30 abril 2020

Nascer para ser rico


Garoupas (Foto: Auchan)


Havia um sapateiro que trabalhava noite e dia, mas nunca passava da cepa torta; um vizinho muito rico ouvia-o cantar sempre esta cantiga:

Sou um pobre sapateiro,
Que estou sempre a dar, a dar,
Quem nasceu para ser pobre
Que lhe serve o trabalhar?

Ao som desta cantiga batia sola; o vizinho lembrou-se de lhe fazer uma surpresa, e mandou-lhe uma grande rosca cheia de dinheiro por dentro, que era para ele comer com sua mulher e filhos, e quando a partisse já não ter que se queixar da sorte. O sapateiro assim que recebeu a rosca deu muitos agradecimentos ao vizinho, mas como tinha tido uma doença em casa lembrou-se de ir levar de presente a rosca ao médico a quem estava em dívida. A mulher ficou muito contente com a lembrança e foi ela mesma levá-la a casa do médico. Passados dias passou o vizinho rico pela porta do sapateiro, e ouviu-lhe a mesma cantiga, e perguntou-lhe:

— Oh homem! Pois você não comeu a rosca com a sua família?

O sapateiro contou o motivo porque se tinha visto obrigado a levá-la de presente ao médico. O rico foi-se embora, e passados dias mandou-lhe uns toros de pinheiro, também cheios de dinheiro por dentro, dizendo que era para fazer o seu lume. Ora o sapateiro era vizinho de um padeiro, de quem comia fiado, e para lhe ser agradecido levou-lhe os toros de presente para queimar no forno. De outra vez passou o vizinho rico pela porta do sapateiro e perguntoulhe se já tinha rachado a lenha que lhe mandara; o homenzinho contou como se vira obrigado a levar os toros de presente ao seu vizinho padeiro, que lhe dava pão fiado. Vai o rico e disse-lhe:

— Você parece que tem razão em se queixar de que nasceu para ser pobre, porque a rosca de pão e os toros de pinheiro vinham por dentro recheadinhos de dinheiro. Agora ainda que lhe queira fazer bem já não posso, nem trago nada comigo. O mais que lhe posso dar é esse pedaço de chumbo que achei ali no caminho.

O sapateiro pegou no bocadinho de chumbo, e como de nada lhe servia deitou-o ali para um canto, e continuou a trabalhar ao som da mesma cantiga. De noite quando estava na cama, sentiu bater à porta: truz, truz! Falaram:

— Oh senhora vizinha!

A mulher do sapateiro levantou-se e foi ao postigo; era a mulher de um pescador que morava paredes-meias e disse:

— O meu homem vai agora para o mar, para deitar as redes; é uma ocasião boa, mas falta-lhe chumbo para elas. Não terá por aí qualquer bocadinho que me dê?

O sapateiro lembrou-se do chumbo que lhe tinha dado o homem rico e disse à mulher onde estava, e que o levasse à do pescador. Lá o que se passou não sei, mas o pescador tirou uma rede cheia de peixe, e a mulher veio a casa do sapateiro trazer-lhe em paga uma boa garoupa para amanharem para o jantar. Quando a mulher do sapateiro a estava arranjando, abriu-lhe as ventrechas e achou-lhe dentro uma pedra a modo de um vidro esquinado e deu aos pequenos para brincarem, sem fazer a isso mais reparo. Os pequenos brincaram com a pedra, e deixaram-na para aí quando se foram deitar. De noite estava o sapateiro na cama, e depois que apagou a candeia viu luzir uma cousa como que se fosse os olhos de gato.

— Homem, essa! parece-me que vejo luzir ali uma cousa.

A mulher reparou, e viu o mesmo; levantou-se o sapateiro e foi ver o que seria; deu com uma pedra muito polida, e foi então que a mulher se lembrou que a tinha encontrado na ventrecha da garoupa. O sapateiro quando amanheceu foi mostrá-la a casa de um ourives, que lhe disse que aquilo era uma pedra preciosa e que valia tanto que nem ele mesmo tinha dinheiro para a comprar; mas que se ele quisesse iria mostrá-la ao rei, que só ele é que podia ter joias de tanto valor. Assim fez, e o sapateiro veio a receber muito dinheiro pela pedra; mudou de vida, comprou casas e quintas, e quando já se tratava como um senhor, passou-lhe pela porta o antigo vizinho rico que tinha estado muito tempo fora da terra, e ficou pasmado de o ver tão acrescentado. Ele dizia lá consigo:

— O velhaco do sapateiro enganou-me; guardou o dinheiro que lhe mandei dentro da rosca e dos toros de pinheiro, e só depois da cousa esquecida é que se saiu com ele.

Mas o sapateiro era homem liso, e contou-lhe como a fortuna lhe viera pelo bocadinho de chumbo que lhe deu, agradeceu-lhe muito, e concluiu que apesar das suas queixas ele tinha nascido para ser rico, pois dera por duas vezes pontapés na fortuna.

Conto popular recolhido no Porto. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843-1924)

25 abril 2020

As portas que Abril abriu

Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra

Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas tabém tinha a seu lado
muitos homens na prisão

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação

uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com a que a força da vida
seja maior do que a morte

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
— pode nascer um país
do ventre duma chaimite

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
— é a força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados "páras"
que não queriam o degredo
de um povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma razão
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo de mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que desbobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideias
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio faziam
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
- cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os genarais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
apenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
- Não havia estado novo
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

Em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
de um país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua prórpia grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
e ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisa em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!

José Carlos Ary dos Santos (1937–1984)


23 abril 2020

O nosso mundo é este

O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.

Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.

Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…

Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…

Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.

Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…

O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.

E se soubessem, dariam flor?

Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.

O nosso mundo é este…

( Mas há de ser outro.)

José Gomes Ferreira (1900–1985), poeta português



(Foto: PA Real Life/searching4eden)

20 abril 2020

Espoliada da própria vida


Quando me comunicaram que eu iria comandar uma operação militar helitransportada, não entrei em pânico, mas pouco faltou. «Como é que se comanda uma operação helitransportada?», pensei eu, sobressaltado. «Nunca me ensinaram!» Passei mentalmente em revista o Curso de Oficiais Milicianos que frequentei em Mafra e concluí que ninguém, em momento algum, me ensinou fosse o que fosse que estivesse relacionado com operações deste tipo. «Porque não entregam o comando da operação a alguém que tenha um mínimo de conhecimentos sobre o assunto?», interroguei-me ainda, concluindo logo a seguir que em todo o batalhão não havia um só oficial nessa situação. Nenhum alferes ou capitão parecia estar à altura de poder comandar uma operação helitransportada. Todos pareciam saber tanto como eu, ou seja, nada. Quis o acaso que fosse a mim, e não a outro, que calhasse uma tal responsabilidade.

Pouco a pouco, fui-me tranquilizando a mim mesmo, concluindo que tudo iria correr bem, pois a sorte que sempre me acompanhara na guerra, o meu instinto de sobrevivência e a minha intuição me iriam valer nessa operação, como já me tinham valido em operações anteriores. Quaisquer que fossem as dificuldades que me viessem a surgir, eu iria ser capaz de resolvêlas e tudo iria correr da melhor maneira possível. Sempre assim tinha sido e com certeza assim voltaria a ser. Quando embarquei no helicóptero que me iria largar nas proximidades do objetivo, já eu me sentia relativamente confiante e mentalmente pronto para enfrentar as dificuldades que me viessem a aparecer.

A operação foi mais fácil do que eu alguma vez poderia ter imaginado. Foi, incomparavelmente, a menos cansativa de todas as operações militares que fiz, e também foi, sem qualquer sombra de dúvida, uma das menos arriscadas.

Esta operação teve como objetivo uma base da FNLA chamada Quiuanda, situada bastantes quilómetros a norte de Cambamba, e nela participaram dois grupos de combate da minha companhia: o 2.º grupo, que era o meu próprio, e o 4.º grupo, que era comandado pelo alferes miliciano Peixoto. A operação decorreu entre 20 de abril (Sexta-Feira Santa) e 22 de abril (Domingo de Páscoa) de 1973.


Um helicóptero Puma SA-330, de fabrico francês, recolhendo militares paraquedistas algures no norte de Angola (Foto: Rui Ferreira)

Fomos levados "ao colo" por helicópteros Puma até às proximidades do objetivo. Estes helicópteros eram grandes e muito fechados. Embarquei no primeiro que levantou de Zemba e fui um dos primeiros militares a saltar do helicóptero (que ficou a pairar a cerca de metro e meio de altura do chão), com a intenção de dirigir a colocação no terreno dos meus homens à chegada. À medida que eles iam saltando, eu encaminhava-os de maneira a formarem uma ampla circunferência em volta do local do desembarque, deitados no solo e com as armas apontadas para fora. Ainda hoje não sei se era assim que eu devia proceder; fiz o que me ocorreu naquele momento.


Um jato F-84 Thunderjet, de fabrico norte-americano, sendo abastecido de combustível na Base Aérea 9, em Luanda. Esta aeronave, em concreto, pode ter atuado na operação ao Quiuanda (Foto: Soares da Silva)

Um avião Dornier DO-27, de fabrico alemão (Foto de autor desconhecido)

Ao mesmo tempo que saltávamos dos helicópteros, diversas aeronaves da Força Aérea faziam fogo à nossa volta, provocando uma barulheira infernal. Fui tomado de uma enorme euforia, que só consegui refrear com muito custo, porque me senti invencível, rodeado que estava por um tão grande poder de fogo. Eu estava no meio de um inferno, mas o inferno era "bom", porque me protegia. Confesso que tive muita dificuldade em conseguir dominar-me e tomar consciência da real situação em que me encontrava.

As aeronaves que evolucionavam à nossa volta eram dois ou mais jatos F-84, um avião a hélice DO-27 e um helicanhão, o qual consistia num pequeno canhão MG-151 montado a bordo de um helicóptero Alouette III.


Um helicanhão idêntico ao utilizado no ataque ao Quiuanda (Foto: Mais Alto)

Os rebentamentos dos rockets lançados  pelos aviões e as rajadas do helicanhão faziam um barulho ensurdecedor. Este barulho durou até ao momento em que o último dos meus homens saltou para o chão. Então, todas as aeronaves se calaram e partiram de regresso a Luanda, deixando-nos sozinhos no terreno. Ordenei logo ao meu pessoal que se levantasse e se preparasse para partir. Dirigimo-nos imediatamente para a base que deveríamos destruir.

Apesar de ter uma certa importância estratégica, a base de Quiuanda era pequena e não justificava um tão grande poder de fogo por parte da Força Aérea. Os poucos guerrilheiros que deviam guarnecer a base puseram-se em fuga antes de entrarmos nela. Encontramos a base vazia.

Os guerrilheiros deviam ter sido apanhados de surpresa pelo ataque, pois deixaram pequenas fogueiras acesas com latas cheias de água em cima, em jeito de cafeteiras, provavelmente para prepararem o pequeno-almoço, em Angola chamado mata‑bicho. Os guerrilheiros e a população que os apoiava costumavam utilizar as latas vazias e as colheres de plástico das rações de combate que a tropa portuguesa abandonava na mata durante as operações.

No centro da base estava hasteada uma bandeira da FNLA, que um militar que não consegui identificar retirou. Julguei que ele mais tarde me iria entregar a bandeira, para juntar ao restante espólio da operação, mas tal não aconteceu. O militar ficou com ela.


Bandeira da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA)

Depois de termos destruído a base, saímos dela por um trilho, a fim de explorarmos a região envolvente. Mais adiante, na beira do caminho, encontramos uma mulher morta, sem metade da cara. Era evidente que ela tinha sido abatida pelo apontador do helicanhão, cujas balas costumavam ser de ponta explosiva. Uma bala deve ter atingido a mulher na cara, abrindo-lhe um horrendo buraco de ossos estilhaçados e sangue.

O soldado Domingos Cangúia, que era natural do Cuanza Norte e era generoso e puro como poucos, chorou convulsivamente a morte gratuita daquela desgraçada mulher, a quem até a vida tiraram. Dizia o soldado, por entre soluços:

— Que mal é que esta mulher fez a quem a matou? Porque foi que ele a matou? Certamente ela tinha filhos pequenos. O que vai ser agora dos filhos?

E chorava inconsolavelmente. Há cenas que ficam gravadas na nossa memória como ferro em brasa. Para mim, esta foi uma delas.

18 abril 2020

Bernardo Marques


Sem Título, 1922, guache, tinta-da-china e grafite sobre papel de Bernardo Marques (1898–1962), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

Bernardo Marques foi um artista plástico multifacetado que se dedicou à pintura, ao desenho, à gravura, à cenografia, à decoração, etc. Só não fez pintura a óleo porque era alérgico a este tipo de tinta.

Nascido em Silves em 1898, Bernardo Marques não frequentou qualquer curso de Belas-Artes, tendo sido um autodidata. No início da sua atividade artística, alinhou com a corrente modernista, mas uma estadia na Alemanha, em 1929, fê-lo aproximar-se do expressionismo. A partir de 1940, enveredou pela estética ruralizante do Estado Novo e na década de 50 passou a dedicar-se, sobretudo, à representação de paisagens, tanto rurais como urbanas. Morreu em Lisboa em 1962.

Pela sua versatilidade e pela diversidade da sua obra, Bernardo Marques pode e deve ser considerado um dos artistas plásticos portugueses mais importantes do séc. XX.


Sem Título, 1939, técnica mista sobre papel de Bernardo Marques (1898–1962), coleção particular


Paisagem de Colares, aguarela de Bernardo Marques (1898–1962), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal

15 abril 2020

Os seis órgãos da basílica de Mafra



Sinfonia para a Real Basílica de Mafra, de António Leal Moreira (1758–1819), executada ao vivo na basílica de Mafra por Sérgio Silva no órgão do Evangelho, André Ferreira no órgão da Epístola, João Santos no órgão de São Pedro de Alcântara, Margarida Oliveira no órgão do Sacramento, Célia Sousa Tavares no órgão da Conceição e Maria João Abreu no órgão de Santa Bárbara


Conta-se que, quando o convento de Mafra foi construído, o rei D. João V terá pedido o orçamento de um órgão para a correspondente basílica. Quando recebeu a resposta, o rei terá dito: «Tão barato? Então quero seis!»

Esta história não é verdadeira. A basílica de Mafra foi concebida desde o primeiro momento para albergar seis órgãos, nada menos do que seis. O restauro destes seis órgãos custou agora os olhos da cara ao contribuinte português, que não tem as minas de ouro no Brasil que D. João V tinha. O mesmo se poderá dizer, aliás, em relação ao carrilhão da mesma basílica, que muito recentemente foi restaurado in extremis, num momento em que já ameaçava ruína iminente.

Os órgãos da basílica de Mafra só ficaram prontos em 1807, ou seja, pouco tempo antes das Invasões Francesas e da fuga da corte para o Brasil. Enquanto isso, alguns compositores foram escrevendo peças musicais para os seis órgãos, entre os quais Marcos Portugal, João de Souza Carvalho, João José Baldi e António Leal Moreira. Os manuscritos destas obras estão quase todos na biblioteca do convento.

António Leal Moreira foi um compositor e organista português, nascido em Abrantes no ano de 1758. Compôs numerosas obras sacras para a Capela Real de D. Maria I. Foi também diretor musical do Teatro da Rua dos Condes e do Teatro de São Carlos, em Lisboa, para os quais compôs várias óperas e outras peças de caráter profano. Morreu em 1819 com 61 anos de idade.

12 abril 2020

Ressurreição


Parte do fresco Ressurreição de Cristo, de Martin Knoller (1725–1804), existente na cúpula principal da Abadia de Nehresheim, Baden-Württemberg, Alemanha

10 abril 2020

Stabat Mater de Arvo Pärt


Versão para coro misto e orquestra de cordas da obra Stabat Mater, do compositor estónio contemporâneo Arvo Pärt, pelo Coro do Clare College de Cambridge e o Dmitri Ensemble, sob a direção de Graham Ross

06 abril 2020

Povo que lavas no rio

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Beber em malga que esconda
Um beijo de mão em mão
Era o vinho que me deste
A água pura em fruto agreste
Mas a tua vida não

Aromas de urze e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição
Povo, povo, eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso
Mas a tua vida não

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não

Pedro Homem de Mello (1904–1984)



Povo que lavas no rio, por Amália Rodrigues (1920–1999). Música de Joaquim Campos para um poema de Pedro Homem de Mello