Nascer para ser rico
Garoupas (Foto: Auchan)
“Conto popular recolhido no Porto. Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843-1924)
Havia um sapateiro que trabalhava noite e dia, mas nunca passava da cepa torta; um vizinho muito rico ouvia-o cantar sempre esta cantiga:
Sou um pobre sapateiro,
Que estou sempre a dar, a dar,
Quem nasceu para ser pobre
Que lhe serve o trabalhar?
Ao som desta cantiga batia sola; o vizinho lembrou-se de lhe fazer uma surpresa, e mandou-lhe uma grande rosca cheia de dinheiro por dentro, que era para ele comer com sua mulher e filhos, e quando a partisse já não ter que se queixar da sorte. O sapateiro assim que recebeu a rosca deu muitos agradecimentos ao vizinho, mas como tinha tido uma doença em casa lembrou-se de ir levar de presente a rosca ao médico a quem estava em dívida. A mulher ficou muito contente com a lembrança e foi ela mesma levá-la a casa do médico. Passados dias passou o vizinho rico pela porta do sapateiro, e ouviu-lhe a mesma cantiga, e perguntou-lhe:
— Oh homem! Pois você não comeu a rosca com a sua família?
O sapateiro contou o motivo porque se tinha visto obrigado a levá-la de presente ao médico. O rico foi-se embora, e passados dias mandou-lhe uns toros de pinheiro, também cheios de dinheiro por dentro, dizendo que era para fazer o seu lume. Ora o sapateiro era vizinho de um padeiro, de quem comia fiado, e para lhe ser agradecido levou-lhe os toros de presente para queimar no forno. De outra vez passou o vizinho rico pela porta do sapateiro e perguntou‑lhe se já tinha rachado a lenha que lhe mandara; o homenzinho contou como se vira obrigado a levar os toros de presente ao seu vizinho padeiro, que lhe dava pão fiado. Vai o rico e disse-lhe:
— Você parece que tem razão em se queixar de que nasceu para ser pobre, porque a rosca de pão e os toros de pinheiro vinham por dentro recheadinhos de dinheiro. Agora ainda que lhe queira fazer bem já não posso, nem trago nada comigo. O mais que lhe posso dar é esse pedaço de chumbo que achei ali no caminho.
O sapateiro pegou no bocadinho de chumbo, e como de nada lhe servia deitou-o ali para um canto, e continuou a trabalhar ao som da mesma cantiga. De noite quando estava na cama, sentiu bater à porta: truz, truz! Falaram:
— Oh senhora vizinha!
A mulher do sapateiro levantou-se e foi ao postigo; era a mulher de um pescador que morava paredes-meias e disse:
— O meu homem vai agora para o mar, para deitar as redes; é uma ocasião boa, mas falta-lhe chumbo para elas. Não terá por aí qualquer bocadinho que me dê?
O sapateiro lembrou-se do chumbo que lhe tinha dado o homem rico e disse à mulher onde estava, e que o levasse à do pescador. Lá o que se passou não sei, mas o pescador tirou uma rede cheia de peixe, e a mulher veio a casa do sapateiro trazer-lhe em paga uma boa garoupa para amanharem para o jantar. Quando a mulher do sapateiro a estava arranjando, abriu-lhe as ventrechas e achou-lhe dentro uma pedra a modo de um vidro esquinado e deu aos pequenos para brincarem, sem fazer a isso mais reparo. Os pequenos brincaram com a pedra, e deixaram-na para aí quando se foram deitar. De noite estava o sapateiro na cama, e depois que apagou a candeia viu luzir uma cousa como que se fosse os olhos de gato.
— Homem, essa! parece-me que vejo luzir ali uma cousa.
A mulher reparou, e viu o mesmo; levantou-se o sapateiro e foi ver o que seria; deu com uma pedra muito polida, e foi então que a mulher se lembrou que a tinha encontrado na ventrecha da garoupa. O sapateiro quando amanheceu foi mostrá-la a casa de um ourives, que lhe disse que aquilo era uma pedra preciosa e que valia tanto que nem ele mesmo tinha dinheiro para a comprar; mas que se ele quisesse iria mostrá-la ao rei, que só ele é que podia ter joias de tanto valor. Assim fez, e o sapateiro veio a receber muito dinheiro pela pedra; mudou de vida, comprou casas e quintas, e quando já se tratava como um senhor, passou-lhe pela porta o antigo vizinho rico que tinha estado muito tempo fora da terra, e ficou pasmado de o ver tão acrescentado. Ele dizia lá consigo:
— O velhaco do sapateiro enganou-me; guardou o dinheiro que lhe mandei dentro da rosca e dos toros de pinheiro, e só depois da cousa esquecida é que se saiu com ele.
Mas o sapateiro era homem liso, e contou-lhe como a fortuna lhe viera pelo bocadinho de chumbo que lhe deu, agradeceu-lhe muito, e concluiu que apesar das suas queixas ele tinha nascido para ser rico, pois dera por duas vezes pontapés na fortuna.
”
Comentários: 2
Moral a tirar
Ou se é rico, porque se nasce tal qual
Ou não dá para ter esperança
De o ser em conto tradicional
«- Loucura! - gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
- Mentira! - disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.»
(tirei à pouco
de um poema de Vinicius
um tanto longo)
Prezado Rogério,
"O operário em construção", de Vinicius de Moraes, já foi tema de um post meu, precisamente no Primeiro de Maio de há cinco anos. Fi-lo acompanhar de uma passagem do filme "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin (https://www.youtube.com/watch?v=idB8FqlYMqw), mas poderia tê-lo feito acompanhar da leitura do mesmo poema pelo inesquecível Mário Viegas (https://www.youtube.com/watch?v=GalQEYKriHU).
Quanto ao conto que acima transcrevi, o que poderei dizer, se não que a literatura tradicional é o reflexo de uma mentalidade e de uma moralidade passadas? De qualquer modo, neste caso particular, o sapateiro do conto estava resignado à sua pobreza sem razão, dado que afinal o seu destino era outro. O conto acaba por ser contrário ao fatalismo.
Um abraço
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