração gravitacional tudo absorve, incluindo a luz, como se diz. Segundo Hawking, os buracos negros também conseguem emitir energia cá para fora até, em última instância, acabarem por desaparecer. Nesta sua teoria, Hawking aliou a gravidade à eletrodinâmica quântica, segundo a qual o vazio absoluto não existe na realidade, pois estão constantemente a aparecer, a partir do nada, pares de partículas virtuais, que logo a seguir se aniquilam mutuamente e desaparecem. Quer isto dizer que constantemente aparecem e desaparecem, a partir do vazio, pares de quarks e antiquarks, eletrões e antieletrões (ou positrões), etc. Se um par destas partículas surgir precisamente na linha do "horizonte" de eventos de um buraco negro, poderá acontecer que uma dessas partículas seja imediatamente absorvida pelo próprio buraco negro, enquanto a outra partícula conseguiria escapar à atração e seria lançada para o espaço, impossibilitada de se unir à sua parceira (que o buraco negro "engoliu") para desaparecer com ela. Esta emissão de partículas a partir do "horizonte" de um buraco negro recebeu o nome de "radiação Hawking". O próprio Hawking previu igualmente que seria impossível detetar esta radiação, por qualquer meio que seja, por ser incrivelmente lenta.
É verdade que tudo isto não passa de uma teoria, saída do cérebro privilegiado de Stephen Hawking, juntamente com outras teorias por ele formuladas, como uma que diz que, afinal, é possível recuperar informação de um buraco negro. Como teorias que são, estas ideias podem estar certas ou podem estar erradas. Será possível que no futuro (que certamente não será próximo) se virá a conseguir comprovar a sua veracidade? Lembremo-nos de um outro génio da Física, Albert Einstein. Como consequência da sua Teoria da Relatividade Generalizada, Einstein tinha previsto, no ano 1916, a existência de ondas gravitacionais. Noventa e nove anos depois, mais precisamente no dia 14 de setembro de 2015, foi possível detetar, pela primeira vez, ondas gravitacionais provenientes da fusão de dois buracos negros. Foi preciso esperar praticamente um século para se concluir que, também neste caso, Einstein estava certo. As ondas gravitacionais existem mesmo! E a radiação Hawking? Existirá também? Fica no ar a pergunta, para a qual ninguém tem ainda uma resposta.
11 março 2018
Amadeo de Souza-Cardoso
"Saut du Lapin", 1911, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardoso, The Art Institute of Chicago, Chicago, Estados Unidos da América
Falecido há cem anos, Amadeo de Souza-Cardoso (1887–1918) foi um pintor português digno de figurar entre os melhores da Europa do início do séc. XX. Inserindo-se na corrente modernista, Amadeo de Souza-Cardoso produziu uma obra pictórica de cores vibrantes e em clara ruptura com a pintura convencional da sua época. Os contactos que Amadeo teve em Paris, onde viveu durante sete anos, com outros artistas seguidores de várias correntes, como Modigliani, de quem foi amigo, permitiram-lhe pôr em diálogo na sua obra diversas influências e alusões, como o futurismo, o cubismo, o abstracionismo, o expressionismo, etc. Estas influências e alusões conjugam-se entre si e complementam-se, em vez de entrarem em conflito, produzindo um resultado admirável.
Menina dos Cravos, 1913, óleo sobre madeira de Amadeo de Souza-Cardoso, Museu do Caramulo, Caramulo, Portugal
Cozinha da Casa de Manhufe, 1913, óleo sobre madeira de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Cabeça, c. 1913, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
"Les Cavaliers", c. 1913, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardoso, Musée National d'Art Moderne, Paris, França
Procissão do Corpus Christi, 1913, óleo sobre madeira de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Pintura, c.1914, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardozo, Col. José Ernesto de Souza-Cardoso, Museu Municipal Souza-Cardoso, Amarante, Portugal
Canção Popular — a Russa e o Figaro, c. 1916, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Barcos, c. 1913, óleo sobre tela de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Entrada, 1917, óleo sobre tela com colagem de Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
08 março 2018
Inteligência artificial
Uma operação de marketing: "conferência de imprensa" dada por um robô humanoide chamado Sophia, na Web Summit 2017, Lisboa
Imaginemos que um papagaio seria capaz de aprender a recitar um soneto completo de Florbela Espanca, do princípio ao fim e sem se enganar. Teoricamente, pelo menos, não é completamente impossível que um tal papagaio possa existir. Poderemos então dizer que esse papagaio é inteligente? Se esse papagaio não compreender o que diz, certamente não poderá ser considerado inteligente.
Imaginemos, por absurdo, que esse papagaio seria também capaz de compreender o conteúdo do referido soneto. Poderemos dizer que, então sim, esse papagaio é inteligente? Se esse papagaio não sentir a emoção e o sentimento colocados pela grande poetisa em cada um dos seus versos, certamente não poderá ser considerado inteligente.
Então, como é possível que se possa dizer que é inteligente um robô humanóide que se limita a imitar (mal) as expressões faciais de um ser humano e a papaguear umas quantas frases previamente gravadas, como resposta a perguntas que lhe são feitas, sem compreender o sentido dessas frases?
Tem havido muito sensacionalismo à volta do tema da chamada inteligência artificial. O aparecimento de um robô humanoide chamado Sophia (exibido no Web Summit 2017, em Lisboa) só contribuiu para aumentar ainda mais esse sensacionalismo. A chamada "inteligência artificial", entre comas, está aí (isso é um facto), tem potencialidades extraordinárias e igualmente assustadoras (também é um facto), mas ainda não está ao virar da esquina, como os departamentos de marketing de algumas empresas nos querem fazer crer. De qualquer modo, têm-se feito avanços enormes no sentido do surgimento, num futuro que não se sabe quando será, de uma verdadeira inteligência artificial. Ou não.
A expressão "inteligência artificial" é antiga. Já nos anos 70 e, sobretudo, nos anos 80 do século passado, se falava nela nos meios académicos e em alguns meios industriais, como sendo algo que poderia vir a surgir a breve prazo. Mas tal não se verificou. O que se desenvolveu nesses anos foram sistemas periciais, que produziram excelentes resultados, se tivessem sido bem desenvolvidos, mas que de inteligência não tinham nada. Os sistemas periciais, de um modo geral, não passam de "árvores de decisão", em que se encontram encadeadas decisões deste tipo:
«Verifica-se a condição x? Sem sim, então y. Se não, então z.» Os resultados y e z podem ser, por exemplo, «procede desta maneira», «não sei resolver o problema e acabou», «problema resolvido e acabou», «volta atrás», «vai testar a condição w que está acolá», «verifica a nova condição x'», etc. A nova condição x' é do mesmo tipo. «Verifica-se a condição x'? Sem sim, então y'. Se não, então z'.» Etc., etc. No fim, poderemos ter milhares de resultados diferentes, conforme a complexidade do sistema que estiver a ser trabalhado.
Atualmente, muitos programas de teste e diagnóstico, usados em muitos domínios da técnica e do conhecimento, baseiam-se neste tipo de "árvores de decisão". Mas a inteligência artificial está anos‑luz à frente disto.
Ao mesmo tempo que se desenvolviam sistemas periciais baseados numa arquitetura convencional de computadores (chamada arquitetura de von Neumann), foi-se desenvolvendo um novo conceito de computação, baseado numa arquitetura radicalmente diferente da convencional, que foi o conceito das chamadas "redes neuronais artificiais". Aqui sim, deu-se um enorme avanço no sentido do que poderá vir a ser uma inteligência artificial a sério. Ou não.
As redes neuronais artificiais têm como finalidade imitar o funcionamento das redes de células nervosas no cérebro, em que cada célula, chamada neurónio, está ligada às células vizinhas através de conexões, chamadas sinapses. Num cérebro biológico, a informação recebida através dos sentidos é recolhida e processada por milhares e milhares de neurónios no cérebro, que trabalham em rede até que se produza um resultado final, que pode ser, por exemplo, a atuação de um músculo do organismo ou o armazenamento de uma recordação em outros neurónios que estão afetos à memória.
O cérebro humano tem muitíssimos milhões de neurónios, cada um dos quais com milhares de sinapses a interligá-lo aos neurónios vizinhos. O resultado é uma rede extremamente complexa e eficiente, impossível de ser reproduzida fielmente por meios artificiais, tão grande é a sua complexidade.
As redes neuronais artificiais não conseguem ter essa complexidade, nem pouco mais ou menos, mas conseguem já obter resultados que quase nos parecem milagrosos. Por exemplo, as redes neuronais artificiais têm a capacidade de aprender! É verdade! Aprendem com o que lhes é ensinado por um humano (como nos sistemas periciais), mas também são capazes de aprender por si próprios, sem intervenção exterior, corrigindo erros cometidos anteriormente e aprofundando os conhecimentos que já possuíam! É a chamada deep learning, que é atualmente objeto de uma intensa investigação. Isto, sim, já pode ser considerado um início de inteligência artificial, mas ainda está incomparavelmente atrás das possibilidades oferecidas por um cérebro humano.
«Mas a inteligência (natural) não é apenas raciocínio lógico», argumentar-ser-á com toda a razão. «É também intuição, sentimento, emoção, instinto, etc. Onde está o lugar, na inteligência artificial, para estas expressões de inteligência real?» Não está. Esse lugar não existe, pelo menos por enquanto, nem se sabe sequer se virá a existir no futuro. Talvez seja preciso voltar à estaca zero e começar tudo de novo, em novas bases, para que a inteligência artificial (agora sem comas) possa ser equiparável à inteligência natural, porque também já tem intuição, emoção, sentimento, etc.
Tomemos o exemplo de uma flor. Uma rede neuronal artificial poderá identificar sem dificuldades uma flor numa fotografia, através de um algoritmo de reconhecimento de padrões; poderá associar a imagem de uma flor às letras F, L, O e R, etc. Mas não consegue, por mais "inteligente" que seja, sentir a emoção transmitida pela beleza de uma flor, nem consegue, por mais "inteligente" que seja, oferecer uma flor a um ente amado (pode ser uma outra forma de inteligência artificial), porque não faz a mais insignificante ideia do que seja o amor.
01 março 2018
A Paixão de Joana d'Arc
A Paixão de Joana d'Arc, filme mudo de longa metragem rodado em França e datado de 1928, do realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889–1968). A principal protagonista é Renée Jeanne Falconetti, também chamada Maria Falconetti (1892–1946)
Este é considerado um dos melhores filmes de sempre e o seu autor, o dinamarquês Carl Dreyer, um dos maiores realizadores de sempre. A principal protagonista deste filme, a atriz francesa Renée Jeanne Falconetti, também chamada Maria Falconetti, que interpreta o papel de Joana d'Arc, apresenta aqui um desempenho igualmente extraordinário, pelo que também pode ser considerada uma das melhores atrizes de cinema de sempre.
Datado de 1928, o filme A Paixão de Joana d'Arc foi rodado em França e ainda é mudo, apesar de já terem começado a surgir os primeiros filmes sonoros nesse tempo, porque o orçamento disponível era muito escasso. Sendo mudo, este filme está legendado originalmente em francês. A versão que aqui se mostra apresenta igualmente uma tradução em inglês.
Tendo este filme uma grande abundância de close-ups, quis Carl Dreyer que os atores se apresentassem sem qualquer espécie de maquilhagem, o que, aliado ao grande contraste entre claros e escuros da fotografia, que também é propositado, empresta uma grande carga expressiva aos rostos. O que é curioso é que estes rostos parecem quase todos saídos diretamente dos Painéis de São Vicente, a obra-prima do pintor português quatrocentista Nuno Gonçalves!
Enfim, este é um filme a ver sem falta.